segunda-feira, agosto 29, 2022

O sorriso do Duarte

Agosto de 1975. Palácio das Necessidades. Eu, acabado de tomar posse como diplomata, mas ainda nos últimos dias de tropa, com farta bigodeira e cabelo “Verão quente”, de camisola de gola alta, teimando em não usar gravata. Ele, impecável no seu blazer azul, imagino que com o lencinho a pingar do bolso, calça clara, já diplomata “por uma pinta”.

- “Tás” bom?! Já não nos víamos há muito tempo? Que é feito de ti?

- Desculpe. Deve estar a confundir-me com o meu irmão, com o Tó. 

Era isso. Ele era o Duarte Ramalho Ortigão. Eu tinha sido colega de ano e de curso do irmão, António Ramalho Ortigão. Ambos eram muito parecidos.

Passou, entretanto, década e meia. A vida profissional, como é de regra, deu-nos destinos diferentes. Mas, a partir de 1990, por mais de quatro anos, haveríamos de coincidir em Londres, ele como cônsul-geral, eu como ministro-conselheiro da embaixada.

Quantas belas noitadas, em família e com amigos, nós então tivemos! Restaurantes (eu, já então, “pesquisador” de locais bizarros), idas aos cavalos a Ascot, às regatas de Henley, às receções de Buckingham.

Em uma dessas receções, a princesa Diana aproximou-se da delegação portuguesa e, vendo pingar dos pescoços, meu e do Duarte, que estávamos impantes nas nossas casacas, a insígnia da Cruz de Cristo, sopesou com a mão, atrevida, a insígnia do Duarte (e não a minha, vá-se lá saber o porquê da discriminação!), e inquiriu junto do embaixador António Vaz Pereira, que chefiava o nosso grupo: "Ambassador, you don't have it?". Vaz Pereira, que tinha ao peito outras condecorações bem importantes, mas não tinha a Cruz de Cristo, respondeu, diplomático: "I'm working for it, Your Highness!".

Nesses anos de Londres, ambos construímos então uma bela amizade, com ele e com a Binha, feita de expedições familiares a Portobello Road (eu baldava-me bastante e fazia-me “representar”, valha a verdade, porque aproveitava essas manhãs de sábado para pôr em dia o sono das noites da semana), onde ele era o maior “expert” em antiguidades e descobridor de velharias que valiam a pena.

O Duarte era extrema “boa onda”, era muito boa pessoa. Tinha um riso saudável, uma gargalhada muito franca. Mantinha um ambiente familiar de imenso equilíbrio, com uma prole de que, ele e a Binha, cuidavam ao pormenor, numa harmonia que todos admirávamos.

Entre algumas outras ocasiões, lembro-me de um agradável jantar ao ar livre, no Pireu, numa viagem nossa a Atenas, creio que idos de Nova Iorque, ao tempo em que ele era embaixador na Grécia. Nunca esqueci, também, que, em 2009, à nossa chegada a Paris, estando ele a horas de sair de embaixador na Unesco, insistiu em oferecer-nos um jantar de boas-vindas. Entre nós, a conversa fluia sempre, bem disposta, como se nos tivéssemos deixado na véspera. 

Num dos períodos mais complexos da pandemia, telefonei a saber da sua saúde, que tinha ecos de ter atravessado momentos complexos. Estava com um excelente espírito, falámos em organizar uma jantarada, “quando sairmos desta”. 

Afinal, já não vai ser possível. Há pouco, disseram-me que o Duarte saiu ontem de cena, vítima dessa tal pandemia que, afinal, continua a andar por aí.

Deixo um beijo de imenso pesar à Binha e ao filhos, bem como um abraço ao Tó. Não vamos poder contar com o sorriso bom do Duarte. Cada vez mais, esta vida anda pela hora da morte.

3 comentários:

Flor disse...

Lamento.

Anónimo disse...

Podes censurar à vontade Seixas da Costa, meu grande ordinário, que eu estou a mandar os links do blogue, um por um, para todos os teus leitores. Está tudo a receber a verdade suprema. You lose, I win!!! Fuck you!!!!!!!!!!!

Francisco Seixas da Costa disse...

Luís Lavoura. O bom senso e o bom gosto exigem-se por aqui. Tenho sido demasiado tolerante consigo. Os seus dois últimos comentários são eliminados.

25 de novembro