quarta-feira, março 14, 2012

Memória diplomática

Foi um jantar bem agradável, num restaurante à beira-mar, no Pireu. O embaixador português, a pretexto da minha passagem por Atenas, tivera a simpatia de convidar alguns colegas.

A meu lado ficou um embaixador de um país amigo, mas cujo nome agora me escapa, o qual, durante todo o jantar, me falou imenso das ilhas e das praias, dos armadores milionários que conhecia, dos cruzeiros para que era convidado e outros temas com idêntica intensidade lúdica. Estava em Atenas há mais de dois anos, mas a sua vocação para assuntos mais profundos parecia limitada, a julgar pela escassa sequência que dava às questões políticas que eu lhe colocava - como as "guerras" entre o PASOK e a Nova Democracia, a questão da Macedónia, o problema negocial em Chipre ou a dimensão orçamental do esforço militar grego, fruto das tensões com a Turquia. 

A certa altura do jantar, levantei-me e, ao passar por uma mesa, pareceu-me vislumbrar nela a figura de Konstatinos Mitsotakis, que havia sido primeiro ministro por mais de três anos, depois de ter assumido vários cargos governamentais. Só o conhecia de fotografia, pelo que fiquei na dúvida se era mesmo ele. Regressado à mesa, referi o facto ao tal embaixador que tinha a meu lado, que logo retorquiu:

- Mistotakis? Quem é?

- Não se lembra? Foi primeiro ministro antes de Andreas Papandreou...

- Não tenho ideia... já não é do meu tempo.

Tive a tentação de lhe responder: "Ora essa! Também a Acrópole não é!". Há gente que devia ter escolhido outra profissão...

O futuro da Europa


terça-feira, março 13, 2012

Comentários políticos

Com a campanha eleitoral francesa a passar por novos e interessantes cambiantes, torna-se cada vez mais importante assistir a análises televisivas elaboradas por especialistas independentes, conhecedores dos temas, e não necessariamente vinculados a qualquer partido político. Jornalistas, politólogos, académicos ou técnicos sectoriais dão-nos a sua leitura dos factos, num contraditório enriquecedor e esclarecedor.

No nosso país, salvo exceções, prevalece uma realidade que, a meu ver, passa quase desapercebida: somos dos raros países em que a comunicação social está permanentemente ocupada por figuras do mundo dos eleitos da política, que diariamente nos debitam, com maior ou menor criatividade, as expectáveis posições das formações partidárias de que dependem.

Em todos os países democráticos em que vivi - como a Noruega, o Reino Unido, os Estados Unidos, a Áustria, o Brasil ou a França - nunca vi nenhum colunista de jornal ou comentador regular de televisão que exercesse, simultaneamente, um cargo parlamentar ou de eleito público. Essas figuras podem ser convidados esporádicos de um programa, mas nunca são debatedores regulares nesses espaços.

Aliás, volto também a lembrar que não recordo, dentre as democracias cujo funcionamento conheço, nenhuma onde os jornais televisivos, a propósito de qualquer tema, sejam obrigados a auscultar a opinião de todos - mas todos - os partidos políticos com assento parlamentar.

Percebo que, após o 25 de abril, tenha sido necessário conferir espaços de prestígio às formações partidárias, que a ditadura havia diabolizado. Mas a verdade é que, com o decorrer dos tempos, parece que caímos no outro extremo e vemos a sociedade mediática refém de regulares "tempos de antena" partidários, que se pretendem fazer passar por formas indispensáveis de expressão democrática.

Para quantos defendem o modelo em vigor em Portugal, de uma coisa podem estar seguros: somos uma espécie rara.

O défice dos futebóis

Este ano, ninguém desce da divisão principal do nosso futebol, a qual, no próximo ano, passa a ter 18 clubes. em lugar dos atuais 16.

Esta foi uma decisão há pouco anunciada pela Liga de Clubes, que tem uma nova direção, recém-eleita, quase que aposto que com os votos dos clubes que agora não descem.

É apenas Portugal no seu melhor!

domingo, março 11, 2012

Diplomacia democrática

Exatamente há um ano, num contexto político bem diferente do atual, publiquei neste blogue o post "Diplomacia democrática" que agora vou repetir, porque me parece não ter perdido a menor atualidade:

"É nestes tempos em que o nome de Portugal e da situação político-económica portuguesa anda nas bocas do mundo que será talvez oportuno recordar as obrigações de uma diplomacia democrática.

Tenho para mim que uma das menos edificantes e mais indignas atitudes que um diplomata pode assumir, perante interlocutores estrangeiros, é enveredar pela crítica às autoridades do país que representa. Mas, devo dizer, torna-se igualmente triste ouvi-los criticar, em público, as forças da oposição que, com toda a legitimidade democrática, são adversários dos poderes instituídos.

Ambas as atitudes relevam, pura e simplesmente, de uma grave falta de sentido profissional. O interlocutor estrangeiro respeita o diplomata que, independentemente das suas ideias pessoais, sabe assumir uma atitude equilibrada na análise da situação política interna existente no seu país, que é capaz de expor, com rigor, equilíbrio e equanimidade, os sucessos ou insucessos do Estado que lhe cabe representar, que defende com empenhamento os interesses deste mas não camufla conflitualidades ou dificuldades existentes no seu mundo político interno, que não edulcora, ao absurdo, o que de negativo possa existir na sociedade que lhe cabe representar.

Já me confrontei, no meu percurso profissional, com colegas estrangeiros de todo o tipo. Convivi com os cegos militantes, para quem os respetivos dirigentes são o máximo existente à face da terra, os quais, no seu parecer sectário, são obrigados a sofrer os custos de uma oposição cuja ação quase ilegitimam, apenas porque esta não cai no seu goto pessoal. Conheci os mal-dizentes crónicos, que remoem em público, dia-após-dia, críticas ou ironias, quando as autoridades eleitas não são da sua cor política, acusando-as de todos os malefícios pátrios, suspirando por uma reviravolta que ponha os do "outro lado" no poder. Num registo mais corporativo, dei às vezes de caras com aqueles que acham que a política externa do seu país é apenas um lamentável desastre, que estão condenados a representar "malgré eux", atitude muitas vezes mobilizada por ódios acumulados ou por queixas profissionais.

Assisti a muitas conversas com todo este tipo de gente e - garanto! -  sempre pude observar a pena que a sua atitude provoca nos interlocutores, em especial em colegas de países onde a diplomacia democrática se pratica e se vive, com naturalidade e sentido de Estado. Onde esses colegas procuram exibir, de forma  mais ou menos espalhafatosa, o que pretendem ser uma hiperfranqueza crítica - face a instituições, forças políticas ou figuras do quadro democrático do seu país -, os estrangeiros que os ouvem apenas nisso vêm deslealdade e ausência de um espírito profissional. Às vezes sorriem, mas, por detrás desse sorriso, está sempre um esgar de desprezo.

A diplomacia democrática é o estado supremo do profissionalismo em matéria de representação externa. Vale a pena recordar isto, nos dias que correm."

Mário Melo Rocha (1957-2012)

Mário Melo Rocha, que ontem desapareceu, era um dedicado europeísta e um homem de cultura, para além da sua profissão de advogado e especialista em temáticas do ambiente.

Foi através dos temas europeus que nos conhecemos, tendo eu participado em algumas iniciativas que organizou, nomeadamente no âmbito da SEDES e da Universidade Católica, no Porto. Lembro-me, em especial, de um interessante debate que promoveu e em que intervim com a Teresa de Sousa e o José Barros Moura, nos tempos da negociação do Tratado de Amesterdão.

Recordo-o, também, pela sua simpatia pessoal, pelo modo entusiasmado como se dedicava às coisas e às causas. Sai de cena bem cedo.

sábado, março 10, 2012

11 de Março de 1975

A tensão fora imensa durante todo o dia. Recordo os caças a passar a meio da manhã sobre Belém (que eu via da varanda da Ciesa-NCK, onde eu tinha o meu emprego matinal), as notícias do ataque aéreo e terrestre ao regimento do RALIS, o almoço rápido e pesado na messe do Instituto de Altos Estudos Militares, em Pedrouços, e uma infindável tarde, prenhe de boatos, telefonemas e dúvidas, passada entre a 2ª divisão do EMGFA, no palácio da Ajuda, e o então Instituto de Sociologia Militar, na calçada das Necessidades.

Era o dia 11 de Março de 1975. Spínola havia provocado a revolta contra o MFA em Tancos, mandara avançar forças sobre Lisboa, convencido que poderia conseguir um levantamento de outras unidades, descontentes com a progressão radical da revolução. A tensão político-militar tinha atingido o seu ponto extremo e culminaria com a patética rendição dos pára-quedistas em frente ao RALIS, com a fuga de Spínola para Espanha, a prenunciar que muita coisa poderia mudar a partir de então. Não sabíamos, porém, o quê e como. 

A tarde acabou e eu regressei a casa, a ouvir a rádio e a ver, pela enésima vez, as imagens da televisão. Por um pressentimento de que algo iria passar-se ainda nesse dia, voltei ao Instituto de Sociologia Militar, depois de jantar. Começaram a aparecer por lá alguns milicianos do Exército, como eu e o Agostinho Roseta, militares da Marinha, gente vinda do RALIS, estes últimos a descrever com emoção os eventos da manhã. E apareceram algumas figuras gradas do MFA, próximas do PCP, como Ramiro Correia e Dinis de Almeida.

De repente, como que por acaso, começou a consensualizar-se uma onda de revolta pelo facto do “Conselho dos Vinte”, que funcionava como órgão militar máximo desde a extinção da Junta de Salvação Nacional, estar “placidamente reunido nos tapetes de Belém”, como alguém disse. Aparentemente, ao que nos chegava, o Conselho estaria apenas disposto a reflectir sobre a crise, sem cuidar de afastar ou punir alguns culpados óbvios, senão por acção, pelo menos por indesculpável omissão ou complacência com os “conspiradores spinolistas”, como o nosso radicalismo simplificava os revoltosos do dia.

Para muitos dos exaltados presentes, a lista dos responsáveis já era longa, desde os serviços de informação militar até certas figuras da hierarquia militar e à "reaccionária" direcção da televisão, o que significava, para alguns, querer atingir Ramalho Eanes, o general que, meses mais tarde, seria o comandante operacional do contra-golpe de 25 de Novembro de 1975.

Aí pelas 11 horas da noite, forma-se, no seio do "pessoal" que discutia a situação, uma ideia imparável: ir a Belém, interromper o “Conselho dos Vinte” e exigir uma reunião extraordinária da Assembleia do MFA, para essa mesma noite.

Dito e feito. Aí avançámos nós rumo à Presidência da República. Entrei ao volante do meu carro pelo pátio das Damas, à Ajuda, sem nenhum impedimento dos polícias do portão, amedrontados pelo aparato da fila de viaturas. A meu lado ia o Agostinho Roseta, dois desconhecidos oficiais da Marinha de boleia no banco de trás, a quem, estranhamente, não arrancámos grandes palavras em todo o trajeto.

Depois, foi o povoléu de roldão pelos corredores, qual entrada no Palácio de Inverno, com escadas que notei que desciam e subiam de seguida, até que entrámos numa sala, onde demos de cara com o almirante Rosa Coutinho. O Conselho devia estar interrompido e o almirante, com o seu sorriso largo, olhando o nosso tom decidido e grave, lançou, divertido: “Até parece que vêm fazer um golpe de Estado!”.

Foi então que se ouviu uma voz, saída de uma cadeira à esquerda da porta por onde entráramos, e em quem não havíamos ainda reparado: “Eu não lhe dizia, meu almirante, que a rapaziada acabava por aparecer por cá?!”. Era uma figura muito conhecida do MFA, desde sempre muito ligadao ao PCP.

Nesse instante, olhei para o Agostinho Roseta e ambos concluímos, em silêncio, estarmos a fazer o papel de “inocentes úteis” numa manobra muito bem urdida pelo "partido" e pela “esquerda militar” que lhe era afeta.

Depois, as coisas precipitaram-se. Saímos para uma sala maior, os membros do Conselho acabaram por se juntar à tropa "amotinada" que nós éramos, houve uma dura troca de palavras durante um quarto de hora, com Vasco Lourenço a tentar ser a força moderadora do lado dos conselheiros, tendo o presidente Costa Gomes acedido, finalmente, à realização da Assembleia – esse areópago de cerca de 240 militares que era uma espécie de parlamento da revolução.

Meia hora mais tarde, perante o entusiasmo de muitos e o visível incómodo de alguns, estávamos a reunir, de volta à calçada das Necessidades, aquela que ficou conhecida como a “assembleia selvagem” de 11 de Março, uma Assembleia do MFA convocada em termos mais do que duvidosos e com uma composição mais do que nunca “ad hoc” – de que a melhor prova era a minha própria presença, que dela não fazia parte formal, embora, noutra qualidade, tivesse estado presente em reuniões anteriores, o que voltaria a repetir-se até julho.

Aquela foi a noite dos confrontos verbais extremos, de um apelo pateta e isolado a fuzilamentos de “traidores”, de uma imensidão de intervenções dramáticas, em que até eu não deixei de meter a minha breve colherada oratória.

Às sete da manhã, estava a tomar pequeno almoço com o José Rebelo, então correspondente do “Le Monde”, sedento de notícias, numa leitaria ao Saldanha.

O dia correu numa imensa agitação e, na noite desse já 12 de Março, ajudei a votar, numa assembleia do Exército, os nomes para o Conselho da Revolução, que a reunião “selvagem” da véspera criara. A minha legitimidade para participar nesse exercício era mais do que duvidosa, mas os tempos eram o que eram.

Antes, porém, num intervalo, fui procurado pela mesma figura que na véspera encontrara em Belém, a qual, a pretexto de felicitar-me por uma intervenção feita momentos antes, me deu a ler, para consideração e eventual apoio, uma proposta com nomes para figurarem como representantes do Exército naquele novo Conselho. O nome do próprio constava da lista.

Olhei para ele, “escaldado” pela cena de Belém, e retorqui apenas: “Não acha essa lista demasiado óbvia?”. Voltou-me as costas. Eu podia continuar a ser inocente, mas havia coisas para as quais já não me prestava a ser útil.

sexta-feira, março 09, 2012

Mistérios

Começo a converter-me às imensas vantagens de, daqui por uns tempos, regressar definitivamente a Portugal. Com efeito, dou por mim a pensar que só se pode compreender o país quando nele se vive no dia-a-dia. Para quem habita fora, há coisas muito difíceis de entender.

Exemplos? Ver Marcelo Rebelo de Sousa apresentar um livro de Francisco Louçã ou Jorge Braga de Macedo a fazer o elogio público de Paul Krugman.

Vai ser muito divertido ver estas coisas mais de perto.

quinta-feira, março 08, 2012

Grande Eça!

Aqui está a nova placa que, daqui a alguns dias, vai ser colocada na casa onde, em Paris, morreu Eça de Queirós. A anterior, que estava muito deteriorada e era irrecuperável, havia sido inaugurada em 14 de Setembro de 1950, pelo embaixador de Portugal em França, Marcello Mathias (ver aqui). Optámos por reproduzir com exatidão do modelo anterior. 

Creio que todos os queirosianos devem ficar satisfeitos com esta notícia. Oportunamente, vamos organizar, no local, uma pequena cerimónia, para celebrar a recuperação deste memorial do grande escritor. 

quarta-feira, março 07, 2012

Patrimónios

O que se aprende com uma nova afetação profissional!

Esta semana, passo alguns dias, em Portugal, em reuniões e contactos destinados a inventariar o argumentário português na defesa da qualidade de Património Mundial do Douro Vinhateiro, em face da construção de uma barragem no Tua, a preparar um projeto de candidatura de Portugal à inclusão na "dieta mediterrânica" e a atentar nos argumentos dos proponentes de classificação análoga do Cante Alentejano.

Uma das riquezas do mundo da diplomacia é a possibilidade de trabalhar uma diversidade de temáticas que podem ser utilizadas para sublinhar, no exterior, os interesses que o país entende dever proteger para alicerçar o seu prestígio.

terça-feira, março 06, 2012

Conversa (2)

Uma cidadã brasileira comprava uma "raspadinha", à hora de almoço, numa tabacaria de Lisboa. Não percebi bem a propósito de quê, disse para a vendedora:

- Eu sou corintiana, estou habituada a sofrer.

Para logo acrescentar:

- Por isso, cá em Portugal, sou pelo Sporting.

Ah! valente!

segunda-feira, março 05, 2012

Conversa

Conversa ouvida, na manhã de hoje, num multibanco de Vila Real:

- Então, estás a levantar paínço?

- Não, pá! Estou a pagar o IMI.

- E que tal? Foi uma conta calada?

- Foi. Gasparam-me mais de 300 euros.

Chegado a casa, esmagado pela minha ignorância lexical, fui logo ao dicionário. Nada! Razão tem o Dr. Graça Moura: não há um vocabulário atualizado da língua portuguesa, que conte já com a imparável criatividade lusitana, nestes tempos de troika.

domingo, março 04, 2012

Bordéis

Admito que para alguns possa soar a sintoma de modernidade, pode até ser que a segurança física das prostitutas (e dos prostitutos, presumo) saia mais protegida com a sua instalação em residências próprias legalmente protegidas, que a comodidade dos utentes possa vir a corresponder aos eventuais níveis de exigência a Deco venha a estabelecer, pode ser o que quiserem que seja, mas a mim, até prova em contrário, parece-me relevar de um imenso reacionarismo social a hipótese de legalização dos bordéis.

E não venham, de forma saloia, com exemplos "do estrangeiro" como argumento, está bem?

sábado, março 03, 2012

Post

Aqui fica o post (it) de hoje. Não há tempo para mais, desculpem lá!

sexta-feira, março 02, 2012

Manuel Sá Machado

Na história do Ministério dos Negócios Estrangeiros português há um nome, pouco conhecido pelas atuais geração, a quem a carreira diplomática muito ficou a dever: Manuel Sá Machado. Ontem à noite, uma amiga estrangeira falou-me dele, com grande admiração.

Manuel Sá Machado estava a trabalhar no MNE, na secção do "Pacto do Atlântico", na altura do 25 de abril. Homem de conhecido perfil democrático, tinha travado conhecimento com o oposicionista Victor da Cunha Rego, ao tempo em que servira como diplomata no Brasil. Cunha Rego acabara de ser escolhido por Mário Soares, logo em Maio de 1974, para seu chefe de gabinete nas Necessidades. E, com naturalidade, chamou Sá Machado para trabalhar junto de si.

Como relata o embaixador Calvet de Magalhães no seu trabalho "O 25 de abril e as Necessidades", Manuel Sá Machado era "um funcionário excecional. Além das suas invulgares qualidades era uma pessoa de um enorme bom-senso, trato cordial e raras qualidades de caráter. O Dr. Cunha Rego indicou-o ao Dr. Mário Soares como a pessoa idónea para o informar sobre tudo o que respeitava ao ministério e aos seus funcionários".

Em vários livros e conversas, Mário Soares já revelou que a imagem que, até ao 25 de abril, criara do MNE e, na generalidade, da carreira diplomática portuguesa, não era muito lisonjeira. Porque a diplomacia aparecia ligada à primeira linha da ação internacional de defesa da política colonial do regime e porque também se suspeitava que a polícia política utilizava certas redes diplomáticas e consulares para espiar democratas no exílio, era perfeitamente natural que o MNE surgisse, aos olhos dos opositores do regime, como um núcleo funcional merecedor de muito escassa confiança. Em vários setores políticos do novo poder cedo surgiu a ideia de proceder a uma ampla "vassourada", que afastasse um grande número de diplomatas e, em sua substituição ou para um seu eficaz enquadramento, garantisse o rápido recrutamento de uma nova classe "diplomatas da democracia", oriunda dos meios políticos vitoriosos.

Ora foi precisamente a credibilização da carreira, ou melhor, a certificação do profissionalismo da grande maioria dos diplomatas portugueses, a tarefa de que se encarregou Manuel Sá Machado. Este nosso colega terá conseguido explicar a Mário Soares que, com algumas exceções, tinha ao seu dispor, para conduzir a política externa, um corpo dedicado e qualificado de funcionários de grande lealdade à causa pública, com sólida experiência, perfeitamente preparados para sustentarem o novo tempo internacional que se abria à diplomacia portuguesa. Mário Soares acreditou em Sá Machado e a carreira soube corresponder a essa confiança.

Nunca conheci pessoalmente Manuel Sá Machado, embora talvez o possa ter cruzado nos corredores do MNE, antes da sua prematura morte, creio que em 1977. Mas a conversa que ontem tive lembrou-me o dever de deixar aqui uma nota de admiração e de gratidão pela ação desse colega, que ajudou a que a carreira diplomática portuguesa não tivesse de passar por desnecessários tempos traumáticos. E, mais importante que tudo, que a diplomacia portuguesa pudesse preservar, para além dos ciclos políticos, o seu perfil de serviço público, competente e leal.

quinta-feira, março 01, 2012

Diplomacias

"Having said that..." - já me tinha esquecido da fórmula anglo-saxónica através da qual, depois de se terem elencado, de forma habilmente fragilizante mas com um ar de quem os subscreve, todos os argumentos num determinado sentido, se parte para a sustentação da posição contrária. Sorri ao ouvi-la, hoje de manhã, na minha primeira reunião formal na UNESCO, durante a qual revisitei as velhas práticas onusinas.

A reunião foi muito bem dirigida por uma colega embaixadora, que defrontou, com sabedoria, algumas sérias dificuldades políticas, conseguindo garantir um bom ritmo aos trabalhos.

Um presidente de reunião tem de saber identificar, com precisão, os pontos potencialmente conflituais e tem de desenhar uma tática específica para ultrapassar essas dificuldades, eventualmente gizando prévias cumplicidades com certos delegados. É um exercício difícil, que combina a autoridade com a habilidade. Quando um presidente é demasiado autoritário irrita "a sala" e pode provocar intervenções que vêm complicar o debate, tornando muito difícil a sua gestão posterior. Pelo contrário, um presidente "banana", que dê a palavra a toda a gente e não procure definir limites temporais para a abordagem de temas, é pressentido como permissivo e, se acaso cair na armadilha de permitir que os "chatos" e os prolixos se excedam, abre precedentes que depois não pode reverter. Mas o pior presidente é aquele que "a sala" identifica como alguém que está a tentar enganá-la, que procura utilizar estratégias regimentais para coartar direitos, para iludir determinadas questões ou menorizar certas temáticas ou delegações. A verdadeira chave de sucesso de uma presidência é a criação de um sentimento de respeito em torno de si própria.

Tenho uma muito longa experiência de chefia de reuniões, desde assembleias gerais de associações de estudantes até conselhos de ministros da União Europeia, passando por comissões, com multidões de delegados, na ONU e na OSCE. E ainda hoje assim me aturam, no Conselho geral da UTAD. Em todas essas funções, sem exceção, cometi erros, mas aprendi muito com eles. Por azelhice (mas também por tática), deixei, por vezes, arrastar situações até a um ponto de pré-caos mas, noutros casos, consegui dar a volta ao que parecia (ou que queria deixar parecer) impossível de controlar.

Nestes últimos, conto como "glórias" o "comité de ministros" de Schengen, em Junho de 1997, no CCB, e o "conselho permanente" final da nossa presidência da OSCE, em Dezembro de 2002, na Alfândega do Porto. Em ambos as situações, a minha "habilidade" para forçar compromissos baseou-se na... alimentação. Nas duas reuniões, com temas muito delicados e posições, à partida, bem distantes, só consegui fazer vingar as propostas portuguesas (que se iam sucedendo com fórmulas diferentes, na busca de um consenso) através do prolongamento do debate. Em ambos os casos, reuniões que decorriam desde manhã acabaram por arrastar-se, por deliberada "perfídia" da presidência, até cerca das 4 da tarde, com as delegações exaustas, quase já dispostas a tudo, ansiando pelo almoço que tardava, e que eu, sadicamente, mencionava "en passant", nas minhas intervenções, como estando à nossa espera. Os vários colegas portuguesas que me acompanharam nessas maratonas devem lembrar-se bem dessa minha tática - dessa diplomacia lusa da fome.

quarta-feira, fevereiro 29, 2012

Lóbi

Ontem, um comentador protestou contra a utilização do termo lóbi, para designar o "hall" de um hotel. Confesso que estava mais à espera de uma reação quanto ao aportuguesamento da palavra "lobby", mas tudo bem. E é a propósito de um lóbi de hotel que me lembrei de uma historieta.

Estávamos na Zâmbia, a meio de uma longa viagem governamental por vários países africanos. Não faço ideia a quem, naquele caso, competia a responsabilidade pelas reservas, mas a verdade é que, chegados bastante cedo ao Hotel Intercontinental de Lusaka, idos de Harare, naquele final dos anos 80, nos demos conta de que faltavam dois quartos para a delegação portuguesa. Arrumados os membros da delegação mais afortunados, eu e o Duarte Ivo Cruz constatámos que, para nós, não havia quartos. Ou melhor: havia uma vaga promessa de poderem "aparecer". Para utilizar uma expressão que o então chefe da delegação portuguesa viria, décadas depois, a tornar popular noutro contexto, nós podíamos dizer que sabíamos que íamos ter um quarto, só não sabíamos é quando e em que condições!

A visita oficial comportava, entretanto, alguns "números", entre os quais uma visita ao presidente Kenneth Kaunda, bem como reuniões e uma multiplicidade de contactos. Intercalando tais eventos, havia passagens pelo hotel onde a delegação se acolhia. A delegação, não! A maioria da delegação! Porque eu e o Duarte continuávamos com as nossas malas recolhidas em quartos alheios e, nesses intervalos, contactávamos, com progressivo desespero, a receção ou a direção do hotel, metíamos "cunhas" através de empresários locais e da nossa embaixada, sempre em diligências cada vez mais ansiosas, porque a noite se ia aproximando. E, perante o olhar descansado (e demasiado sorridente, parecia-nos) dos nossos colegas, que se regalavam com bebidas no bar e conversavam entre si relaxados, nós os dois andávamos, de um lado para o outro, labutando verbalmente por uma cama onde descansar a noite.

O jantar oficial nem nos caiu bem, porque, acabado este, lá voltámos nós, ansiosos, ao lóbi do hotel. E seria já depois das 11 da noite que, numa taquicardia angustiada, finalmente, recebemos as chaves dos nossos quartos, para logo constatarmos, com forte choque, que deles haviam sido literalmente "despejadas" duas famílias africanas, com filhos, que foram dormir sabe-se lá para onde. Mas, àquela hora da noite, o nosso limiar de solidariedade estava já ultrapassado pela lei da sobrevivência.

Foi nessa altura, culminadas que haviam sido as dezenas de diligências feitas, junto de imensos interlocutores, que o Duarte Ivo Cruz, que comigo brindava o mútuo "sucesso" com um merecido whisky, se saiu com uma frase que recordo até hoje: "Só agora percebi, verdadeiramente, por que razão a esta área dos hotéis se chama "lóbi". Foi isso mesmo que andámos o dia inteiro a fazer..."

terça-feira, fevereiro 28, 2012

Códigos

Há quase três décadas, no lóbi de um hotel estrangeiro, assisti a uma conversa, em que participou um então responsável político português, cujo tom me marcou para sempre. A discussão centrava-se nas políticas do futuro Banco Central Europeu e, muito em particular, nos termos de referência que essa nova instituição deveria seguir, com vista a assegurar o objetivo central da sua ação - a estabilidade dos preços.

Essa figura, homem que, aliás, prestou assinaláveis serviços ao país, afirmava, com toda a serenidade e certeza, que a nova instituição deveria limitar-se a seguir uma espécie de "breviário" técnico, independente de quaisquer juízos pessoais de valor, à luz da "sabedoria" acumulada pela doutrina económica, ao longo de décadas: "Perante uma evolução no sentido X, deve proceder-se a uma correção na direção Y. Mais nada!". E deu, como exemplo similar, os códigos jurídicos que, para uma determinado comportamento, estipulam uma certa pena.

Sou sempre muito cético perante este tipo de "sapiência" e automatismo. A assim ser, um destes dias colocamos um computador a tomar decisões e vamos todos para a praia... A história tem, quase sempre, muito maior imaginação do que os homens - como se vê bem pelo destino caricato das previsões económicas, a médio e longo prazo. Por isso, nessa noite, guardei modestamente as minhas reticências, mas "fiquei cá na minha". 

Porque é que falo disto hoje? Porque acabo de ler, com algum cuidado, as observações da troika ao comportamento da economia portuguesa, que hoje vive sujeita aos seus particulares métodos de cura e que bebe, com ânsia e impaciência, a "nota" das "frequências" a que está sujeita, antes de estipendiar, para nosso cíclico alívio, a paternal "mesada" trimestral. E dei comigo a pensar que parece subsistir naquelas instituições, bem como nos técnicos que coreograficamente as representam, uma matriz de receituário que, na metodologia, não se afasta muito da observância de "códigos" similares àqueles de que nos falava aquele nosso político.

Embora nada disto seja especialmente novo, e sei lá bem porquê!, acho que hoje não vou dormir muito descansado.

Limites

Eram os primeiros meses de 1976. "Desterrado" pelo MNE no então "Ministério da Cooperação" (de cuja existência poucos se lembrarão), no edifício em que hoje funciona o Ministério da Defesa, tinham vindo almoçar comigo, num restaurante à zona do Restelo, dois colegas das Necessidades, tal como eu recém-entrados na carreira. Acompanhava-nos à mesa um outro amigo com quem eu trabalhava e que lhes havia apresentado na ocasião, oriundo de uma área técnica.

A certo passo, um dos colegas vindos do MNE mencionou que estava colocado na então "Comissão Internacional de Limites com Espanha", estrutura que se ocupava das temáticas de fronteira. Ironizámos em como deveriam ser "fascinantes" alguns temas com que lidava nesse serviço, de que era exemplo notório a escaldante questão do regime de utilização dos mouchões aluviais. Mas o meu amigo técnico, para grande surpresa de todos, deu estranha nota de estar interessadíssimo na temática, fazendo imensas perguntas ao meu colega.

Devo dizer que, a certo ponto, comecei a ficar com a sensação de que, na realidade, ele estava apenas a "fazer a folha" ao jovem diplomata, tais eram as atenções, de uma quase afetividade, que lhe ia dirigindo. Achei divertida a cena e, confesso, acabado que foi o almoço, mais curioso fiquei quando vi os dois a trocar cartões e a combinarem contactos futuros. "Caramba, foi tiro e queda!", pensei, então já surpreendido com a minha naïveté, à qual tinha escapado a aparente propensão mútua para aquele tipo de afinidades eletivas.

Passaram-se umas semanas e, ao cruzar-me no MNE com o meu colega diplomata, não resisti: "Então, voltaste a encontrar aquele amigo que te apresentei há tempos?". Com a maior naturalidade, o meu colega respondeu: "Sim, sim! Almoçámos, há dias. É muito simpático" e, talvez detetando um brilho de discreta ironia no meu olhar, adiantou: "Sabes o que ele queria?". Nem me deixou no embaraço de presumir e, com um largo sorriso, logo esclareceu: "Queria que eu me inscrevesse na Liga dos Amigos de Olivença, de que é diretor. Como eu estou na "Comissão de Limites", achou que, um dia, eu poderia "dar um jeito", sabe-se lá!...". Rimo-nos a bom rir. Afinal, eram apenas essas a afinidades que andavam no ar.

Lembrei-me disto a propósito da encenação da "Guerra das Laranjas", em Olivença, tema que agora deu para mobilizar alguns amigos meus, algo agitados no seu pousio.

segunda-feira, fevereiro 27, 2012

Jornalismo

"Árvore caiu sobre automóvel que circulava perto de Mafra há um ano" - este elucidativo exemplo, de fino recorte estilístico, fazia parte, há minutos, do texto de uma notícia da SIC.

Anda por aí muita gente preocupada com as consequência da entrada em vigor do novo Acordo Ortográfico. Não os vejo, contudo, tão pressurosos em denunciar a iliteracia de quantos, com calinadas deste jaez, põem em perigo a salubridade da escrita pública.

Aproximamo-nos a passos largos dos tempos, recordados pelo João Paulo Guerra, num almoço que há meses tivémos com Baptista-Bastos, em que um inspirado plumitivo escrevia: "Era meia noite e, no entanto, chovia..."

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...