sábado, agosto 06, 2022

Foi uma bela ideia!


Estávamos na primeira metade de 2000, ao tempo da segunda presidência portuguesa da União Europeia. 

Cabia-me, por essa altura, em substituição de Jaime Gama, chefiar, por parte da União, uma reunião em Bruxelas com uma delegação da Moldova (ou Moldávia, como alguns “tintinólogos” gostam), no quadro do diálogo com aquela antiga República da União Soviética, nos dias de hoje também candidata a uma futura adesão - porque ou há moralidade ou comem todos!

A Moldova é um país política e economicamente frágil, situado entre a Roménia e a Ucrânia. Da Moldova cindiu-se, há muito, a região da Transnístria, um território pró-russo onde existe uma base militar que Moscovo tem encontrado sucessivos pretextos para não abandonar, desde o fim da União Soviética. A Transnístria, que ambiciona ser reconhecida como uma República independente, parece estar à espera de poder um dia ser integrada na Federação Russa - o que poderia acontecer se a “operação militar especial” que Moscovo leva a cabo na Ucrânia conseguisse expandir-se ao ponto de ali chegar. De Odessa à fronteira da Moldova são menos de 60 km! Entre a Moldova e a Transnístria mantem-se um permanente ambiente de tensão política, embora sem afloramentos militares recentes, com a primeira nunca reconciliada com a ideia de perder, em definitivo, o controlo da segunda.

A chefia da delegação moldava a essa reunião era assegurada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Nicolae Tabacaru, um homem muito agradável e cordial, com quem, já não sei bem como, quando e porquê, eu tinha estabelecido uma muito boa relação pessoal anterior.

Semanas antes dessa reunião em Bruxelas, Nicolae Tabacaru contactou-me, fazendo um pedido: gostava que o vinho que viesse a ser servido durante o almoço, aquando desse encontro entre a União Europeia e a Moldova, fosse “da sua colheita familiar”. Era, disse-me, uma forma de demonstrar o seu reconhecimento pela abertura que a União vinha a demonstrar face ao seu país. Ao mesmo tempo, era também um modo de promover “o excelente vinho moldavo”.

A ideia pareceu-me aceitável e, por um mecanismo logístico que se montou já nem sei como, a embaixada da Moldova fez chegar uma partida desse vinho ao edifício Justus Lipsius, onde funciona o Conselho de Ministros da União, a montante da reunião.

Em regra, os almoços na sala do andar de topo do edifício (7° andar, se a memória não me falha) tinham uma qualidade razoável, embora não primassem pela imaginação e diversidade. Para os membros dos governos, que chegavam das capitais, era uma experiência de quando em quando, mas, para os embaixadores dos então Quinze, aquilo devia ser uma imensa “seca”. O vinho servido, às vezes originário do país detentor da presidência rotativa (mas duvido que os finlandeses ousassem ir além da vodka!) era, recordo, quase semprevde uma qualidade bastante razoável, embora nunca deslumbrante, por assumida modéstia orçamental.

Durante a manhã, Tabacaru e eu tínhamos conduzido os trabalhos na forma ritual. Este tipo de encontros obedece a um modelo “standard” e, salvo na ocorrência de questões pontuais, corre com uma suave linearidade. Acabada a reunião, convidei-o a acompanhar-me, pelo elevador, ao local do almoço. Agradeci-lhe o amável gesto de ter oferecido o vinho para a ocasião. Tabacaru estava radiante: ia ser uma oportunidade para a União, através dos seus embaixadores, experimentar o tal “excelente vinho moldavo”, ainda por cima da sua tal “colheita familiar”.

Sentados para o repasto, abri com um brinde, durante o qual, para além das tradicionais palavras sobre a “importância das relações entre a Moldova e a União Europeia”, tenho a certeza de ter destacado o facto do nosso hóspede ter tido a gentileza de nos trazer o vinho do seu país, o que talvez fosse inédito numa ocasião daquele género (ou talvez não).

Ainda tenho na imagem a vistosa entrada dos empregados de mesa - que sempre acho que eram italianos, mas devo estar a caricaturar - avançando, com estilo, para a meia dúzia de mesas espalhadas pela sala, levando na mão garrafas sem rótulo, cujo conteúdo foram deixando nos copos, criando uma imensa expetativa.

Os segundos seguintes, porém, foram mais inesquecíveis: os esgares de desgosto, logo ao primeiro trago, daqueles diplomatas “chevronés”, mirando-se uns aos outros, incrédulos, constituiu um momento único. O vinho era, sejamos claros, uma inenarrável zurrapa! 

Tabacaru, em frente a mim, fitava-me, sorridente, desejoso de recolher a minha opinião. Muitos anos de profissão ensinaram-me a cultivar, para os momentos certos, uma apreciável dose de hipocrisia amável: “C’est un saveur plutôt intéressant. Ce sont des cépages nationales?” 

Enquanto Tabacaru me explicava, em detalhe, a feitura do néctar, com as notas da tradição familiar, eu olhava, em cumplicidade de desespero, o nosso embaixador, Vasco Valente, que já devia estar a antecipar o que o esperaria, quando, no final da refeição, tivesse de aturar os comentários dos colegas, sobre a “brilhante” ideia que eu tivera em deixar trazer aquela pisorga para a a mesa. Basta pensar no que terá dito o francês Pierre de Boissieu! Eu, durante semanas, ainda aturei algumas graças: “Francisco, tu sais où on peut acheter quelques bouteilles de la production de ton ami moldave?”

Contudo, as restantes mesas ainda podiam remediar a tragédia, notando-se uma coreografia apressada pela sala, por forma a garantir o rápido fornecimento de um outro vinho. Na nossa mesa, isso era impossível: até ao final da refeição, sob o olhar deliciado do meu amigo Nicolae Tabacaru, tivemos de manter, com o garbo possível, o gasto, imagino que tão moderado quando a cerimónia o permitia, de alguns copos daquela intragável produção. Quantas garrafas de água Perrier não teremos pedido, para atenuar o nefasto efeito gástrico da mistura…

5 comentários:

Flor disse...

Sr. Embaixador, não teve curiosidade de ter provado o vinho antes do almoço? É sempre arriscado quando não se conhecem as castas, como sabe.

Nuno Figueiredo disse...

noblesse oblige.

João Cabral disse...

Havia comentado que Moldova é para os círculos diplomáticos e oficiais, por razões político-geográficas. Não abrange o resto dos falantes. A forma corrente e nada incorrecta é Moldávia.

Joāo Mira Gomes disse...

Caro Francisco, estive nesse almoço e lembro-me bem da coreografia e do vinho... diplomata sofre!!
Abraço amigo, boas férias e boas leituras

Francisco Seixas da Costa disse...

Forte e saudoso abraço, João

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