quinta-feira, janeiro 09, 2020

Não vale tudo


O presidente dos Estados Unidos da América ordenou a liquidação física, em território do Iraque, de um chefe militar do Irão. 

Os EUA não estão em guerra declarada com o Irão, embora seja evidente, desde há muito, a sua hostilidade para com o seu regime. Se olharmos para trás, verificaremos que o derrube do líder iraniano que Washington tinha como seu aliado fiel, o Xá Reza Pahlevi, em 1979, iniciou um período de ininterrupta tensão entre os dois países. A invasão da embaixada americana em Teerão, nesse mesmo ano, por entidades iranianas dependentes das respetivas autoridades, espoletou naturalmente essa tensão, que nunca mais se desvaneceu e atravessou, em maior ou menor grau, todas as posteriores administrações americanas. Os EUA, a partir de então, passaram a apoiar quem se opusesse ao Irão, como foi o caso do Iraque, na devastadora guerra entre os dois países (1980/88). 

Os evidentes e reiterados esforços do Irão para obterem a arma nuclear mereceram sempre uma forte rejeição da comunidade internacional, em especial dos EUA, do mundo ocidental em geral e dos adversários regionais de Teerão. Dentre estes, Israel (que possui armas nucleares, sem se submeter ao controlo da AIEA) é aquele que, reagindo às constantes ameaças do Irão face à sua existência como país, anunciou já poder vir a atacar as instalações nucleares iranianas, se a construção dessa bomba estiver prestes a concretizar-se (Israel fez isso contra o Iraque, pelos mesmos motivos, em 1981). Um grupo de importante de países ocidentais, incluindo os EUA (administração Obama), fez entretanto um acordo diplomático com o Irão, que previa um controlo vigiado do seu programa nuclear. Com Trump, os EUA afastaram-se desse acordo.

O Irão, não sendo um país árabe, é um Estado muçulmano que segue e promove o shiismo, uma das duas grandes obediências religiosas muçulmanas. A outra, o sunismo, tem como principal expoente a Arábia Saudita (mas também a Turquia ou a Irmandade Muçulmana do Egipto, embora com uma orientação divergente). Há países, porém, de que o Iraque é talvez o caso mais importante, onde o shiismo e o sunismo coexistem, com implicações no respetivo equilíbrio político interno, sendo o Irão regularmente acusado pelos seus adversários de promover núcleos shiitas em vários outros países, muitas vezes com fortes implicações político-militares, como acontece com o Hezzbolah, no Líbano, ou com as forças hutis, no Iémen. 

O proselitismo shiita do Irão, nas suas expressões agressivas, e a sua obsessão com a arma nuclear converteram o país num “trouble-maker” da sociedade internacional. Com um regime autoritário sob uma liderança religiosa de traços medievais, o Irão é um país que se sente acossado pela sua vizinhança, adotando com regularidade um discurso jingoísta que torna difícil a interlocução diplomática. Mais recentemente, porém, por um interesse próprio que se conjugou com outros esforços internacionais, as forças de Teerão desempenharam um papel não despiciendo na luta contra o Daesh.

Se quisermos ser honestos, teremos de reconhecer que os EUA, com a sua agressão unilateral contra o Iraque, em 2003, foram, a grande distância, os principais culpados da desregulação securitária que se vive na região do Médio Oriente. Se algumas fortes tensões já ali existiam, a invasão do Iraque, levada a cabo sob pretextos deliberadamente falsos, conduziu ao estilhaçar daquele país, com as consequências que se viram.

Ao atuarem violentamente como agora fizeram, sem o menor mandato internacional, executando uma ação de guerra, uma liquidação seletiva de um líder militar estrangeiro, à revelia das autoridades do país que os “convidou” para ajudarem à sua segurança nacional, os EUA colocam-se, com total desplante, à margem da ordem internacional, arrogando-se direitos que negam a todos os outros. Todas as razões que possam ter contra o Irão enfraquecem-se com este seu comportamento, convidando à retaliação e arriscando uma escalada. 

Os Estados de bem lutam por princípios, desde logo, seguindo-os. Essa deve ser a sua diferença.

10 comentários:

Anónimo disse...

Por momentos, pensei que o "não vale tudo" tinha a ver com a Espanha e a loucura justicialista que até já afronta as decisões da União Europeia. Afinal, é a propósito dos EUA e do Irão. Coisas aqui tão perto...

Anónimo disse...

Convém não esquecer que o hollyodesco regime do Xá foi uma invenção britânica que para dominar o petróleo iranianderrubou um regime laico tipo Ataturk. Como dizia Machel , estão na origem de muitos males. Agora, ninguém como os americanos fizeram tanto pela “grandeza” do Irão, que devia fazer um monumento a George Bush filho. E se é verdade que o regime iraniano é um troublemaker, a maior ameaça à paz na zona é Israel e o bandido que lá manda
Fernando Neves

Anónimo disse...

Anónimo das 21:30, mais ou menos a meio da distância que o Irão está dos EUA…
Por estas e outras é que o Direito Internacional Público não existe, apenas existem relações de forças. E infelizmente os EUA são agora a única grande potência, o que, somado ao facto de serem governados por um doido apoiado pela indústria de armamento, dá nisto.
Gostei de ver o reconhecimento de que aquilo que se passou no Iraque em 2003 (com Durão Barroso a servir de mestre de cerimónias)assentou em pretextos falsos. Agora a situação parece repetir-se e os EUA estão deliberadamente a procurar o confronto que faça os norte-americanos esquecer as razões do impeachment. De caminho alguém fará bons negócios. É a economia, estúpido!

Joaquim de Freitas disse...

1-" O proselitismo shiita do Irão, nas suas expressões agressivas, e a sua obsessão com a arma nuclear converteram o país num “trouble-maker” da sociedade internacional." , escreve o Senhor Embaixador.

Creio que Trump é um especialista das expressões agressivas, sobretudo quando promete visar 52 alvos no Irão, seja um para cada diplomata refém na embaixada americana, no tempo de Carter, esquecendo que o Irão poderia também visar 279 alvos humanos, um para cada passageiro assassinado pelos americanos quando derrubaram o Airbus de Iran-Air...no Golfo.

2- Creio que o afrontamento entre os dois países começou quando a CIA e os ingleses derrubaram o primeiro-ministro Mossadeg, em 1953, porque tinha nacionalizado o seu petróleo.

3- Sem esquecer os embargos de toda a espécie que puseram o Irão de joelhos, e a ajuda dos americanos a Saddam Hussein na guerra com o Irão, os Estados Unidos passaram a ser vistos como cúmplices da supressão (de liberdades) da sociedade iraniana, o que explica o sentimento antiamericano dos revolucionários.

4- Trump foi o primeiro presidente americano a mandar assassinar um membro dum Estado estrangeiro, e isto em tempo de paz…

E quando se sabe que na realidade o nome do General persa lhe foi fornecido numa lista, com outros, esperando que ele não o escolheria para o fazer assassinar, dá uma ideia do tipo que governa o Mundo. E dos conselheiros que o rodeiam!

Jaime Santos disse...

A acção americana caracteriza-se, com mais ou menos nuances, por um desprezo pelas normas do direito internacional que frequentemente os EUA nem sequer reconhecem (quer dizer, nem sequer incluíram na sua ordem legal interna), arrogando-se o direito de invadir Países terceiros (George W. Bush disse que deixava as NU para os advogados), ou de forma mais ou menos subtil a interferir na sua política interna, patrocinando inclusive golpes contra governos legítimos.

O Sr. Embaixador classificou, com o desassombro que o caracteriza, a Nato, na TVI, como um heterónimo dos EUA.

Não me parece pois que tenha ilusões em relação ao comportamento dos EUA, que não se comportam em relação aos outros Estados como pessoa de bem, mas antes como uma potência imperialista. É duvidoso que, mesmo que se retirem de vários teatros de guerra, não deixem de exercer a sua condição hegemónica enquanto puderem. Trump continua a investir na Marinha Americana como principal meio de projecção da força militar americana.

Isto não quer dizer que não existam diferenças entre os EUA e outras potências com a mesma natureza, como a Rússia, desde logo a ordem política interna que impõe limites à liberdade de acção da Presidência Americana e das suas forças militares.

Mas o Mundo continuará refém da força bruta e da miopia dos EUA enquanto o povo americano não decidir escolher alguém que se preocupe em desmantelar o Império Americano e em restaurar a República. Esperemos que o faça antes que isso leve à própria decadência da democracia nesse País. Mas os sinais presentes não são nada animadores...

Anónimo disse...

"... a liquidação física, em território do Iraque, de um chefe militar do Irão. ...".

O referido chefe militar não o era "só" do Irão. Pelo contrário, era sobretudo um chefe militar do expancionismo Shiita/Irão (persa) em toda a região, como aliás reconhece.
Nessa sua preponderante capacidade, a sua morte até agradou a muito boa e insuspeita gente, inclusivé ao poder político iraniano. Provavelmente cedo agradará a muito mais.

Ps. Não é justo atribuir a Trump atitudes bélicas que este herdou, com as quais não concorda e consequentemente procura resolver. Condições essas geradas por anteriores Presidentes dos EUA como Barak Hussein Obama...

Joaquim de Freitas disse...

No seu PS) o anonimo das 00:52 esquece que se Trump criticou a invasao do Iraque pelo chefe do seu partido republicano, ameaçou hà dias o governo iraquiano de sancçoes se levar para a frente a decisao do parlament iraquiano de forçar as tropas americanas a deixar o Iraque. A coerência proverbial de Trump.

Por outro lado, se o general iraniano , chefe militar, " não o era "só" do Irão. Pelo contrário, era sobretudo um chefe militar do expancionismo Shiita/Irão (persa) em toda a região" como escreve, pode dizer-me o que sao Trump e Pompeo em matéria de expansionismo no Médio Oriente,e nao so !

Joaquim de Freitas disse...

O que é mais dramático é de pensar que, segundo o primeiro-ministro iraquiano, Soleimani trazia-lhe uma mensagem dos Iranianos, respondendo à dos Sauditas. O que quer dizer que Trump interrompeu uma discreta ida e volta diplomática destinada a evitar uma guerra irano saudita…

Desde que o erro foi cometido, o serviço após venda americano – a justificação pública , foi tão calamitosa como o assassinato. Tratava-se de “prevenir um ataque “iminente” anuncia Washington ! Ora não havia nenhuma prova disso.

O topete dos americanos lamentando que os aliados da EU e da NATO não os felicitassem e agradecessem pelo assassinato, também fica nos anais da estupidez. Mas também é verdade que estão habituados a ver os seus aliados rastejar…desde as Lages !

Aaron David Miller, da Fundação Carnegie para a Paz Internacional disse as palavras justas: “ Viu-se raramente uma única decisão táctica sem nenhuma reflexão a longo prazo, produzir tantas consequências estrategicamente negativas para os Estado Unidos”.

A partir de agora, os soldados americanos no Iraque são mais que nunca "persona nno grata" e a coligação internacional contra Daesch dos 60 Estados não terá mais os meios de agir eficazmente e estão mesmo na ilegalidade.

Luís Lavoura disse...

Muito boas e corretas palavras, Francisco, mas seria bom que o Francisco soubesse aplicar palavras similares às intervenções de países da União Europeia e da NATO,nomeadamente o Reino Unido e a França, na Líbia e na Síria.

alvaro silva disse...

Os USA Têm e tem que ter memória fresca do que lhes aconteceu na embaixada em Teerão, identificado o mentor mandaram-no para o paraíso das 70 virgens onde estará melhor que nós.
E com tão boa pontaria que sem disparar mais nenhum tiro juntaram ao general mais duzentos e tal iranianos (uns no funeral do caixão e outros no avião abatido pelos próprios).
Queiramos ou não a estratégia de Trump foi avassaladora!

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