domingo, junho 22, 2025

O cozinheiro "iraniano"



Quando, em maio de 1979, cheguei à Noruega, para aquele que seria o meu primeiro posto diplomático, a revolução iraniana estava já em curso. 

O Xá tinha abandonado Teerão e o Ayatollah Khomeini chegara, triunfante, do seu exílio em França. Um governo de transição geria o país. A grande incógnita era saber se a dinâmica política em torno de Khomeini desencadearia ou não uma radicalização da situação, colocando em causa a precária estabilidade governativa.

Por uns dias, coexisti na nossa embaixada em Oslo com o colega que ia substituir, Pedro Vasconcelos e Castro, cuja casa iria "herdar". Ao segundo ou terceiro dia, o Pedro perguntou-me se queria ir com ele jantar a casa de um seu amigo próximo, um diplomata do Irão, Parviz Azarnia. Não queria eu outra coisa! A minha curiosidade sobre o que se estava a passar no Irão era imensa. 

Verdade seja que a ocasião veio a ter pouco préstimo para esse objetivo. Era um jantar volante, para despedida do Pedro, o qual iria, dias depois, partir para a nossa embaixada no Cairo. A conversa foi dispersa, o iraniano, que era solteiro, distribuía naturalmente a atenção por todos os convidados. Não tive o mínimo ensejo de conversar com ele a sós. Lembro-me que era um excelente apartamento, perto de Røa, à saída de Oslo para o antigo aeroporto de Fornebu, não muito longe da casa onde eu iria morar nos três anos seguintes. Recordo que voltei lá uma vez com a minha mulher, para um cocktail.

O que me impressionou logobnesse jantar foi a descontração desse colega iraniano, que sabia ter no seu país uma situação política em risco de explosão. Vestido 100% à ocidental, tinha belas peças de decoração, que imaginei valiosas. Os tapetes, notei, eram deslumbrantes. Pode dizer-se que vivia "à grande e à francesa", se isto ainda hoje se diz.

Os acontecimentos no Irão precipitaram-se, nos meses seguintes. De Teerão, começaram a chegar notícias da "débacle" das estruturas moderadas de governo. A imprensa internacional que líamos - no meu caso, quase exclusivamente, o "Herald Tribune" - dava conta do início da onda clerical que se prolongou até aos dias de hoje. Viria ainda o episódio do assalto à embaixada americana, que Trump está por estas horas a tentar vingar.

Um dia, no diz-que-disse dos círculos diplomáticos, chegou-nos a notícia de que Parvis Azarnia tinha saído de Oslo. Uns meses mais tarde, passou a circular que se tinha transferido para Genebra, onde montara uma casa de venda de ... tapetes, "et pour cause"!

Estava eu, na ausência do embaixador Fernando Reino, a chefiar interinamente a embaixada, aí por julho ou agosto de 1979 quando fui avisado de que um cidadão português, residente em Oslo, queria falar comigo. 

Os nossos compatriotas na Noruega, ao contrário do que hoje sucede, não excediam as duas centenas, concentrados basicamente em Oslo. O José Manuel dos Santos, um jovem algarvio que tinha entrado um ano antes ao serviço da embaixada, antes de introduzir o homem no meu gabinete, sussurrou-me: "É cozinheiro na embaixada do Irão!". Fiquei curioso, claro.

Apareceu-me um tipo gorducho, de quarenta e tal anos, afogueado e nervoso. Antes que eu pudesse matar a curiosidade sobre a vida lá no seu emprego, foi direito ao assunto que ali o levava. 

Desde há alguns anos que era cozinheiro da embaixada do Irão Não tinha razões de queixa dos patrões, que lhe pagavam bem, para os já bons salários de Oslo. Contudo, uma semana antes, a residência esvaziara-se e na chancelaria tinha acontecido praticamente o mesmo: não ficara nenhum iraniano na embaixada. Havia uns noruegueses contratados na chancelaria da embaixada, mas, estando sem orientações, tinham fechado o escritório. Na residência ele estava sozinho, já há alguns dias. Não tinha nada para fazer e estava sem saber o que havia de fazer. Parecia assustado. Tinham-lhe chegado uns zunzuns de que se aguardava a chegada de uma gente um tanto estranha, para substituir os anteriores.

Disse-me que estava à procura de um novo emprego, que tinha mesmo algo apalavrado e que já nem dormia na residência. Ótimo, disse-lhe eu, e desejei-lhe boa sorte. E inquiri o que poderíamos fazer por ele, tentando perceber a razão por que nos procurara.

"Vinha pedir-lhe, senhor doutor, se podia ficar com as chaves da residência, entregando-as depois a quem vier do Irão". Em Oslo, a residência da embaixada do Irão fica em frente da do nosso embaixador, do outro lado da rua.

A vida diplomática confronta-nos com situações estranhas e inesperadas. Em 90% dos casos, a resposta é apenas um mínimo de bom senso. Como o era nesta situação. Era só o que faltava que eu aceitasse o "favor" que o homem me pedia! 

Falei com o Protocolo do MNE norueguês e arranjei um encontro para o homem se ver livre das chaves. Perdi-o para sempre de vista. Infelizmente, soube, meses mais tarde, que tinha morrido de uma doença grave de que já padecia.

Tempos depois, uma nova e mais ortodoxa equipa diplomática iraniana chegou a Oslo. Os trajes tinham mudado por completo. Imagino que o menu da residência também, mas não me recordo de ter sido alguma vez convidado por lá.
 

6 comentários:

ematejoca disse...

Gostei muito de ler sobre o caso do cozinheiro “iraniano”. Não gostaria que Donald Trump se vingasse do assalto à embaixada americana. Embora eu deteste o actual governo iraniano, uma guerra não é uma solução inteligente.

Francisco Seixas da Costa disse...

ematejoca. Não viu as notícias?

mensagensnanett disse...

OCIDENTAIS MAINSTREAM PRETENDEM REESCREVER A HISTÓRIA:
---> nos últimos 500 anos quantos povos autóctones foram alvo de extermínio (Américas, Austrália)... : muitos!
---> em pleno século XXI, vemos os ocidentais mainstream envolvidos em negócios de extermínio:
- compraram ucranianos como 'Testas de Ferro', objectivo: o extermínio dos russos  das regiões russas cedidas à Ucrânia pela ditadura dos de sovietes que  (com o fim da ditaduras dos sovietes) reivindicavam separatismo da Ucrânia (sim: reivindicavam a liberdade de decidir o regresso à Rússia: pois, a ditadura dos sovietes havia terminado!).
[Merkel, Holland, etc vangloriam-se da sua esperteza Sun Tsu!...]
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P.S.
---> NÃO SEJA CÚMPLICE DA CIVILIZAÇÃO 500 ANOS DE ROUBO& PILHAGEM!!!
---> REIVINDIQUE O REGRESSO DA LIBERDADE AO PLANETA:
- povos autóctones dotados da LIBERDADE de ter o seu espaço e explorar as suas riquezas naturais.
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---»»» Os tiques-dos-impérios lovers, os globalization-lovers, os UE-lovers (etc), que fiquem na sua/deles... respeitem os Direitos dos outros... e vice-versa: SEPARATISMO IDENTITÁRIO:
-» blog http://separatismo--50--50.blogspot.com

Anónimo disse...

...e agora? Por causa das Lages vamos estar enterradinhos até ao pescoço?! ... ou não?, nem tivemos conhecimento, espero ...

ematejoca disse...

Quando escrevo “não gostaria”, não significa que não tenha lido as notícias; trata-se simplesmente do meu desejo. O orgulho de Netanyahu é um desastre para os cidadãos iranianos.

João Cabral disse...

Senhor embaixador, mais uma que se calhar numa lhe perguntaram: chegou a aprender alguma coisa de norueguês?
Segundo dizem, quem aprende fica a dominar também as outras línguas nórdicas escandinavas, pois a fonética é muito parecida com a sueca, ao passo que o vocabulário e a ortografia são muito proxímos do dinamarquês. Inclusive, o infame músico norueguês Varg Vikernes até já chegou a afirmar que o norueguês nem existe propriamente, dado o decalque do dinamarquês...

Solstício

O meu pai, que já se me foi há muito, adorava a claridade. Deitava-se cedo e nunca percebeu o fascínio do filho pela noite. A escuridão não ...