domingo, janeiro 12, 2020

Gorjeta patriótica



Foi há mais de 15 anos, em Khujand, bem no norte do Tajiquistão. Não havia elevadores naquele modesto hotel, ainda tributário da era soviética. Era, no entanto, o melhor da cidade.

Eu chegara, como sempre (nunca aprendi a viajar "light"), com uma pesada mala. Quando me disseram que tinha de subir dois andares a pé, cansado como estava, depois de uma viagem longa e de um dia de trabalho relativamente intenso, "passei-me" e reclamei. 

A rececionista, com pinta de "aparatchik" da era antiga, num país onde as coisas não tinham mudado assim tanto, confrontada com o meu mal-estar, sem me dar grande confiança, disse-me para eu ir indo para o quarto, que a mala lá iria ter. 

Passados largos e irritantes minutos, bateram-me à porta. Ofegante, um homem, cuja idade tinha ultrapassado há muito os 80 anos, apresentou-se com a minha mala. 

Senti-me incomodado. Então aquele senhor idoso tinha subido as escadas, com mais de 20 quilos na mão, para evitar o meu esforço? Para além de articular vários "spasiba", entendi dever dar-lhe uma boa gorjeta, que pudesse compensar o meu complexo de culpabilidade. 

O homem mirou a nota de cinco dólares, revirou-a bem não fosse estar a ver mal e saiu, às vénias, desta vez sendo ele quem se desfez em coisas que entendi como profundos agradecimentos. 

Sabia que a gorjeta tinha sido boa, mas não tinha ideia do que ela significava, à escala local. Quando, ao jantar, contei o episódio a um diplomata holandês que vivia no país, revelando-lhe o montante da gorjeta, o comentário foi, para mim, surpreendente: "Em moeda local, o que você lhe deu deve representar mais de metade da reforma mensal do homem!"

Na manhã seguinte, ao sair do quarto, deparei com o idoso, especado em frente à porta, já preparado para transportar de novo a minha mala. Deduzi que devia estar por ali já há algum tempo. 

Com um imenso sorriso, num tom levemente interrogativo, como que a confirmar apenas o que já sabia, disse-me: "Portugaliya!?" Confirmei e lá descemos as escadas, ele ajoujado com a minha mala, comigo ao lado, descansado, apenas com uma pequena saca de pano ao ombro.

À chegada ao lóbi, recordo, como se fosse hoje, o olhar reprovador e prenhe de "righteousness" das minhas colegas de viagem, embaixadoras da Noruega e do Canadá, que condenavam, num silêncio grave, a minha atitude de vil e eurocêntrica exploração da terceira idade tajique. Como poderia explicar-lhes que estava a fazer um "favor" ao homem? Como reagiriam se lhes falasse dos cinco dólares da véspera?

À entrada para a carrinha, ainda hesitei: como a tarefa da manhã tinha sido "a descer", devia dar uma gorjeta inferior à da véspera? Mas, esmagado pela culpa, logo me decidi: voltei a dar ao homem outra nota de cinco dólares. 

Sorriram-lhes os olhos e despediu-se com um forte e efusivo cumprimento de mão, sempre repetindo, enfático: "Portugaliya! Portugaliya!".

Por 10 dólares, a imagem do nosso país subiu, nesse dia, aos píncaros, nessa remota e pequena cidade da Ásia Central.

3 comentários:

Joaquim de Freitas disse...

Reflectindo ao valor da gorjeta de dez dólares, mesmo há 15 anos, seriam mais ou menos 200 escudos, em muitos cantinhos de Portugal também seria uma boa gorjeta, Senhor Embaixador… Lá para Montalegre….

Luís Lavoura disse...

As embaixatrizes da Noruega e do Canadá exibiram uma parvoíce muito comum na esquerda: a de que dar trabalho a um habitante do Terceiro Mundo por um salário irrisório (para nós) é imoral.
Elas deveriam aprender que só há uma coisa pior do que ser explorado pelo capitalismo internacional: não ser explorado pelo capitalismo internacional.

Joaquim de Freitas disse...

Essa teoria, de pagar o trabalho com a malga de arroz ou equivalente, fazendo abstracção de todas as outras necessidades inerentes ao género humano, é a que permite de construir fortunas ou de construir as pirâmides gratuitamente para a grande glória do faraó.
Mas não é a justiça social, que esta é uma construção moral e política baseada na igualdade de direitos e na solidariedade colectiva.
Ao Sr. Luís Lavoura satisfaz o conceito de desigualdade social Porque é melhor que nada. E que não é aquela na qual o Sr. vive.
É este conceito que leva os povos aos actos de desespero que anunciam as grandes violências e que, finalmente, as justifica, qualquer que seja o seu preço.

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