segunda-feira, novembro 09, 2020

A hora de Cinderela


Em 1983, quando vivia em Luanda, colocado na nossa embaixada, foi, a certa altura, decretado um recolher obrigatório, que, ao que recordo, se prolongou por um período superior a dois anos. As embaixadas tinham livre-trânsitos próprios, mas, mesmo assim, a circulação nesse período era muito pouco confortável. Havia controlos armados em certos pontos da cidade, assegurados por jovens soldados, cuja fragilidade à progressiva influência da cerveja tornava tudo muito imprevisível. A “hora da Cinderela” era a meia-noite, a partir da qual a proibição de circular se iniciava, até às cinco da manhã.

Quando nos distraíamos, depois de um jantar mais prolongado, havia que conduzir com a máxima das cautelas, ao aproximarmo-nos desses controlos. Nem deveríamos ir demasiado lentamente, para não dar impressão de que podíamos estar a tramar algo, nem mais rapidamente, para não criar a ideia de que nos preparávamos para fugir à fiscalização. Depois, era o diálogo, sempre sorridente, com os “camaradas”, até termos a luz verde para avançar. Aí vinha o último perigo: tinha de haver a noção exata de que fôramos autorizados a prosseguir. Como, por vezes, as confusões de linguagem existiam, recordo-me que arrancava sempre com os olhos postos no espelho retrovisor, não fosse dar-se o caso do militar ter entretanto mudado de ideias e querer ver mais algum papel. É que se ele interpretasse esse arranque como uma desobediência, era difícil depois arguir contra uma rajada de Kalashnikov...

Em casa, a tentar dormir, no silêncio da capital angolana, sem carros a circular, começou por ser desagradável ouvir, com uma regularidade quase quotidiana, essas rajadas de metralhadora. No dia seguinte, de se perguntasse, ninguém tinha ouvido falar de qualquer incidente grave, pelo que essa sonoridade passou a fazer parte da nossa paisagem auditiva. Confesso que, ao fim de uns meses, aquilo quase que não interrompia o sono.

Nestas noites silenciosas de Lisboa, que agora começam, esse risco não existe. No que me toca, pouco sensível aos pruridos libertários que agora por aí emergem, apoio e respeito as medidas decididas, pelo interesse comum que reconheço na sua entrada em vigor.

Mas irei lembrar-me deste recolher obrigatório na próxima noite de Santo António em que, tão cedo quanto possível, todos nos possamos cruzar sem máscaras, bebendo copos pelas ruelas de Alfama, em espaços atulhados de gente, sardinhas e fumo. Essa é a minha Lisboa! Não a dispenso!

10 comentários:

Corsil Mayombe disse...

Esta historieta carece de pertinente precisão.
Sejamos claros, os controlos armados com jovens soldados,aquando do recolher obrigatório em Luanda,e a fragilidade dos ditos "operacionais" era deveras imfluenciada...pela quantidade de cocktails CUCA/LIAMBA consumidos.

Luís Lavoura disse...

Na noite de Santo António será junho e a epidemia terá já desaparecido de Portugal, tal e qual como desapareceu em junho passado, independentemente de quaisquer medidas governamentais e de quaisquer esforços dos portugueses.

Luís Lavoura disse...

apoio e respeito as medidas decididas

Espere pelas exceções que lhes serão feitas. Agora já dizem que afinal se pode ir dar um passeio higiénico, que se pode ir fazer compras no supermercado (que estará aberto!), que se pode ir buscar comida ao restaurante (que estará aberto!), que se pode ir à farmácia (que estará aberta!). Enfim, na prática, pode-se tudo. É um recolher obrigatório à portuguesa: ninguém precisa de recolher.

Anónimo disse...

O que se pode fazer agora é o mesmo que se podia fazer no tempo do confinamento. Não é difícil entender

Flor disse...

Noite de Santo António? Será que quis dizer Dia de São Martinho? "Come-se castanhas e bebe-se vinho"??

Flor disse...

Tenho ouvido várias reclamações no que respeita o confinamento nos dois fim de semana a partir das 13 horas. Agora imaginem o que seria se tivessem que ficar confinados das 5 da manhã de sábado até às 5 da manhã de segunda feira???? "São pobres e mal agradecidos" é o que é!!☺️🙄

Anónimo disse...

O importante é isto:

Eu confino-ME
Tu confinas-TE
Ele confina-SE
Nós confinamo-NOS
Vós confinais-VOS
Eles confinam-SE

Luís Lavoura disse...

Anónimo

O que se pode fazer agora é o mesmo que se podia fazer no tempo do confinamento.

Então porque é que lhe chamam "recolher obrigatório"?

Que eu saiba, um recolher obrigatório consiste numa proibição de andar na rua e, correspondentemente, numa proibição da abertura de quaisquer estabelecimentos comerciais.

Se os supermercados e os restaurantes são autorizados a estar abertos, se as pessoas podem sair à rua para passear, então não é recolher obrigatório!

Estão a enganar as pessoas.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Parece que há por aí muita gente a precisar de ler o comunicado de Joe Biden sobre as notícias da vacina da Pfizer. Serão precisos largos meses depois do início do processo de vacinação para que se obter um controlo eficaz da pandemia, pelo que iremos continuar a necessitar de máscaras, distanciamento e medidas de higiene.
Afirmar que a pandemia desapareceu em junho passado, mais ainda que tal se deveu ao acaso, é digno de quem acredita na existência de gambuzinos.

Luís Lavoura disse...

Francisco de Sousa Rodrigues

A epidemia desapareceu da Europa em junho passado, não por obra do acaso, mas por obra do verão, tal e qual como desaparecem nessa época todas as epidemias de doenças respiratórias virais.

Acabado o verão a epidemia regressou, como seria expectável.

Em junho de 2021 a epidemia voltará a desaparecer, se não tiver desaparecido ainda antes por obra da progressiva imunidade que as pessoas lhe vão adquirindo.

João Miguel Tavares no "Público"