A um ano de distância, ninguém parece ter a menor dúvida de que Marcelo Rebelo de Sousa só não verá renovado o seu mandato como presidente da República se acaso decidir não se recandidatar. A sua extraordinária popularidade, mesmo que possa vir a sofrer entretanto alguma erosão, garante-lhe uma posição mais do que confortável face a qualquer putativo concorrente. Além disso, prevalece maioritário no país o sentimento de que a sua prestação, por muitas críticas que a alguns possa merecer, em especial no tocante à forma excessiva como por vezes se expõe no exercício do cargo, tem-se constituído como um contributo positivo para a estabilidade e para o apaziguamento de tensões, sempre num registo de rigor institucional.
Não anunciando por ora a sua recandidatura, o que tem toda a lógica à luz dos precedentes, o presidente tem igualmente sublinhado que a ponderação dessa decisão não está concluída, como que deixando claro que um juízo sobre as suas condições de saúde poderá sobrepor-se à sua evidente vontade de vir a exercer um segundo mandato. Neste domínio, porém, como alguém já assinalou, Marcelo Rebelo de Sousa não está totalmente “livre”. É que, no caso da decisão vir a ser negativa, o atraso no respetivo anúncio tem óbvios impactos sobre o processo de constituição tempestiva de uma alternativa no seio da sua própria família política. E todos podemos imaginar o que por aí viria, num cenário de não recandidatura do presidente! Por isso, o tempo de anúncio de uma não recandidatura terá de ser diferente do de uma decisão em sentido oposto.
Partamos, contudo, do princípio de que Marcelo Rebelo de Sousa anunciará, quando lhe aprouver, que será candidato a sucessor de si mesmo. Nem por isso as eleições deixarão de ser um tempo precioso para medir a temperatura política do país.
A quase certa vitória de Marcelo Rebelo de Sousa arrasta, aliás, consequências interessantes, em especial no lado direito do espetro político. Tal como nas últimas eleições legislativas, em que já se dava por adquirida a derrota do PSD e do CDS, muitos dos seus eleitores tradicionais se sentiram livres para fazer escolhas em novas alternativas, também em 2021 alguns dos potenciais votantes (mesmo que, no fundo, não muito entusiastas) no atual presidente poderão ser tentados a dar-se ao “luxo” de vir a oferecer o seu voto a outros candidatos da direita política.
Um partido como o “Chega” terá, como é quase certo, o seu líder como candidato, mas podemos perguntar-nos o que acontecerá àqueles eleitores de direita que, tendo justificado pudor em ir por esse caminho, mas querendo mostrar o seu desagrado face ao atual presidente (mas com a antecipada certeza de que este será reeleito), desejem robustecer com o seu voto o surgimento de um outro nome? Podemos imaginar que uma ala mais liberal (como o tempo altera os conceitos...) dentro do PSD, bem como quantos se revêem numa explícita direita política, possam ser tentados a seguir uma candidatura conservadora, com uma matriz “justicialista”, protagonizada por alguém que faça da luta contra a corrupção o seu “cavalo de batalha” (os nomes já andam por aí...). Refiro-me não apenas a quantos, num passado não tão longínquo como isso, apoiaram com o seu voto os governos Passos-Portas, mas igualmente a novos eleitores, tributários da doutrinação liberal ou capturados pelo neo-conservadorismo.
Está já muito claro que a temática do combate à corrupção, com razões justificadas pelo apelo muito forte que ela hoje tem na sociedade portuguesa, vai continuar muito presente no debate político futuro. Não é, assim, de excluir que a próxima campanha presidencial possa abrir uma discussão sobre se o papel do chefe de Estado, num regime semi-presidencialista como a “plasticidade” do nosso, em que parte do recorte funcional depende da vontade do próprio e da existência de condições políticas conjunturais para o seu exercício, não deverá colar-se a um perfil mais pró-activo no combate à corrupção. O clamor por uma maior intervenção do chefe de Estado junto do executivo, para reforço e independência das estruturas policiais e das instituições judiciais pode vir a figurar nessa agenda política de campanha.
Há boas razões para pensar que este tipo de abordagem, cujo grau de racionalidade e objetividade política sempre dependerá do nível de populismo que lhe esteja ou não associado, possa vira projetar-se transversalmente às várias áreas político-partidárias, quiçá procurando transcendê-las. Quero com isto dizer que será expectável que, ao lado de uma ou várias candidaturas de direita, que surjam com este “leit motiv” no centro da sua campanha, possam emergir candidaturas oriundas da esquerda, esperando colher apoios em terrenos próximos do PS (que, tudo o indica, não irá ter candidato próprio, mas onde se sabe haver gente relutante em votar no atual presidente), mas igualmente em outros setores políticos, como a área de votantes do Bloco de Esquerda e do Livre. A lógica explicativa da emergência de tais candidatos será muito simples: evitar que a bandeira da luta contra a corrupção fique monopolizada pela direita.
Se acrescentarmos a estes possíveis candidatos aquele que o PCP e outras formações não deixarão de apresentar, com vista a fixar, como habitualmente, o seu eleitorado, bem como os “espontâneos” do costume, está desenhado um cenário em que, ao contrário daquilo para que uma visão simplista poderia apontar, a vitória de Marcelo Rebelo de Sousa não terá a expressão estratosférica, em termos de números, que alguns vaticinavam.
Estou mais do que certo de que o atual presidente não vive com fantasmas de emulação virtual com o passado, agradando-lhe mesmo o facto de poder vir a ser o protagonista central de um momento eleitoral que coincide com um tempo político que, em face da fragmentação partidária reinante no parlamento, será de uma muito maior exigência política. E, por isso, para ele, muito mais estimulante.
Vão ser tempos interessantes para viver, pedindo de empréstimo uma velha expressão chinesa.
(Artigo que hoje publico a convite do “Expresso”)
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