quarta-feira, janeiro 01, 2020

Começar o ano



Tinha tido o impulso de fazer concurso e acabei admitido, com umas centenas de candidatos, naquele emprego do “fundo da tabela” da banca pública. Fi-lo para evitar que os meus pais tivessem de continuar a custear, por mais tempo, as consequências de algumas trapalhadas universitárias que me estavam a interromper o curso. Ficaria por ali, apenas de passagem, antes de ingressar na “tropa”. 

Os colegas que vim a encontrar nesse emprego, todos mais velhos, alguns já com bastantes anos de profissão, eram homens (havia poucas mulheres) para quem ser bancário era uma tarefa para a vida. 

Hoje avalio melhor a riqueza que foi ter começado a trabalhar bem cedo, lado a lado com gente para quem esse quotidiano não tinha o mesmo caráter precário. Foi com essas pessoas que aprendi o significado do trabalho a sério. E, com algumas delas, construí uma amizade que dura até hoje.

Fora admitido na Caixa Geral de Depósitos, em Lisboa, no Calhariz, em meados de novembro de 1971. No último dia desse ano, à hora do almoço no Martins, uma tasca a caminho de Santa Catarina, onde íamos em grupo, veio à conversa a passagem de ano dessa mesma noite. 

O Murta, um saudoso colega algarvio, senhor de um humor fino, virou-se para mim e disse: "Você sabe como é que aqui este nosso colega, desde há muito, faz as passagens de ano?" 

Apontou para um homem de aspeto um tanto abrutalhado, que eu sabia que tinha tido um passado como operário. Da natureza da profissão, ficara-lhe uma atitude política que, em algumas coisas, vim a constatar que rimava bastante com a minha. Tinha um discurso pouco “fino”, saíam-lhe graçolas fortes, com efeito amplificado por uma voz muito sonora, que assentava bem num corpanzil avantajado.

Eu andava por ali há muito pouco tempo, não tinha a mais leve ideia do que estavam a falar, mas a gargalhada coletiva do grupo fez-me perceber que estava a perder alguma coisa. E o Murta prosseguiu: "Este homem não gasta champanhe no réveillon!" Estava cada vez mais baralhado e intrigado. 

O tal colega sorria, deliciado com a minha crescente curiosidade. "Ó homem, conte aqui ao Seixas como é que você passa os fins de ano!", rematou o Murta.

E ele contou. Não vou repetir aqui as brevíssimas palavras utilizadas, porque o JN não tem uma bola vermelha para alertar os leitores mais sensíveis. Só revelo que o hábito desse meu amigo era ir para a cama um quarto de hora antes da passagem de ano. E nunca ia sozinho... Cada um passa o "réveillon" como mais gosta, não é?

2 comentários:

Anónimo disse...

Temos que reconhecer que também é uma forma agradável de comemorar. Recordou-me que há muitas décadas, nos meus tempos de solteiro, também comemorei assim uma passagem de ano. Bons tempos.

Luís Lavoura disse...

para evitar que os meus pais tivessem de continuar a custear, por mais tempo, as consequências de algumas trapalhadas universitárias que me estavam a interromper o curso

Uma muito nobre atitude da parte do Francisco. Hoje em dia boa parte dos estudantes universitários não tem essa atitude - prolongam os cursos por muitos mais anos que devido, sem deixarem de pedir aos pais que custeiem as respetivas despesas.

O futuro