sexta-feira, janeiro 31, 2020

O reino


Foi em 2016, em Londres, no caminho para o aeroporto, num “mini-cab”. Viviam-se os tempos anteriores ao referendo sobre o Brexit.

Perguntei ao motorista o que é que ele pensava da possibilidade do Reino Unido vir a sair da União Europeia.

O homem, de tez escura e sotaque iniludível, tinha ideias firmes sobre o assunto: nas últimas eleições tinha votado pelo partido anti-europeu UKIP, por achar que havia toda a vantagem em que o país abandonasse “essa coisa de Bruxelas”. E logo acrescentou: “Não sei de que país o senhor é, mas nós já estamos cheios de estrangeiros, não queremos cá mais”.

Expliquei que era português, mas que não vivia no Reino Unido. Ele comentou, pouco afável: “Há já cá muitos portugueses”.

Deixei “pousar” a conversa. “Onde é que nasceu?”, perguntei, minutos depois. O homem: “No Sri Lanka. Vim há 11 anos para cá. Tenho nacionalidade britânica”. Não me enganara e não resisti a comentar: “Como a raínha...”

Um cidadão da Comunidade britânica, como era aquele motorista, sentia-se “um deles” (lembrei-me da expressão clássica de Margareth Thatcher: “one of us”). E “eles”, sentiriam o mesmo?

Estrangeiro, para aquele homem, era um português ou um grego que, graças a “essa coisa de Bruxelas”, andava a disputar-lhe os postos de trabalho.

Semanas depois, no referendo, esse meu motorista ocasional iria votar “leave”. Ao seu lado, exatamente com o mesmo sentido de voto, iriam estar milhões de cidadãos nascidos e residentes fora das grandes cidades do Reino Unido. Essa sua atitude era, entre outras razões, o resultado dos crescentes receios contra a imigração, nomeadamente de pessoas como o meu motorista, o qual, por outro motivo, iria também ser favorável ao Brexit.

A graça do mundo é que ele nunca é linear.

4 comentários:

Jaime Santos disse...

Isso, Sr. Embaixador, é uma forma muito educada de classificar uma atitude que é hipócrita, depois de ter o passaporte, esse homem não quer para os outros as oportunidades que lhe deram a ele.

Caberia aliás lembrar aos Portugueses, sobretudo aos que vivem em Portugal mas têm familiares no estrangeiro (como eu), ou que vivem ou viveram no estrangeiro (como eu vivi) que insurgirem-se contra a imigração pode fazer com que, em bom Português, o cuspe ainda lhes venha a cair na cabeça...

Claro que o deputado Ventura não se deve preocupar com isso, muito embora ele tenha feito o doutoramento na Irlanda (com uma tese em que diz o contrário do que enuncia hoje, pelos vistos), já que ele é um membro da elite, nunca sofrerá com o fechamento das sociedades. Agora, quem depende da possibilidade de trabalhar no estrangeiro como muitos de nós seria bom que tivesse cuidado com o que deseja...

Finalmente, quem se preocupa pelo estado da suposta 'cultura cristã europeia' era bom que se lembrasse que se havia pessoas que Cristo acusava eram os hipócritas que tiravam o argueiro do olho do vizinho e não viam a trave à frente dos seus próprios olhos... Não vale a pena defender aquilo que só existe na nossa imaginação...

Paulo Guerra disse...

Como se diz por cá, o que nasce torto nunca se endireita. Porque ninguém tinha sequer pedido o referendo a Cameron. Enfim. Sobretudo nunca vi uma campanha tão nojenta e com tantas mentiras como a campanha do Remain. E ironia as ironias, parecida com a do motorista paquistanês, muitos dos que têm medo que alguém lhes roube o posto de trabalho em Inglaterra nem sequer trabalham.

Paulo Guerra disse...

Como é óbvio onde se lê: "Sobretudo nunca vi uma campanha tão nojenta e com tantas mentiras como a campanha do Remain." Devia ler-se a campanha do Leave. E que para sermos mais precisos só açelarou ainda mais a campanha absolutamente difamatória das últimas décadas. Que para voltar a ser mais preciso acontece em quase todos os estados membros infelizmente. A UE é a maior construção política da humanidade. Infelizmente basta ver o estado catatónico da ONU. Mas continua a ser muito fácil bater na UE nos estados membros. Em Portugal até pelo seu comportamento durante a crise. Quando curiosamente até começou por reagir bem. Até à "invenção" das dívidas soberanas. Claro que tem defeitos e virtudes. Como Portugal onde ainda há bem pouco tempo ouvimos uma governante pedir um interregno da Democracia. Num país com 10 milhões. Na UE muitas decisões ainda requerem um unanimismo e cada um de nós nem na reunião do condomínio vê essa capacidade. Mas a UE é que é pouco democrática. Simplesmente não se percebe como é que uma nação europeia isolada ousa sequer pensar que está mais protegida fora da UE. Devem pensar que vão conseguir negociar melhor com o mundo inteiro sozinhos e do lado de fora do maior mercado do mundo. Falta falar muito da UE em todos os estados membros. Sobretudo falar verdade para que todos os europeus tenham uma noção melhor do que realmente é a UE. Foi esta gaffe ao longo dos anos que levou o RU a este desfecho. Infelizmente vão ter muito tempo para perceber que não podiam estar mais errados. Que afinal a UE não é só as facturas do Remain.

Paulo Guerra disse...

Peço desculpa. Queria dizer outra vez, não é só as facturas do Leave.

O futuro