Em 1930, com menos de 20 anos, o meu pai saiu da sua Viana do Castelo natal para ingressar, em Lisboa, na Caixa Geral de Depósitos. Nesse tempo, acrescentava-se ao nome "Crédito e Previdência". Mal ele sabia que esse acabaria por ser o seu muito feliz destino de trabalho, nos 47 anos que se iam seguir.
Para trás, em Viana, deixava a minha avó Filomena, viúva já há cinco anos, mãe de oito filhos, dois que há muito tinham morrido. O meu pai era então o mais novo e essa sua ida para Lisboa tera sido traumática para a minha avó. Os três irmãos e uma das irmãs estavam bem encaminhados, dizia-se então "lançados", na sua vida profissional, concluído que fora o liceu para todos eles. Chegar à universidade é que não tinha sido possível, por razões económicas, para nenhum dos filhos da minha avó.
A Lisboa de então, na memória esparsa que, ao longo dos anos, fui ouvindo do meu pai, ressoava a páginas de "A Capital", do Eça, no olhar deslumbrado de Artur Corvelo. O meu pai, contudo, trabalhava, não fazia poesia como o injustamente pouco apreciado autor do "Esmaltes e Joias".
Falava-me imenso dos cafés desse tempo, dos cinemas existentes, de algumas revistas no Parque, a que ia com os baratuchos "bilhetes de claque", isto é, com obrigação de aplaudir. E também se lembrava da agitação política, dos cívicos de chanfalho que, na confusão das manifestações, dissolviam "ajuntamentos de mais do que uma pessoa" e determinavam, alto e bom som: "É proibido andar parado!"
O 28 de maio tinha sido quase nas vésperas, as revoltas violentas estavam no ar do tempo, republicanos e integralistas agitavam aqueles dias. Educado numa família solidamente republicana, o meu pai olhou a subida do autoritarismo com uma saudável inquietação democrática, atitude que o viria a acompanhar até ao final dos seus longos dias.
Foram muito poucos esses meses de Lisboa, mas terá sido um tempo de imagens fortes e impressivas para um miúdo que, contudo, nem por um dia esqueceu o seu Minho - onde tinham ficado a mãe e todos os seus irmãos. Logo que pôde, conseguiu transferir-se para lá.
A mulher de um dos irmãos do meu pai tinha uma tia em Lisboa, senhora com posses, com bela casa e um título de viscondessa. O meu pai contava, às vezes, divertido e com pormenores, um jantar para que foi convidado pela senhora.
A ocasião era social e ficou-lhe então no goto uma pequena muito bonita com quem meteu conversa à mesa e com a qual, por timidez, havia de falhar um futuro encontro. Sorte a minha: se o conhecimento tivesse tido boa sequência, eu não estaria agora a ser o narrador desta história.
Desse jantar, lauto e imagina-se que um pouco diferente da comida das tascas de galegos do Bairro Alto que o jovem funcionário da Caixa podia frequentar, o meu pai contava o embaraço em que ficou, ao deparar-se com uma parafernália de talheres, cuja ordem de utilização não lhe resultava evidente. A bela rapariga ao seu lado, notando a sua hesitação, deu-lhe, discretamente, um prático conselho protocolar: esperar para ver como os outros faziam.
Às vezes, já tenho pensado que, em certos períodos, a nossa política externa, na prudência obsessiva perante os acontecimentos do mundo, aprendeu demasiado com a lição dos talheres da viscondessa: fica à espera para ver o que os outros fazem, seguindo-os depois, contentinha da vida.
Acabei há pouco de escrevinhar um texto sobre questões de protocolo que me foi solicitado, para um fim que não vem aqui ao caso. E foi então que me lembrei dessa viscondessa que me ficou da memória familiar, uma titular sem nome, mas que o meu primo Rogério, descendente de um ramo próximo dessa ala aristocrática, talvez ainda consiga identificar. Se assim fosse, fechava-se a história com garfo de ouro.
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