sábado, agosto 20, 2022

A Crimeia e a Ucrânia


A Crimeia faz parte da Ucrânia. Assim o diz, de forma inequívoca, o Direito Internacional. Em 1991, quando ficaram definidas as fronteiras dos 15 países que constituíam a antiga União Soviética, nenhuma dúvida parece ter subsistido, mesmo para Moscovo, de que a Crimeia integrava a soberania da nova Ucrânia. Prova indireta desse reconhecimento é o facto de a cidade de Sebastopol, onde está sedeada a frota russa no Mar Negro, bem como a sua região adjacente, terem sido “alugadas” pela Ucrânia à Rússia, que, até 2014, pagava uma “renda” por essa presença. Só se é “inquilino” de uma propriedade alheia.

Em 2014, na imediata sequência dos conflitos internos ocorridos na Ucrânia, com a secessão de zonas russófonas do Donbass e dos novos equilíbrios que resultaram no governo central em Kiev - onde um indiscutível golpe de Estado, muito estimulado pelo ocidente, afastou um presidente pró-russo que antes havia sido legitimamente eleito - a Rússia avançou para a ocupação da Crimeia. Imagino que alguns possam argumentar com algumas “technicalities”, para contestar a factualidade do que acabo de afirmar, mas esta é a realidade política incontroversa para a generalidade da comunidade internacional.

Convém notar que nada de particular se tinha passado naquele território que justificasse essa ocupação. Contrariamente às acusações de discriminação das populações russófilas no Donbass, não havia nota de idêntico procedimento, por parte de Kiev, na Crimeia. Tratou-se, manifestamente, de um gesto oportunista, de aproveitamento da fragilização do novo governo de Kiev, por virtude da secessão de territórios do Donbass, também ela um movimento estimulado por Moscovo, como hoje está bem claro.

De imediato, a Rússia organizou na Crimeia um referendo, com contornos de legitimidade mais do que duvidosa, na sequência do qual o território declarou a sua independência face à Ucrânia. Em seguida, a “independente” Ucrânia pediu a adesão à Federação Russa, que aceitou esse “pedido”, passando a integrá-la. Mais “fácil” não podia ser.

A operação foi tão escandalosa que raríssimos foram os países que reconheceram o “golpe de mão” russo sobre a Crimeia. Basta lembrar, e isso não deixa de ser significativo, que Estados como a China ou a Turquia nunca aceitaram essa anexação.

A maioria do ocidente reagiu fortemente à anexação russa da Crimeia. Moscovo foi, por esse motivo, objeto de sanções unilaterais - dos EUA, da União Europeia e de alguns Estados “like-minded”. Essas sanções permanecem em vigor até hoje. A Rússia, também por esse motivo, foi afastada do G8.

As sanções ocidentais foram a resposta ao “golpe de mão” russo na Crimeia. Nenhuma ação ou apoio militar à Ucrânia foi previsto no quadro dessa reação ocidental. Já se perceberá por que sublinho isto.

Passaram, entretanto, oito anos. Em 24 de fevereiro de 2022, a Rússia invadiu militarmente Ucrânia, claramente com o objetivo de derrubar o governo em Kiev e, como “second best” face à constatação do seu fracasso em conseguir esse objetivo, decidiu ocupar partes do seu território, ao que tudo indica para sua futura integração na Federação Russa, baseado em “referendos” como mesmo grau de legitimidade como aquele que, em 2014, organizou na Crimeia.

Os EUA, a UE e outros “like-minded” decidiram reagir, impondo um forte pacote de sanções à Rússia e, desta vez, apoiando, financeira e militarmente, a resposta do governo de Kiev a esta flagrante agressão à sua soberania. Mas gostava de sublinhar: esses países condenaram a agressão militar russa face ao território que a Ucrânia possuía nessa data, isto é, aquele que derivava das fronteiras de 1991, já sem a Crimeia nem as regiões do Donbass que se haviam cindido em 2014.

Os países ocidentais - é preciso dizer isto com clareza - não se mobilizaram (nenhuma sua declaração o diz) para apoiar militarmente a Ucrânia numa ação de recuperação dos territórios que o país tinha perdido em 2014, mas apenas para assegurar a sua soberania sobre o “statu quo ante”, o que Kiev detinha sib controlo no dia 24 de fevereiro de 2022. Relembro que a reação desses países no tocante à tomada da Crimeia pela Rússia, já se tinha objetivado no pacote de sanções de 2014/2015. E tinha-se ficado por aí.

Há, assim, agora, uma constatação e uma pergunta legítimas.

A constatação é a de que a ajuda militar dada pelo ocidente à Ucrânia, nos últimos seis meses, e a que aí vier no futuro, pode e deve ser utilizada por Kiev para a defesa das suas fronteiras “de facto” em 25 de fevereiro de 2022, bem como para a recuperação dos territórios que a Federação Russa, contra o Direito Internacional, tiver ocupado a partir dessa data.

A pergunta é se essa essa ajuda pode ser utilizada por Kiev para a recuperação de territórios já perdidos em 2014 para a Rússia, como a Crimeia, ou para estruturas institucionais na sua dependência político-militar (como manifestamente o são as “repúblicas” de Donetsk e Lugansk, que praticamente só a Federação Russa reconhece). É que, para essa ocupação ilegítima de territórios, a resposta já haviam sido as sanções de 2014/2015.

Do mesmo modo, coloca-se a questão sobre se Kiev pode utilizar esse material militar para atingir posições em território russo. Lembremo-nos que esse foi já um debate havido no seio da administração americana - sobre se se davam à Ucrânia meios defensivos ou também ofensivos.

Terá esta questão importância, numa guerra onde as zonas cinzentas são imensas? Acho que tem. O empenhamento dos países amigos do governo de Kiev, em termos de cedência de material militar, não pode fazer-se sem que esses países tenham clara consciência dos contextos operacionais em que esses meios irão ser usados.

Termino repetindo o que disse no início deste texto: a Crimeia, e da mesma forma todo o Donbass, continuam a ser, indiscutivelmente, à luz do Direito Internacional, parte integrante da soberania da Ucrânia.

4 comentários:

Anónimo disse...

Acho deveras interessante a solenidade com que Seixas da Costa se refere ao "Direito Internacional". Parece que falamos de um "absoluto" sem autoria conhecida, respeitado por todos em todas as circunstâncias. Fica-se com a ideia de que as das linhas que o escrevem não têm autoria na cultura e nos interesses ocidentais. E parece ainda que o respeito do ocidente pelo que escreveu é total, que não invoca o DI " à-la-carte" , ou, como se diz em inglês, quando lhe dá jeito.
Exemplo concreto: se o DI não reconhece Taiwan como Estado independente, com base em que critério o ocidente se relaciona institucionalmente com esse território como se ele não fizesse parte da China ?

MRocha

Joaquim de Freitas disse...

ireito Internacional , Senhor Embaixador ?

Quem pode hoje evocar o D.I. quando existe Guantanamo ? Onde, tanto o direito internacional quanto a Constituição dos Estados Unidos foram violados em nome da prioridade da luta contra o terror?

Onde estava o D.I. quando os EUA invadiram o Iraque? E quando a NATO invadiu a Líbia? E os EUA invadiram Grenada?

Contrariamente ao que se passou com a Nicarágua, quando os EUA, uma grande potência, foi condenada por uma instância internacional, (CPI) e revelou, a primazia do DI sobre a política de poder.

Houve muitos outros casos nos quais os EUA e outras potências ocidentais, se borrifaram do Direito Internacional… Como no Kosovo e mesmo no Afeganistão.

Assistimos todos os dias à contradição entre padrões e práticas. O direito internacional, geralmente proibiria o uso da força, e a prática mostraria completa indiferença a essa proibição. A ideia dominante é que esta é uma ilustração da inconsistência e inutilidade do direito internacional, mesmo para alguns é um tema de escárnio.

E isso deve-se essencialmente aos Estados Unidos, que pretendem recuperar um direito quase ilimitado de uso da força armada.

Quando George W. Bush formulou uma doutrina de guerra preventiva que preocupou muitos Estados, onde se encontrava o Direito Internacional?

Quando Donald Trump oferece o Golan a Israel, onde estava o Direito Internacional?

Não acha, Senhor Embaixador, que assistimos aqui a uma espoliação do Conselho de Segurança e da ONU? E que tudo isso abre a porta de forma duradoura à preferência por acções armadas unilaterais, o que de facto corresponde a apagar todos os avanços do direito internacional?

E quando a Rússia assiste ao assassinato de milhares dos seus compatriotas russófonos no Donbass, durante oito anos, e paralelamente assiste ao avanço da NATO em direcção de Moscovo, verdadeiro objectivo dos americanos nas suas interferências desde antes de Maidan, e do golpe de estado que financiaram e armaram, justifica plenamente a sua acção armada unilateral.

Como diríamos em bom francês: “Pourquoi se gêneraient-ils? “

Carlos Antunes disse...

Caro Embaixador
O problema é que o Direito Internacional na célebre frase do eminente jurista italiano Francesco Carnelutti se assemelha a “uma espingarda, ainda que descarregada”.
Por exemplo, o Estatuto de Roma, que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional (TPI), definiu 4 crimes internacionais fundamentais: genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão.
O Estatuto de Roma contém, além disso, uma lista exaustiva de actos de agressão que podem gerar responsabilidade criminal individual, os quais incluem a invasão, ocupação militar, anexação pelo pelo uso da força, bombardeio e bloqueio militar de portos (tudo isto ocorre na invasão da Ucrânia).
Ou seja, o crime de agressão – cuja primeira proposta de criminalizar a agressão, na esteira da invasão alemã da União Soviética na 2.ª Guerra Mundial, é curiosamente da autoria do jurista soviético Aron Trainin e que esteve na origem dos julgamentos de Nuremberg e Tóquio –, está também a par dos outros 3 crimes internacionais fundamentais, sujeito à jurisdição do TPI.
Parece-me, pois, que a invasão da Ucrânia pela Federação Russa consubstancia o crime de agressão, geralmente entendido como um crime de liderança que só pode ser cometido por aqueles com o poder de moldar a política de agressão a um outro Estado, que embora não constasse do texto originário do Estatuto de Roma de 1998, foi depois incorporado na revisão do tratado adoptada na Conferência de Revisão de Kampala (2010) pelos estados partes do Tribunal, estando igualmente sujeito à jurisdição das normas do TPI.
Porque é que só se menciona a investigação aos crimes de guerra (da autoria da Rússia, mas também da Ucrânia), enquanto a responsabilização individual pelo crime de agressão da Rússia à Ucrânia (a génese dos crimes de guerra perpetrados no terreno) que também carece obviamente de investigação pelo TPI continua ausente e a ser ignorada pela comunidade internacional.
Se Carnelutti fosse vivo, diria que a “espingarda russa está muito bem carregada” e como tal se impõe no Direito Internacional.
Cordiais saudações

Lúcio Ferro disse...

Direito Internacional? Não me faça rir. Vá perguntar aos chineses, vá perguntar aos indianos, vá perguntar aos africanos, vá perguntar aos árabes, vá perguntar aos sul-americanos o que acham sobre isso. Um bom dia senhor embaixador e bons repastos, que a fatura do "direito internacional" está a chegar e olhe que vai ser alta, muito alta.

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