sábado, fevereiro 06, 2016

Primavera portuguesa em Paris

Numa das primeiras vezes em que, como embaixador português em Paris, visitei a Delegação da Fundação Calouste Gulbenkian, para uma qualquer exposição ou concerto, cruzei à porta um cidadão francês que, em face do movimento que via na entrada, inquiriu: “Esta é a embaixada de Portugal?” Ele não fazia a menor ideia de quem eu era e deve ter ficado perplexo com a minha resposta sorridente: “Não é ... mas também é!” A minha reação espontânea traduzia o que, muito sinceramente, eu pensava do papel desempenhado pela Delegação em favor da língua e da cultura portuguesas na capital francesa.

Há precisamente 50 anos, como lembra Rui Ramos numa recente monografia, foi instalado, num edifício da avenue de Iéna, adquirido por Calouste Gulbenkian em 1922, e que seria a sua residência formal em Paris, um Centro Cultural (que evoluiu para aquilo que é hoje uma Delegação) cuja atividade faz parte integrante da própria história da Fundação. 

Dirigido ao longo desse meio século por diversas e qualificadas personalidades nacionais, esse “braço” parisiense da Gulbenkian desempenhou um papel do maior relevo como montra cultural portuguesa. Podem discutir-se algumas opções seguidas em todo esse percurso, o universo de abrangência da atividade desenvolvida, mas é indiscutível o benefício que, para a imagem de Portugal, essa estrutura representou, muito em particular como polo do atração dos “lusófilos” franceses e na ligação aos estudos universitários portugueses em França. Além do mais, ontem como hoje, aí se concentra a segunda maior biblioteca portuguesa no mundo, depois da do Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro.

Novos tempos têm vindo a justificar um repensar evolutivo das atividades da Delegação. Um Conselho Consultivo a que tenho o gosto de presidir, constituído por figuras portuguesas e individualidades do meio intelectual francês, tem trabalhado sobre a necessidade de aliar o caráter universalista da reflexão a que a Delegação se dedica, onde as temáticas europeias têm um papel predominante, a uma abordagem cada vez maior das diversas culturas que se exprimem em língua portuguesa. A isso acresce uma atenção, também crescente, às novas realidades que emergem em setores da segunda ou terceira geração de portugueses no exterior, hoje com relevante inserção nas sociedades de acolhimento. E, finalmente, note-se a ligação muito frutuosa que tem vindo a ser conseguida com a histórica “Maison du Portugal”, na Cité Universitaire de Paris, criada pela Fundação nos anos 60, que hoje usufrui de um estatuto distinto, mas que, tal como no passado, continua a acolher estudantes e investigadores portugueses e estrangeiros.

Há já alguns anos, em Paris, fui testemunha da mudança da Delegação da Fundação para novas instalações onde, muito em especial, “respira” melhor a sua fantástica biblioteca. Hoje a funcionar no boulevard de La Tour Maubourg, esta estrutura desenhou, para este cinquentenário em 2016, um interessantíssimo programa cultural que tentará contribuir para uma maior visibilidade de Portugal nesse “mar” de oferta expositiva que é a capital francesa e que se estende muito para além das paredes da Delegação. 

Só como exemplos, aí está já uma mostra de Julião Sarmento. No museu “Jeu de Paume” vamos ter em breve Helena Almeida. Em abril, uma grande exposição no “Grand Palais” “revelará”, pela primeira vez, Amadeo de Sousa Cardoso à cidade que mais inspirou a sua obra. E a Cité de l’Architecture et du Patrimoine vai revelar a arquitetura portuguesa entre 1965 e 2015. Uma Primavera cultural portuguesa começou já em Paris, pela mão da Gulbenkian, a nossa “outra” embaixada na cidade.

(Artigo que hoje publico no jornal "Expresso")

A Tia de Costa

Por muito tempo, a Comissão era o nosso “amigo de Bruxelas”. Fábrica e distribuidora de fundos, era como que um instrumento de correção do poder diferenciado dos países. A retórica de solidariedade construía então a narrativa de uma Europa que almejava o nivelamento das condições de vida - a tal coesão. Esse mundo mirífico acabou.

De “bom da fita”, à Comissão europeia de hoje está cometida pelos Estados a tarefa de auxiliar o BCE na gestão do euro - esse heterónimo do marco, que os alemães um dia dispensaram, para obterem os derradeiros galões europeus da paz, a unificação, o alargamento e o mercado privilegiado onde assenta toda a sua riqueza. Essa gestão rege-se por uma ideologia, e ai de quem a contestar.

Margareth Thatcher disse um dia que “there is no alternative” ao modelo liberal, ao mercado puro e duro. A fórmula ficou conhecida por TINA e enforma a filosofia que hoje prevalece nas instituições europeias. Foi a TINA que moldou o “memorando de entendimento” e, por cá, a TINA foi a ideologia da coesa coligação Troika/PSD/CDS que governou Portugal e ainda hoje coloniza a mente da maioria dos nossos comentadores económicos.

Os gregos aprenderam na pele que é muito arriscado enfrentar o “touro” europeu de frente. António Costa fê-lo “de cernelha” e, com arte de lide, decidiu provar que a TINA podia começar a ser contrariada. Jogando as parcelas de forma diferente, fazendo essa coisa diversa (inesperada?) que é uma política fiscal de esquerda, conseguiu levar a água ao seu moinho. Percebeu-se o incómodo do ortodoxo báltico, que lia o papel da Comissão com um dos olhos em Berlim e outro em Madrid, ao ter entendido que, porque agora temos uma política europeia, temos outras armas, noutros tabuleiros, com que Bruxelas deve contar. Quem sabe se António Costa não encontrou uma “TIA" ("there is alternative”)?

(Artigo que hoje publico no "Diário de Notícias")

sexta-feira, fevereiro 05, 2016

Eduardo Lourenço no Conselho de Estado

Foi agora anunciado que Marcelo Rebelo de Sousa tenciona nomear Eduardo Lourenço para o Conselho de Estado. Isto hoje está complicado: lá vou eu ter de elogiar mais uma decisão do presidente "to be"! 

É que, para além da grande elegância do gesto, o nome do meu querido amigo Eduardo Lourenço é a garantia de poder vir a ouvir-se naquele órgão a palavra serena de alguém que há muito nos pensa, radiografa os nossos sentimentos coletivos e bussoliza o nosso futuro. Só tenho pena que a regra do segredo que faz parte da liturgia do cenáculo nos não venha a permitir usufruir das palavras sábias que Lourenço por lá irá deixar.

Acabo com algo que já contei por aqui. Uma tarde, em Paris, há cerca de sete anos, Eduardo Lourenço apresentava Marcelo, a abrir uma conferência que este iria fazer na delegação da Fundação Gulbenkian. E saiu-lhe esta tirada lapidar: "O Marcelo é uma figura que, desde há vários anos, está como que numa janela a fazer comentários sobre o país que passa na rua, lá em baixo, E, por vezes, nessa mesma rua passa também o próprio Marcelo Rebelo de Sousa, sobre o qual, com naturalidade, ele também se pronuncia".  

Frutuoso de Melo


É uma boa notícia a indigitação de Fernando Frutuoso de Melo para a chefia da Casa Civil do futuro presidente da República. Trata-se de um qualificado funcionário europeu, com grande e diversificada experiência, que se espera possa vir a ajudar Marcelo Rebelo de Sousa nos anos que aí vêm.

É verdade que nem sempre a presença de uma figura de qualidade à frente da estrutura de Belém é garantia segura de eficácia da ação do presidente. Nos seus dois mandatos, Cavaco Silva teve como seu "braço direito" Nunes Liberato, um homem sério, capaz e com um indiscutível recorte de servidor público. E a Presidência foi o que se viu!

As presidências são os presidentes. Nenhuma presidência é eficaz se o presidente não "ajudar"...

Migrar


Quando por aí ouvir dizer que Portugal tem de resolver primeiro os seus problemas, antes de começar a acolher refugiados e imigrantes estrangeiros, convém lembrarmo-nos - nós, que continuamos a ser o país europeu que tem mais migrantes noutros países da Europa - do que os portugueses e a sua economia devem aos países estrangeiros, em especial europeus, que, desde há muitas décadas recebem os nossos emigrantes. Que diríamos se acaso as portas dessa Europa se fechassem a quem não tem emprego em Portugal?  

Os ventos de Espanha


De Espanha se dizia que “nem bons ventos, nem bom casamento”. A Espanha manteve-se uma obsessão histórica para muitos setores portugueses, até à nossa entrada comum nas instituições europeias, vai para 30 anos. Por essa altura, diluiu-se o essencial que restava de contencioso bilateral (sei que os nostálgicos de Olivença não ficarão contentes, paciência!) e as relações passaram a desenvolver-se de uma forma desdramatizada. 

Julgo que ambos os países se conhecem hoje muito melhor, que o fim das fronteiras e o incremento do comércio trouxe uma saudável normalidade à relação luso-espanhola, curiosamente nunca afetada pela pontual dissonância entre as orientações políticas de Madrid ou de Lisboa. 

Na Europa, Portugal e Espanha nunca estiveram no mesmo “campeonato”, muito embora, em alguns dossiês, tenhamos jogado do mesmo lado. Mas a dualidade económica do nosso único vizinho – com setores muito desenvolvidos ou fortemente beneficiários das políticas da Europa “rica” (como a política agrícola) ao lado de uma Espanha nossa companheira nas políticas “de coesão” - fez com que os nossos interesses por vezes divergissem. Isso foi muito claro nas questões institucionais onde se mede o poder relativo para influenciar decisões. Porém, e este é um aspeto importante, a diplomacia dos dois países sempre cuidou em sublinhar o muito que nos une, procurando que aquilo que nos separa se não torne um óbice a uma relação bilateral que ambos desejamos se mantenha exemplar.

Como profissional das relações externas, quero deixar claro que nem sempre é fácil negociar com a Espanha. A retórica da amizade peninsular – nós, no Ministério dos Negócios Estrangeiros nunca apreciámos excessivamente o termo “ibérico” – quase sempre é insuficiente para ultrapassar o endémico protecionismo dos nossos vizinhos, frequentemente apostados em bloquear o acesso das nossas empresas ao seu mercado e com uma rigidez clara no tocante a qualquer compromisso nas áreas económicas.

Um terreno específico onde isso foi sempre muito evidente foi o setor bancário. Com uma certa naturalidade, a Espanha foi aproveitando as fragilidades sucessivas das nossas instituições, por forma a colocar-se numa posição de relevo nesse nosso mercado. Fê-lo, diga-se, com toda a legitimidade que as regras da concorrência o permitem, mas o equilíbrio final que daí resulta tem consequências estratégicas iniludíveis. O que mais me preocupa, confesso, é começar a ser evidente que o Banco Central Europeu promove abertamente, como se viu no caso Banif, este “take over” da banca portuguesa pela banca espanhola. Um dia, voltaremos a falar disto por aqui.

Transições

Ontem à tarde, os membros do Conselho da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, de que faço parte, votaram um novo nome para diretor da Faculdade. O anterior diretor havia pedido a demissão. Crise? Nada disso! Esse anterior diretor, bem como a diretora da Instituto de História Contemporânea da mesma Faculdade, passaram a integrar o novo governo, como secretários de Estado. Estas são as contingência da vida de uma instituição de prestígio. Ou será que, se o não fosse, lhe recrutavam os membros para altos cargos? 

quinta-feira, fevereiro 04, 2016

Ópera


Esta sexta-feira, dia 5, às 20 horas, e no domingo, dia 7, às 16 horas são as únicas derradeiras oportunidades para poder ver, no S. Carlos, a ópera "Dialogues des Carmelites", de Francis Poulenc, com encenação de Luis Miguel Cintra e direção musical de João Paulo Santos.

Não costumo por aqui recomendar espetáculos ou exposições, mas saí ontem da estreia extremamente bem impressionado com este trabalho, que representa um bem sucedido esforço para complementar o programa clássico que o S. Carlos normalmente oferece.

Olívio

O meu mais antigo amigo chamava-se Olívio, Olívio de Carvalho. Acabo de saber que morreu, por um SMS emocionado do Elísio Neves, que o chama, e bem, "o melhor de todos nós".

Nascemos no mesmo ano, na mesma rua, lá em Vila Real e, claro, não me lembro de mim sem o conhecer. O pai do Olívio tinha uma casa de conserto de bicicletas, pelo que era conhecido como o "Olívio das bicicletas". Era na chamada "Travessa", a rua Avelino Patena, e, dessa forja, tivemos como companheiros o Quim "Rato", o Augusto, o Quim Claro, o Sampaio, o Domingos Lito, os Costa Lobo, o Vitor e o Carlos Almeida, vários Barretos. Com o Elísio Neves, o Zé Barreto terá permanecido, até hoje, como uma das pessoas mais próximas do Olívio.

Entrámos juntos para a escola primária, embora o Olívio tivesse sabiamente optado, desde muito cedo, por um ritmo de conclusão dos anos letivos que se revelou um tanto mais lento do que o meu. Deve ter ficado pelo antigo 5°ano, penso.

No final dos anos 60, ambos tínhamos ido para Lisboa, embora com vidas diferentes, em grupos muito diversos. Encontrávamo-nos às vezes no Montecarlo, cada um em sua tribo. Aí eu trocava livros e conversa, enquanto ele perdia as noites e ganhava a vida como grande especialista em dominó, atividade que já o tinha tornado famoso em Vila Real. Ah! O Olívio era um bilharista exímio e, pelo menos em Vila Real, poucos vi passarem-lhe a perna na arte.

Como era regra do tempo, a tropa apanhou-nos a ambos. Lembro-me dele me falar que foi parar a um departamento que tratava de "análise e depuração de águas", uma ironia para quem mais tarde iria ser dono de um bar. Depois, o Olívio foi para delegado de propaganda médica, estava eu no meio do curso e também já empregado num banco. Viamo-nos a espaços. Nem sempre sintonizávamos nas ideias e no modo de olhar a vida, mas ambos cuidávamos em que a velha solidariedade de infância prevalecesse sempre sobre essas dissonâncias. Anos mais tarde, chegou-me a notícia de que o Olívio, que vivia na Luz Soriano, havia sido preso. Um lamentável equívoco, que demorou a ser deslindado, provocado por uma amiga solidariedade, ia-lhe destruindo a vida. 100% inocente, foi solto, mas terá aprendido alguma coisa sobre os outros. 

Montou depois um bar, o "Cocote", atrás da Caixa Geral de Depósitos, ao Calhariz. Todo o "emigrado" de Vila Real em Lisboa por lá passava. Fechou um dia a loja e entrou nas velharias e antiguidades, bem como no comércio de pintura. Ainda há dois dias me vi a procurar uma parede para colocar um quadro do Romualdo, um pintor a cujo atelier, na Bica, fui levado pela mão do Olívio. Na Lisboa noturna que era a sua, conhecia como poucos o Bairro Alto e a Bica, sendo também a Ribadouro, noutra geografia, uma sua escala habitual, onde algumas vezes nos cruzámos. Mas o lugar de eleição do Olívio, por muitos anos, foi o "Pavilhão Chinês", o "escritório" para a sua venda de coisas antigas, onde também treinava a sua arte de bilharista.

O Olívio era aquilo a que, numa linguagem antiga mas bem apropriada a um cultor de velharias, se chamava "uma jóia de pessoa". Amigo do seu amigo, disponível e sempre disposto a ser útil aos outros, tinha um jeito sarcástico no falar, um sorriso marcado por uma permanente ironia e uma imensa graça. Falava às mulheres com uma delicadeza e atenção que não deixou de ter as devidas recompensas, embora fosse de uma discrição elegante na matéria.

A saúde pregou-lhe, entretanto, sérias partidas. O Olívio regressou a Vila Real. Guardarei para sempre a imagem dele, acabado de sair de um AVC, quando, sob um sol tórrido de agosto, insistiu em se deslocar, curvado e quase arrastado, para me ir dar um abraço solidário, num momento triste da minha vida. Vimo-nos, por uma última vez, numa casa de repouso onde passou os seus derradeiros dias, com a memória a falhar-se e o sorriso a esvanecer-se.

Grande Olívio! "O melhor de todos nós", é verdade!

quarta-feira, fevereiro 03, 2016

Luiz Felipe Lampreia (1941-2016)


O nosso embaixador em Brasília, Francisco Ribeiro Telles, deu-me há pouco uma notícia bastante triste: morreu Luiz Felipe Lampreia. 

Não fomos íntimos, mas desde há mais de vinte anos que com ele mantinha uma relação de amizade, reforçada no tempo em que vivi no Brasil. Nem sempre coincidimos, nas nossas conversas, no modo como "líamos" as questões bilaterais Brasil-Portugal, mas sempre mantive um grande respeito pela sabedoria e lisura com que defendia os seus pontos de vista.

O Luiz era um diplomata de carreira. Depois de outros postos, foi embaixador do Brasil em Portugal. Seria também ministro das Relações Exteriores do seu país (1995-2001), no governo de Fernando Henrique Cardoso. Atualmente, trabalhava no setor privado, para além de atividade no âmbito de um "think tank" sobre relações internacionais. Mantinha também um blogue. 

Luiz Felipe Lampreia foi um excecional profissional, daquelas figuras de grande categoria que a diplomacia brasileira produz e que alicerçam uma política externa ambiciosa e ativa. Era um homem de grande elegância, palavra fácil e com um conhecimento profundo dos meandros internacionais. Ainda há semanas por aqui citei o seu livro de memórias, "O Brasil e os Ventos do Mundo", onde faz referências à relações com Portugal e à CPLP. Durante a última década, vi o Luiz bastante crítico da política externa do seu país.  

Há uns tempos, constatámos que, de certa maneira, tínhamos acabado as nossas carreiras de modo idêntico: na administração e consultadoria de empresas. E quando lhe fiz notar a curiosidade de termos entrado e saído do governo dos nossos dois países precisamente nos mesmos anos, tive o cuidado de acrescentar: "você como ministro, eu como modesto secretário de Estado, nada de confusões!" . A resposta dele foi curiosa: "Modesto? O vosso Cavaco é que chamava aos secretários de Estado de "ajudantes", não era? Olhe, Francisco, se você disser a sua função em inglês ficamos "iguais"..."(referindo-se ao facto do lugar de secretário de Estado, no Reino Unido, ser designado por "minister" e o de ministro por "secretary of State").

Quero deixar aqui uma palavra de respeito e condolências à família de Luiz Felipe Lampreia.

Paulo Pisco


Em política, a regra de não comprar "guerras" de vitória duvidosa costuma ser aquela que a prudência aconselha. Calar reações que, à partida, se sabe poderem ir contra o "vento" dominante é a atitude mais comum e vulgar. Por isso, quando as coisas se passam de forma diferente, quando a coragem na afirmação dos princípios sobreleva a tentação de preservar a comodidade, há que dar nota disso.

Muito se falou, na imprensa, nas redes sociais e até em estranhas (ou nem por isso) declarações partidárias, do episódio que envolveu o embaixador português em França, pela circunstância de ter considerado inadequado que uma distinção proposta para uma personalidade portuguesa pelo seu homólogo francês em Lisboa, e que o governo deste acolheu, tivesse lugar fora do território que as regras - e não uma invocada exceção, que teve um contexto muito específico - mandam que se respeite, como sede natural desse tipo de atos. Neste caso, seria a embaixada francesa em Lisboa, onde a entrega das condecorações cujas propostas aí tenham tido origem regularmente tem lugar, como também deveria ter tido neste caso. Porém, sobre isto, já disse, por aqui, o que se me oferecia dizer.

O que hoje aqui quero destacar é a circunstância do deputado Paulo Pisco, que na Assembleia da República representa os portugueses na Europa, ter tido a hombridade e a coragem de vir a público expressar a sua posição sobre o assunto, nela não sendo tentado a cavalgar demagogicamente a onda fácil de diabolização do representante diplomático português, colando-se a uma leitura simplista dos factos, que foi aproveitada por alguns de forma sensacionalista e populista. Paulo Pisco, com toda a clareza, disse o que pensava, eximindo-se ao silêncio embaraçado (e cómodo, claro) de outros a quem, em princípio, seria de exigir atitude de idêntica frontalidade. Paulo Pisco, que pede meças a quem quer que dispute o seu empenhamento na defesa dos portugueses que vivem e trabalham no estrangeiro, deu com isso uma prova de caráter, muito rara em política.

terça-feira, fevereiro 02, 2016

"Primavera marcelista"

                                     

À conversa, veio hoje à baila, num grupo, a expressão "primavera marcelista". Os mais novos acharam graça, devendo ter pensado que era uma espécie de antónimo para o "inverno cavaquista".

Alguém esclareceu que não, que essa era uma fórmula comummente usada, no final de 1968 e início de 1969, para designar a esperança criada no país de uma possível abertura política, protagonizada por Marcelo Caetano, que havia sucedido a Salazar. A esperança foi fátua: a PIDE mudou a placa para DGS, a Censura travestiu-se de Exame Prévio, o oficioso "Diário da Manhã" passou a "Época" e até a União Nacional se crismou de Acção Nacional Popular. Houve coisas, porém, que não mudaram: a repressão, os presos políticos, a guerra colonial e falsificação eleitoral. 

Dos mais velhos, alguns com um pé na imprensa, ninguém se lembrou, na conversa, de quem teria utilizado pela primeira vez a expressão "promavera marcelista". Também não sei, mas sei como "nasceu" e expliquei. Foi o ministro do Interior, Gonçalves Rapazote, na posse dos novos Governadores Civis, poucas semanas após a posse de Caetano, quem falou no seu discurso da nova "primavera política" que se inaugurava no país. O conceito evoluiu entretanto e ficou ligado nominalmente ao "presidente do Conselho".

Eu tinha então 20 anos, andava já metido em algumas "guerras associativas" e recordo que nunca tive a menor fé na "primavera marcelista". E tinha razão.

A partir de 9 de março, lá por Belém, haverá uma nova "primavera marcelista"? Convenhamos que não deve ser difícil...

Bruxelas, nós e a Grécia

Sinto por aí dois tropismos de sinal contrário que, de novo, nos tentam colar à Grécia.

Do lado de quantos são críticos da proposta orçamental do governo, tenta alarmar-se a opinião pública com a ideia de que o comportamento português, ao apresentar em Bruxelas um projeto de orçamento que não está 100% conforme com as normas europeias, iguala aquilo que Atenas fez há um ano, com os resultados trágicos que se viram.

Por parte das "viúvas" de Varoufakis, isto é, de quem há um ano achou heróica a atitude suicidária dos gregos, ao afrontar inconscientemente as regras europeias que o país havia subscrito, surge um apoio emocional a Costa & Centeno, tentando reeditar o David versus Golias que tanto "animou" a Europa.

Ambas as posições têm o efeito negativo de ajudar a colar a imagem de Portugal à da Grécia. E isso não poderia ser mais injusto. 

O que o governo de António Costa está a fazer não é nenhuma rutura com as determinantes europeias - que o PS sempre disse ir cumprir, até que fossem mudadas. O que o governo está a procurar levar a cabo, aliás como o PS sempre disse que faria, é discutir com as entidades europeias margens de flexibilidade, a exemplo do que vários outros países europeus obtiveram, argumentando na base de situações conjunturais específicas. Nem a situação grega tem parecenças com a portuguesa, nem Portugal está a "pedir a lua", como fez a Grécia.

Poderemos ter êxito ou não nessa negociação, mas, seguramente, o Terreiro do Paço não tem vocação para se tornar numa praça Syntagma.

Por muito que isso desagrade a quem olha para Bruxelas com uma visão radical, o governo não coloca em causa as "targets" macroeconómicas a que nos comprometemos, ainda que possa discordar da sua bondade e racionalidade. Se alguma coisa aprendemos com o caso grego foi o facto de que "dar o peito às balas" isoladamente é um ato de heroicidade instantânea... porque se morre a seguir. É que se há um lema que nunca convém seguir é aquele que o nosso hino nos aponta: "contra os canhões, marchar, marchar!"

Mas também ninguém espere de nós que nos mantenhamos passivos, atentos e veneradores face aos ditames da Comissão europeia, que sempre se mostra flexível e compreensiva quando poderes mais fortes têm problemas e logo engrossa a voz quando pressente alguma fragilidade e tibieza. Como vimos nos últimos quatro anos, a Europa adora o seguidismo, que é a atitude diplomática de quem não ousar negociar, transferindo para o sofrimento do dia-a-dia dos povos o preço dessa inércia algo cobarde.

Sete anos de pastor...


"Sete anos de pastor Jacob serviu..." Lembrei-me há pouco deste poema de Camões, que ouvi o meu pai declamar desde a minha infância.

Porquê? Porque faz hoje sete anos, dia por dia, que este blogue se iniciou. Foram 2554 dias em que aqui surgiu pelo menos um post, sendo que este é o nº 4910. Tem graça lembrar o início: aqui.

Se o blogue vai continuar? Para já, vamos andando... Depois logo se verá.

Mas não digo como Camões no fim do poema: "Começa de servir outros sete anos/dizendo: mais servira se não fora/para tão longo amor tão curta a vida". Cruzes!

Manuel Pedrosa


Eu sei que o tema da gastronomia é para alguns um pouco deslocado, e até pedante, num tempo em que tanta gente atravessa dificuldades, em que a ida a um restaurante representa para muitos um esforço financeiro excecional. Percebo que falar de restaurantes de luxo ou de vinhos a preços estratosféricos pode ser visto como quase "obsceno" por muita gente. Mas essas realidades, diversas e contrastantes, existem e fazem parte do mundo, configuram um espaço nas economias dos países, pelo que iludi-las na abordagem pública seria como estarmos a iludirmo-nos a nós mesmos. Por isso, por aqui e noutras sedes, continuarei a tratar o tema da Gastronomia. Quem não quiser saber disso para nada pode fazer "zapping".

Porque ontem foi dia da atribuição das "estrelas" do Michelin em França, mas também porque foi a data do desaparecimento de José António Salvador, um homem a quem a divulgação dos vinhos portugueses muito deve, e que merece não ser esquecido, deu-me para falar de restaurantes (que novidade!, por aqui, dirão alguns).

Mas por que diabo este post tem por título "Manuel Pedrosa"?

Porque dos restaurantes cheguei mentalmente à crítica gastronómica e, logo de imediato, apareceu-me este nome. "Manuel Pedrosa" era o nome misterioso que, no início dos anos 70, surgiu em "A Mosca", o suplemento dos sábados do "Diário de Lisboa", a assinar umas notas críticas sobre restaurantes, quase sempre em Lisboa e arredores.

Com o tempo, vim a saber que o "comilão" que opinava era nem mais nem menos do que o escritor e jornalista Luis de Sttau Monteiro. Por esse tempo, o autor do empolgante "Felizmente há Luar" ou desse belo retrato social lisboeta que é o "Angústia para o Jantar" dedicava-se, como modo de vida, ao jornalismo. Em "A Mosca", Sttau escrevia as célebres redações da Guidinha, ao mesmo tempo que nos dava tais notas gastronómicas. Recordo-me que, nesses sábados, alguns leitores das crónicas tinham por hábito ir jantar ao restaurante indicado nesse mesmo dia pelo "Manuel Pedrosa" e que, ao final de algumas semanas, sorríamos com cumplicidade uns para os outros e, em alguns casos, até já nos cumprimentávamos...

Por muitos anos, pensei que o "Manuel Pedrosa" de Sttau tinha inaugurado a crítica gastronómica na imprensa em Portugal. Estava enganado, como há meses o provou Fortunato da Câmara, que sucedeu a José Quitério na "cátedra" gastronómica do "Expresso", que descobriu notas sobre restaurantes assinadas já nos anos 40 do século passado.

(Em gastronomia, aliás como no resto, estou sempre a aprender. Alimentava há anos a teoria de que "A Toca da Raposa" havia sido, em Vila Real, o primeiro restaurante da cidade - não tasca ou casa de pasto ou pensão. Ora o ilustre "vilarrealógrafo" ou "bilógrafo" Elísio Neves logo veio provar da existência de casas do género, ainda no século XIX. Quem te manda, sapateiro...)

segunda-feira, fevereiro 01, 2016

Compreensão

Percebo muito bem que a antiga maioria esteja escandalizada pelo facto do governo estar a tentar negociar com Bruxelas.

Para quem nunca o tentou...

O Brasil na "Janus"


O "Janus - Anuário de Relações Exteriores", editado pelo Observatório de Relações Exteriores da Universidade Autónoma de Lisboa, publicou em Novembro passado o seu nº 17,  relativo a 2015/2016, dedicado especialmente à "Integração Regional e Multilateralismo", mas cobrindo uma ampla gama de outras temáticas internacionais.

Recomendo vivamente esta publicação que, desde há quase duas décadas acolhe uma valiosíssima informação sobre questões internacionais e a política externa portuguesa. Os conteúdo podem ser consultados em janusonline.pt, um verdadeiro serviço público feito pela UAL.

A exemplo do que aconteceu em diversos números anteriores da "Janus", também nesta edição publico um artigo, desta vez dedicado ao Brasil. O texto (escrito em maio de 2015, pelo que não comporta desenvolvimentos mais recentes) pode ser consultado aqui.

domingo, janeiro 31, 2016

Nós e Bruxelas

Cada vez mais tenho a sensação de que parte da rigidez que Bruxelas está a indiciar, quando à trajetória proposta para o défice estrutural português, a projetar do OGE2016, se deve muito à indecisão sobre a situação política que se vive em Espanha. 

As instâncias comunitárias podem estar a temer que uma qualquer flexibilidade indiciada no caso português possa, na hipótese de um governo de esquerda se implantar em Madrid, vir a "adubar" um orçamento espanhol "ambicioso" para 2017. E com Renzi, na Itália, a começar a "levantar a garimpa", vislumbram uma onda do Sul, que sabemos que sempre desvaria a ortodoxia tradicional do Norte. Acresce que Espanha e Itália representariam sempre incumensuravelmente mais do que o caso português.

Vale a pena lembrar que o conceito de "défice estrutural" foi colocado como critério, no discurso condicionante europeu, pelo Tratado Orçamental, um acordo imposto à pressa à Europa num tempo de desregulação dos mercados, e cujas regras vieram a cumular-se às do Pacto de Estabilidade e Crescimento que fora, à partida, o referencial único para a presença dos Estados na zona euro. É verdade que o TO foi aceite por todos e por todos deve ser respeitado até que, eventualmente, venha a ser revisto. Esse respeito não exclui, como já não excluiu para imensos paìses a aplicação do Pacto de Estabilidade e Crescimento, a possibilidade de derrogações pontuais das regras, atendendo a situações específicas detetadas. Por isso é que há sempre lugar a um diálogo com a Comissão Europeia. Estranha-se, contudo, que se tenham atenuado na Europa as vozes no sentido de lançar o debate sobre a revisão do TO, tanto mais que estão hoje mais claros do que nunca alguns efeitos assimétricos nefastos da sua aplicação.

Não conhecendo, naturalmente, pormenores das negociações entre Lisboa e Bruxelas, devo dizer que me sinto muito confortável com a serenidade que o governo tem vindo a demonstrar no tratamento público da questão.

Só lamento - mas confesso que não fico surpreendido - que a oposição de direita esteja a procurar limitar internamente, sabendo que isso tem impactos externos inevitáveis (nomeadamente no alarme nas agências de notação), a margem negocial de manobra europeia do executivo, esquecendo que qualquer flexibilidade que agora fosse possível obter representaria um aliviar dos sacrifícios que o povo português suporta. Ou será que teme que venha a provar-se que era possível fazer melhor do que o "lindo serviço" que fizeram?

Uma noite na Sedes

Creio que terá sido nos primeiros meses de 1973. Nos arquivos da Sedes - esse clube de reflexão político-económica, de matriz liberal (no bom sentido), que o marcelismo (o outro) deixara criar e que ainda subsiste - deve ser possível descobrir o dia exato (como fui "para a tropa" em fins de março, deve ter sido até essa data). É lá que este episódio se passa.

Naquela noite, as instalações antigas da Sedes, na rua Viriato, estavam "à cunha". Estávamos lá para ouvir Francisco de Sá Carneiro, que, pouco antes, se havia demitido da sua condição de deputado à Assembleia Nacional, por insanáveis divergências com Marcelo Caetano. Eu nunca tinha ido à Sedes, aliás nunca fui dela associado e só por lá passei escassas vezes. Mas a perspetiva de uma palestra heterodoxa do líder da excluída "ala liberal" foi suficiente para se sobrepor à (pateta) sobranceria esquerdista com que então eu olhava as "contradições não antagónicas" que existiam no seio do regime. 

Por coincidência, cruzara-me à entrada com Sá Carneiro, que me lembro de trazer uma gabardine preta e que, pela autoridade e pela "gravitas" que projetava, dava ares de ser mais alto do que a sua pequena figura realmente era. Salvo uma tarde de 1970, em que o vislumbrei da tribuna dos visitantes, no plenário da Assembleia, creio ter sido esta a única vez que vi o fundador do PPD.

Já não recordo o tema da sessão, mas imagino que fosse do tipo "A situação política" ou outra daquelas fórmulas muito genéricas que eram sempre um pretexto para se falar de tudo. E se eu, que nem sócio era, pudera entrar (terei ido com alguém?), imagino que os ouvidos da polícia política estariam por ali também.

Não me lembro rigorosamente nada do que Sá Carneiro terá dito. Mas recordo que houve dois jovens que lhe colocaram perguntas, um pouco longas para o gosto da impaciente assistência, que se percebia que não estava ali para ouvi-los, mas apenas ansiosa pelas respostas do orador.

O primeiro foi-me identificado. Nunca o tinha visto, mas ouvira falar dele, pela primeira vez, já não sei a propósito de quê, anos antes, numa reunião da "Livrelco", a cooperativa livreira universitária, ali para os lados de Entrecampos, de cujos corpos gerentes fiz parte. Referiram-mo como "um tipo fino como um alho", um bocado "facho" (simplificação esquerdalha para tudo quanto não fosse, no mínimo, socialista. E mesmo assim...), uma das cabeças com futuro na direita.

O outro interveniente era-me completamente desconhecido. Foi quem falou mais. Exprimia-se muito bem, de forma articulada, num tom político que, sendo visivelmente distante dos terrenos em que eu me movia, indiciava fortes distâncias face ao regime. Recordo-me de ter inquirido o nome. Um conhecido que tinha por perto, esclareceu-me, em voz baixa: "É um católico do Técnico. Dizem que é muito esperto. Chama-se António Guterres". (Tenho sempre a dúvida sobre se, antes do "dizem" não houve um "mas"). Ah! O outro perguntador chamava-se, e chama-se, Marcelo Rebelo de Sousa.

Não deixa de ter graça que um seja hoje candidato a secretário-geral da ONU e o outro o futuro chefe do Estado.

sábado, janeiro 30, 2016

O sorriso perdido de Centeno


Há cerca de dois anos, uma organização de alunos da Universidade Nova de Lisboa convidou-me para um debate sobre os novos desafios da Europa. Teria como parceiro de mesa Mário Centeno. O nome dizia-me alguma coisa, mas pouco. Fiz uma pequena pesquisa e ela fez-me lembrar que ouvira Mário Centeno na conferência anual da Fundação Francisco Manuel dos Santos, onde se pronunciara sobre Economia do trabalho. Ficara então muito bem impressionado com a apresentação feita, muito estruturada e com perspetivas que não conhecia.

O nosso debate na Nova correu muito bem. Voltámos, depois disso, a cruzar-nos algumas vezes, em reuniões, e, com naturalidade, vi-o surgir à frente da pasta das Finanças no governo de António Costa, de quem havia sido o "guru" na área económico-financeira. Todos nos recordaremos que havia então em Centeno uma jovialidade que se espelhava num sorriso franco, quase adolescente, que se manteve em muitas aparições públicas, em que foi sendo conhecido pelos portugueses. 

Esse sorriso tem esmorecido nos últimos tempos. Julgo que nenhum de nós, de fora, poderá sequer imaginar o que deve ser o peso de um lugar como aquele que Mário Centeno ocupa, sujeito às pressões de uma conjuntura internacional que não controla, à necessidade de dar resposta positiva aos compromissos internos que tornam viável a existência do executivo de que faz parte e, no topo de tudo isso, tendo que lidar com as "bombas ao retardador" deixadas pelo anterior governo, como foi o caso do Banif e se constata agora ter sido a linguagem dupla (para as instituições europeias e para a opinião pública interna) usada por Passos Coelho e pela sua equipa para qualificar determinados cortes feitos no quadriénio que cessou.

Gostava de voltar a ver Mário Centeno sorrir. Será sinal de que poderemos fazer o mesmo.

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...