segunda-feira, janeiro 27, 2020

Luís Santos Ferro


Por muitos anos, não fui sócio do Grémio Literário. Sucessivas estadas no estrangeiro e uma vida ocupada quando em Lisboa não me dariam para gozar, com calma, as delícias da Rua Ivens, pelo que, por muitos anos, fui apenas um visitante episódico daquela bela casa.

Um dia, já não sei bem quando, deixei cair, numa conversa com o Luís Santos Ferro, essa minha qualidade de não-sócio. “O quê!? Você, um queiroziano de mérito, não é dos nossos?”. O “queiroziano de mérito” tocou-me a corda da vaidade e lá entrei eu para associado do Grémio, com a absoluta certeza de ter sido proposto por ele.

Quando e onde eu tinha conhecido o Luís Santos Ferro foi sempre, para mim, um mistério. Lisboa é uma aldeia feita cidade e, tendo nós muitos amigos, interesses e tarefas que se cruzavam, terá sido algures por aí. O importante é que em boa hora o conheci, estabelecendo com ele, desde o primeiro minuto, uma forte empatia.

O Luís era a boa disposição feita pessoa, que recordo com aquele sorriso franco, que se abria quando nos encontrávamos. Divertido, com histórias magníficas, amigo do seu amigo, sempre disponível, com uma cultura multifacetada, diziam-me ser uma extraordinária mais valia no Conselho Literário do clube. “Foi o Eça quem me trouxe para o Grémio. Só estou cá por causa dele”, disse-me, um dia.

E assim era. Com o prolífico arquiteto Campos Matos, Luis Santos Ferro, um engenheiro que foi diretor da Fundação Luso-Americana, era, no meu modesto entender, das pessoas que, em Portugal, mais sabia sobre a vida e obra de Eça de Queiroz.

Grandes “estudos” fizemos para tentar perceber, à luz da interpretação de pequenos pormenores, em que casa da Rua de S. Domingos à Lapa “viveu” esse “distinto sportsman” que, em “Os Maias”, se chamou Dâmaso Salcede. Figura a que o Luís sempre se referia como “o seu vizinho”, porque moro por lá.

Quando fui para embaixador em Paris, cidade onde havíamos de nos encontrar em belas jantaradas à roda da mesa de gente amiga, o Luís tinha um pedido a fazer-me: procurar substituir a já ilegível placa colocada no local onde antes estivera a casa em que Eça tinha morrido, colocada, nos anos 50, pelo meu longínquo antecessor, o embaixador Marcello Mathias. Empenhei-me, falei com autoridades e proprietários, e, um dia, para seu imenso contentamento, consegui levar a cabo aquilo que o Luís me pedira.

Mas fiz mais: num aniversário do Eça, ainda antes de abandonar a embaixada, consegui instalar uma placa comemorativa na primeira casa em que o escritor tinha vivido, logo que acabado de chegar a Paris. Foi o Luís, claro!, a primeira pessoa a quem dei conta desta nova iniciativa de um diplomata que “conspirava” pelo escritor. “O Altíssimo nos agradecerá”, sendo que o “Altíssimo” era o Eça, porque sempre soube que o Luís era pouco dado a outros.

Há semanas, num qualquer evento, cruzei-o nas salas do Grémio. “Estive bastante doente, sabia?”. Não sabia e, sem estar a mentir, disse-lhe que, pelo contrário, o achava com excelente aspeto. “Vivo do aspeto”, retorquiu-me, com uma das suas costumeiras gargalhadas. Mas reparei que aquelas escadas já lhe estavam a ser pesadas.

Recebi há pouco a notícia de que o Luís Santos Ferro tinha morrido. Fiquei muito chocado, provavelmente até bastante mais do que a nossa limitada intimidade justificaria. Só que o Luís era já uma parte integrante e querida do mundo de amigos e conhecidos que tenho vindo a criar ou recriar, desde que, faz amanhã sete exatos anos, regressei em definitivo a Lisboa.

Agora, para mim, o Grémio, sem ele, passa a ter metade da graça. As conversas sobre o grande Eça vão tornar-se numa caturreira enfadonha. O nosso sempre adiado almoço com o arquiteto Campos Matos nunca mais se fará.

De que terá morrido o Luís? Ainda não sei. Mas, se acaso lhe tivesse perguntado sobre aquilo de que padecia, ter-me-ia talvez respondido, imitando o sentenciosismo do Conselheiro Acácio, “não há doenças, há doentes”. Desta vez, aos 80 anos, o doente era ele. Adeus, Luís!

6 comentários:

Anónimo disse...

Caro Francisco,

O Luís era meu amigo desde os anos 70 do século passado graças a encontros musicais em casa do Alain Demoustier, outro amigo que se foi.

Entrei no Grémio apadrinhado por ele.

Muitas conversas tivemos nós, e trabalhámos em perfeita harmonia quando ele era director da FLAD e eu da FCG.

Devo-lhe o primeiro e melhor grande elogio musical. Foi em 1981 quando escrevi as notas para o programa do Macbeth de Verdi no S. Carlos.

Partiu no dia dos meus anos, que se saiba sem dor e sentado numa poltrona em casa.

Estive com ele na Sexta-feira passada. Sentia-se bem, depois de um período mais triste. Combinámos um almoço para a semana - no Grémio, claro!

Perdi um grande amigo, estou muito transtornado e irei almoçar ao Grémio sem ele mas em sua homenagem.

Um abraço

JPGarcia

Sandra Melo disse...

Um grande Senhor muito intimo da Casa de Tormes deixa saudades a todos que aqui conviveram com ele!

Maria disse...

Fiquei triste com a noticia da morte do Luis . Reli emails trocados quando da morte de Jessy Norman. Mais um amigo que parte e deixa tantas saudades.

Fernanda

Helena Buescu disse...

Privar, privei com Luís Santos Ferro desde há muitos anos. Conheci-o em 1986, como Chefe de Gabinete de Teresa Patrício Gouveia, por ocasião das comemorações da morte de Cesário Verde, a que ambos estivemos ligados.
Aí nasceu uma bela amizade e, como sempre o senti (e sinto), da minha parte uma admiração infinita pela sua cultura fina, elegante, sólida, com aquela ponta de ironia que guardava sempre para os "bon entendeurs".
Na FLAD acompanhei o trabalho de qualidade que foi o seu, apoiando todos aqueles que, na cultura e na universidade, se lhe dirigiam com projectos de mérito.
Nos últimos anos, encontrávamo-nos em ocasiões culturais comuns, trocávamos emails, ele despedia-se sempre com um traço que o distinguia: ex corde, por exemplo. Mozart, Notre Dame (a cair), Lohengrin, Victor Hugo, Eça, pois claro.
Disse-lhe há tempos: ele era a excepção que confirma a regra do Portugal pequenino que um fundador do Grémio, Almeida Garrett, assim designava.
Tenho já muitas saudades e, mais ainda, das que sei que virei ainda a ter.
Helena

Helena Sacadura Cabral disse...

Meu caro Francisco
Ainda estou em estado de choque com a noticia que me deu, da morte do Luis Santos Ferro.
Fizemos juntos - eu pelo Banco de Portugal, ele pela Fundação - o Catalogue Raizonée de Maria Helena Vieira da Silva. Foram cinco anos de trabalho intenso, dois dos quais gratuitamente da minha parte, porque já saira do Banco. Foi mais uma experiência que devo à instituição, a de ter podido tornar-me amiga do Luis, uma das melhores e mais cultas pessoas que conheci em toda a minha vida. E com um raríssimo sentido do humor, como se vê pela resposta que lhe deu.
Ele não era, de facto, dado a religiosidades e, por vezes, olhva, incrédulo, para a minha forma de levar a vida. Pois até essa diferença nos uniu e onde quer que ele esteja terá, hoje, as minhas orações!

Manuel Villaverde Cabral disse...

Fiquei muito triste ao saber de repente da morte do Eng.º Luís Santos Ferro. Há bastante tempo que não o encontrava e ignorava que ele estivesse doente. Conheci-o na Secretaria de Estado da Cultura algures entre 1986 e 1987 quando ele foi Chefe de Gabinete da Secretária de Estado, a Dr.ª Teresa Gouveia, e eu era director da Biblioteca Nacional onde estive desde o início de 1985 até Abril de '90. Ficámos amigos para sempre. Foi um prazer retomar o contacto com ele quando foi director da Fundação Luso-Americana, onde tivemos o gosto de desenvolver várias actividades. Fora das relações de trabalho sempre amistosas e interessantes, era uma das pessoas com quem mais aprendi muito sobre música graças aos nossos encontros nos concertos da Gulbenkian. Nos últimos tempos, ambos reformados, encontrávamo-nos nas reuniões de «patronos» da Fundação Vieira da Silva e púnhamos as novidades em dia. Tinha uma cultura e um sentido do humor que faziam de cada encontro um prazer enorme. Adeus, Luís, tive muita pena de não o ver nos últimos tempos!

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