quarta-feira, janeiro 29, 2020

Nacionalidades


Há muitos anos, na Noruega, exerci as funções de cônsul de Cabo Verde. Através de um protocolo de cooperação entre Portugal e Cabo Verde, a secção consular da nossa embaixada prestava assistência aos muitos cabo-verdeanos que viviam naquele país, que eram aliás muitos mais do que a comunidade portuguesa, que não chegava a duzentas pessoas.

Fui então a muitas festas de Cabo Verde, dei “pontapés de saída” em jogos de futebol entre diferentes equipas dessa comunidade e, principalmente, fiz ótimas amizades no seu seio e ganhei, para sempre, um grande respeito pela diáspora de Cabo Verde, bem como pela singularidade daquele fantástico país africano e atlântico.

O “chefe” da comunidade cabo-verdeana era então um jovem operário, com imenso prestígio entre os seus compatriotas, que tinha obtido, ao final de alguns anos de residência, a nacionalidade norueguesa.

Um dia, procurou-me na embaixada e entrou no meu gabinete de lágrimas nos olhos. Tinha ido a uma repartição norueguesa e, por um motivo qualquer, havia tido um dissídio com um funcionário, constatando que estava a ser tratado como se fosse estrangeiro. Mostrou então o seu cartão de nacional norueguês, recebendo do interlocutor a seguinte resposta: “Você pode ter cidadania norueguesa, mas a sua pele é a mesma”. Aconselhei-o a apresentar queixa e ajudei-o nessa diligência.

Lembrei-me disso, por estes dias. Podemos ou não gostar de Joacine Katar Moreira (eu, em regra, não gosto das atitudes da senhora e não dispenso o meu pleno direito de não gostar e de contestar que, por essa razão, algum imbecil me chame racista), podemos concordar ou não com as suas ideias e propostas (eu raramente concordo), mas configura uma atitude de abjeta xenofobia, indigna da nossa democracia, insinuar que ela “não é bem” portuguesa, no usufruto que faz dos direitos que a sua nacionalidade lhe atribui. Direitos em que se inclui, vale a pena lembrar, a liberdade de ela dizer todas as barbaridades que lhe venham à cabeça, desde que o faça dentro da lei. Chama-se a isto, para quem não souber, Estado de direito.

O preconceito anda por aí à solta, cada vez com uma cara mais política. Devemos estar bem alerta.

14 comentários:

Luís Lavoura disse...

Muito bem. Concordo 100%.

Anónimo disse...

É capaz de ser "tão portuguesa quanto nós" mas tende a preocupar-se pouco com os interesses dos portugueses. Eventualmente, a questão será saber se ela é uma estrangeira fiel aos interesses estrangeiros ou uma portuguesa que trai os interesses dos portugueses.

Seja como for, merece ouvir. Uma perfeita nódoa no nosso Parlamento e, também, na vida política em geral.

A paciência tem limites.

I Osorio disse...

Só concordo a 5O% !!!.O preconceito é idiota e é verdade infelizmente, que "anda por aí à solta", mas o que me parece é que os alvos desse preconceito aproveitam toda as oportunidades para estimular esse preconceito!!! Com atitudes "racistas"de sinal diferente, com vitimizações exageradas, com desrespeito por Portugal e seus símbolos e até como é o caso com provocações indignas de quem se senta no parlamento. (sim com letra minúscula) ´..
O racismo está a ser estimulado pelo seus alvos e "amigos" de esquerda e direita é preciso dar nas vistas, "fazer títulos" e mesmo atropelando a verdade e o direito .PERECER VITIMA E/OU ANTIRACISTA !!

Anónimo disse...

Nâo é incendiário, é mais uma "boca" de mau gosto. Todavia, o respeito deve ser recíproco. A extrema-esquerda e a esquerda, que gozam em Portugal de um estatuto privilegiado, também têm de aprender a respeitar as opiniões da extrema-direita, o que nem sempre acontece, e cria depois um clima favorável a estes excessos. Posto isto, reprovo o que o André Ventura disse.

Jaime Santos disse...

Eu também. Se André Ventura tem direito a dizer todos os disparates que quiser e a fazer as provocações que bem entende (e as quais o BE, diligentemente e tristemente, responde), então Joacine também tem direito à sua opinião.

E, note-se, o Estado de Direito tem instrumentos para reprimir quaisquer comportamentos (incluindo declarações) que violem a Lei em geral e a CRP em particular. Que eu saiba, ainda estão proibidas organizações que perfilhem a ideologia fascista...

alvaro silva disse...

E como será o Estado de esquerdo?

Anónimo disse...

Senhor embaixador, a bem do rigor dos conceitos (e porque as palavras importam muito), não é xenofobia, mas sim racismo. A senhora é portuguesa, uma de nós, ou não seria deputada.

Lúcio Ferro disse...

Ena, quanta excitação, parece que afinal sempre é verdade que os extremos se atraem.

Anónimo disse...

Caríssimo embaixador, subscrevendo o que refere I Osório, sublinho também que tal como diz o senhor embaixador -que a senhora joacine tem o direito de dentro da lei dizer o que lhe vem à cabeça e eu pergunto e o senhor Alexandre Ventura não tem o mesmo direito? , , ora essa! Além do mais e discordando eu do que ele disse, fê-lo num contexto específico , ou seja na sequência de que obras de arte africanas deveriam ser devolvidas aos seus países de origem e, utilizou para o efeito o Twitter e não o parlamento! Por outro lado e como atrás já referido por um outro comentário, então esta senhora não foi eleita por portugueses e para os representar no parlamento...???!!!!

Anónimo disse...

Em tempos lidei de perto com um rapaz da Europa de leste que, vindo para Portugal há pouquíssimos anos, tinha obtido a nacionalidade portuguesa. Este já era o quarto ou quinto país onde ele vivia, a quarta ou quinta língua em que tinha estudado/trabalhado.

Do ponto de vista de cidadania, o rapaz parecia ser exemplar, fazendo-me amiúde pensar que podiam vir milhares assim. Até na preocupação em falar bom português ele dava lições aos "miúdos" de cá.

E, depois, vinha o resto: como jovem que era, toda a sua cultura era uma amálgama de referências anglossaxónicas; artistas portugueses, não conhecia; figuras da nossa História, não conhecia... A identificação com a nossa "identidade" era nula. Privado da "doutrinação" que se obtém na infância através da imersão numa cultura, este simpático e absolutamente estimável rapaz de leste podia ser tão cidadão quanto eu mas português não o era de certeza!

Anónimo disse...

Gostava de saber o que aconteceria se a resposta de A.Ventura tivesse sido dada a uma pessoa "branca" que tivesse feito igual proposta!!
Temos racismo "invertido"

Jaime Santos disse...

Ao anónimo das 09:41:

Em que é que essa atitude do jovem é diferente de tantos jovens nados e criados em Portugal? Também lhes faltou a 'doutrinação' por via da imersão numa cultura :-)?

A diferença, como diz, é que esse rapaz falava um Português mais correto do que o deles.

Será que eles também não são Portugueses :-) ?

Anónimo disse...

Tem um erro ortográfico no seu texto: escreve-se "cabo-verdianos".

Anónimo disse...

Jaime Santos, quando as pessoas - como você -, se querem fazer difíceis, nada vale a pena e tudo é perda de tempo...

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