A tensão fora imensa durante todo o dia. Recordo os caças a passar a meio da manhã sobre Belém (que eu via da varanda da Ciesa-NCK, onde eu tinha o meu emprego matinal), as notícias do ataque aéreo e terrestre ao regimento do RALIS, o almoço rápido e pesado na messe do Instituto de Altos Estudos Militares, em Pedrouços, e uma infindável tarde, prenhe de boatos, telefonemas e dúvidas, passada entre a 2ª divisão do EMGFA, no palácio da Ajuda, e o então Instituto de Sociologia Militar, na calçada das Necessidades.
Era o dia 11 de Março de 1975. Spínola havia provocado a revolta contra o MFA em Tancos, mandara avançar forças sobre Lisboa, convencido que poderia conseguir um levantamento de outras unidades, descontentes com a progressão radical da revolução. A tensão político-militar tinha atingido o seu ponto extremo e culminaria com a patética rendição dos pára-quedistas em frente ao RALIS, com a fuga de Spínola para Espanha, a prenunciar que muita coisa poderia mudar a partir de então. Não sabíamos, porém, o quê e como.
A tarde acabou e eu regressei a casa, a ouvir a rádio e a ver, pela enésima vez, as imagens da televisão. Por um pressentimento de que algo iria passar-se ainda nesse dia, voltei ao Instituto de Sociologia Militar, depois de jantar. Começaram a aparecer por lá alguns milicianos do Exército, como eu e o Agostinho Roseta, militares da Marinha, gente vinda do RALIS, estes últimos a descrever com emoção os eventos da manhã. E apareceram algumas figuras gradas do MFA, próximas do PCP, como Ramiro Correia e Dinis de Almeida.
A tarde acabou e eu regressei a casa, a ouvir a rádio e a ver, pela enésima vez, as imagens da televisão. Por um pressentimento de que algo iria passar-se ainda nesse dia, voltei ao Instituto de Sociologia Militar, depois de jantar. Começaram a aparecer por lá alguns milicianos do Exército, como eu e o Agostinho Roseta, militares da Marinha, gente vinda do RALIS, estes últimos a descrever com emoção os eventos da manhã. E apareceram algumas figuras gradas do MFA, próximas do PCP, como Ramiro Correia e Dinis de Almeida.
De repente, como que por acaso, começou a consensualizar-se uma onda de revolta pelo facto do “Conselho dos Vinte”, que funcionava como órgão militar máximo desde a extinção da Junta de Salvação Nacional, estar “placidamente reunido nos tapetes de Belém”, como alguém disse. Aparentemente, ao que nos chegava, o Conselho estaria apenas disposto a reflectir sobre a crise, sem cuidar de afastar ou punir alguns culpados óbvios, senão por acção, pelo menos por indesculpável omissão ou complacência com os “conspiradores spinolistas”, como o nosso radicalismo simplificava os revoltosos do dia.
Para muitos dos exaltados presentes, a lista dos responsáveis já era longa, desde os serviços de informação militar até certas figuras da hierarquia militar e à "reaccionária" direcção da televisão, o que significava, para alguns, querer atingir Ramalho Eanes, o general que, meses mais tarde, seria o comandante operacional do contra-golpe de 25 de Novembro de 1975.
Aí pelas 11 horas da noite, forma-se, no seio do "pessoal" que discutia a situação, uma ideia imparável: ir a Belém, interromper o “Conselho dos Vinte” e exigir uma reunião extraordinária da Assembleia do MFA, para essa mesma noite.
Dito e feito. Aí avançámos nós rumo à Presidência da República. Entrei ao volante do meu carro pelo pátio das Damas, à Ajuda, sem nenhum impedimento dos polícias do portão, amedrontados pelo aparato da fila de viaturas. A meu lado ia o Agostinho Roseta, dois desconhecidos oficiais da Marinha de boleia no banco de trás, a quem, estranhamente, não arrancámos grandes palavras em todo o trajeto.
Depois, foi o povoléu de roldão pelos corredores, qual entrada no Palácio de Inverno, com escadas que notei que desciam e subiam de seguida, até que entrámos numa sala, onde demos de cara com o almirante Rosa Coutinho. O Conselho devia estar interrompido e o almirante, com o seu sorriso largo, olhando o nosso tom decidido e grave, lançou, divertido: “Até parece que vêm fazer um golpe de Estado!”.
Foi então que se ouviu uma voz, saída de uma cadeira à esquerda da porta por onde entráramos, e em quem não havíamos ainda reparado: “Eu não lhe dizia, meu almirante, que a rapaziada acabava por aparecer por cá?!”. Era uma figura muito conhecida do MFA, desde sempre muito ligadao ao PCP.
Nesse instante, olhei para o Agostinho Roseta e ambos concluímos, em silêncio, estarmos a fazer o papel de “inocentes úteis” numa manobra muito bem urdida pelo "partido" e pela “esquerda militar” que lhe era afeta.
Depois, as coisas precipitaram-se. Saímos para uma sala maior, os membros do Conselho acabaram por se juntar à tropa "amotinada" que nós éramos, houve uma dura troca de palavras durante um quarto de hora, com Vasco Lourenço a tentar ser a força moderadora do lado dos conselheiros, tendo o presidente Costa Gomes acedido, finalmente, à realização da Assembleia – esse areópago de cerca de 240 militares que era uma espécie de parlamento da revolução.
Meia hora mais tarde, perante o entusiasmo de muitos e o visível incómodo de alguns, estávamos a reunir, de volta à calçada das Necessidades, aquela que ficou conhecida como a “assembleia selvagem” de 11 de Março, uma Assembleia do MFA convocada em termos mais do que duvidosos e com uma composição mais do que nunca “ad hoc” – de que a melhor prova era a minha própria presença, que dela não fazia parte formal, embora, noutra qualidade, tivesse estado presente em reuniões anteriores, o que voltaria a repetir-se até julho.
Aquela foi a noite dos confrontos verbais extremos, de um apelo pateta e isolado a fuzilamentos de “traidores”, de uma imensidão de intervenções dramáticas, em que até eu não deixei de meter a minha breve colherada oratória.
Às sete da manhã, estava a tomar pequeno almoço com o José Rebelo, então correspondente do “Le Monde”, sedento de notícias, numa leitaria ao Saldanha.
O dia correu numa imensa agitação e, na noite desse já 12 de Março, ajudei a votar, numa assembleia do Exército, os nomes para o Conselho da Revolução, que a reunião “selvagem” da véspera criara. A minha legitimidade para participar nesse exercício era mais do que duvidosa, mas os tempos eram o que eram.
Antes, porém, num intervalo, fui procurado pela mesma figura que na véspera encontrara em Belém, a qual, a pretexto de felicitar-me por uma intervenção feita momentos antes, me deu a ler, para consideração e eventual apoio, uma proposta com nomes para figurarem como representantes do Exército naquele novo Conselho. O nome do próprio constava da lista.
Olhei para ele, “escaldado” pela cena de Belém, e retorqui apenas: “Não acha essa lista demasiado óbvia?”. Voltou-me as costas. Eu podia continuar a ser inocente, mas havia coisas para as quais já não me prestava a ser útil.
16 comentários:
E nós, civis, cá fora, se alguns pensavam até na eventualidade de "pegar em armas" nem sabiam como as utilizar nem contra quem! Aqui na emigração também se dramatizava.
De memória, recordo uma página do extinto diário "l'aurore" (que a partir de então comecei a chamar "l'horreur", com a minha prenuncia de luso) em que mostrava um soldado da "Ralis1" com uma espingarda e uma légenda: "este soldado é um criminoso"!
Vivemos coisas assim aqui na emigração.
Já o josé Rebelo, de quem não perdia uma crónica, nos trazia informações mais sensatas...
Obrigado por nos recordar aqueles tempos apesar da má fama.
José Barros
Pois eu, Senhor Embaixador, fui nesse dia visitar a família Melo Antunes à maternidade, tinha acabado de nascer a menina Joaninha e o Senhor Major, de quem eu tinha sido ordenança em Angola, tinha ido à Argélia falar lá com o ministro dos gajos, e até foi esse tal ministro que informou o nosso Major do que se passava, que nesse tempo não havia internet! De modos que eu, saído da maternidade, quando fui tomar a bica ao Monte Carlo lá soube dos aviões e que o nosso general Spínola andava à solta e o caraças! Fui logo ter com a malta amiga e um major avisou-me: "Ó Feliciano, olha que quem vai ganhar com isto são os comunas". Ainda assim fui para a porta do RALIS e dei uns belos gritos revolucionários, que ficaram gravados pelo Adelino Gomes. Tempos difíceis, Senhor Embaixador, mas não os esquecemos!
Sinceramente
a) Feliciano da Mata
Sempre soube que o Sr. é um expert em transformar episódios reais em episódios de autêntico suspense.
Era só clarificar mais um cibinho os Bons e os maus...
"Os tempos eram o que eram".
É verdade, caro Sr. Embaixador. Apesar de tudo, bem melhores que os tempos que são.
V
Que belo relato, Embaixador. O Senhor não pára de surpreender os seus leitores. Que vida interessante que teve e tem. As suas memórias são um imperativo. Não nos desiluda.
Creio recordar-me de o ter visto na citada Assembleia, à qual fui convocado para explicar o facto de ter estado presente no diálogo entre os Capitães Diniz de Almeida e Sebastião Campos (filmado parcialmente por Adelino Gomes), explicação que não dei por pensar ser mais relevante apelar, como fiz, à saída dos militares da cena política e à realização das eleições constituintes.
Interessante. Mas será por causa das nacionalizaçoes e ocupações selvageens que se seguiram que estamos como estamos... Não sei... e até acho melhor nem saber.
Isso mesmo, senhor embaixador: neste presente em que estamos, o senhor bem sabia, em ´75, essa coisa dos "bons e dos maus"; e estava bem decidido a brincar do lado dos polícias e não do dos ladrões.
Também foi isso mesmo o "11 de Março"; eu vi-os muitíssimo assustados, nas messes e no aconchego das repartições, a remoerem medos e indecisões para hoje serem valentíssimos analistas desses tempos, mas, claro, do lado certo da história que se "realizou".
Mas, senhor embaixador, V. Exª é dos poucos, desses, que ainda é aceitável e eu vou vendo e concordando com boa parte das suas posições. Bem haja.
J.C.
gostei do relato e gosto da fotografia, um magala está sempre ligado à sua namorada, mesmo em dia de agitação e confusão
Ó Feliciano eu já desconfiava...
Pois no 11 de Março quem eu lembro sempre é Melo Antunes - vá-se lá saber porquê -, homem de quem eu gostava muito.
Sr. Embaixador,
adoraria que escrevesse crónicas sobre a nossa História, tem imenso jeito!
penso que seria tempo de aprendermos a história de Portugal que é muito rica,sem tabus, sem essa mania de estar sempre a analisar "quem são os bons e quem são os maus" uma vez que esses critérios mudam facilmente consoante a época
Lembro-me que em França éramos também quase todos na escola a favor dos ideais comunistas, os professores ensinavam isso com grande entusiasmo no liceu, a luta de classes parecia ter como finalidade a felicidade no socialismo e no comunismo,
pelo que houve um enorme interesse por essa experiência (a Revolução) ter acontecido em Portugal, o sonho de tanta gente por essa Europa fora!!! olhem o que deu!
Desta história, era eu ainda um chavalo, lembro-me vagamente da reportagem televisiva. De ouvir dizer que o sr. da luneta traíu o país. E, se não estou em erro pouco tempo depois ouvia falar muito no Campo Pequeno.
Depois disso, lá pela "Quinta", nós é que tivémos que aturar os maus azeites dos seus "amigos" VG e coronel JM... Tempos que prefiro não recordar... por enquanto.
Por essa altura já eu andava a fotografar navios devido ao meu interesse de sempre pelos assuntos do Mar, como agora se diz. Nessa manhã de 11 de Março estive na Estação Marítima de Alcântara a ver o paquete PRÍNCIPE PERFEITO largar para Angola na sua penúltima viagem.Por cima lá andavam os aviões...
A profunda desmaritimização que se seguiu ao longo dos anos desde 1974 foi um tiro nos pés, como na altura se poderia dizer, um "acto de sabotagem económica". Hoje praticamente não temos navios, e nesse processo acabámos com mais de 50.000 empregos, com a variante de anualmente se pagarem mais de 500 milhões de euros a navios estrangeiros.Um País de gente cómica que ainda se preza ser de marinheiros... A terrinha da Santa Ignorância no seu melhor.
Caro Luis Costa Correia: bem me recordo da sua intervenção, de cachecol no pescoço, creio que na primeira fila do lado direito do auditório, aí pelas três e meia da manhã, num discurso de bom-senso e moderação, na linha daquele que, na manhã anterior, tinha tido nos arredores do Ralis. Um forte abraço.
Das varandas da Ciesa-NCK
vê-se o Tejo a nadar
e a Historia a andar... *
PS Ja agora, caro escriba, diga-me uma coisa...o emprego era matinal !? mas em que sentido ? Começava cedo ou era so da parte da manha ?
É que quando eu "passei pelas varandas" da Publicis/Ciesa-NCK o meu emprego era matinal, tinha matinée e por vezes estendia-se até à soirée...
* Eu vi o Papa Joao Paulo II, em maio de 1991...nao, nao foi uma aparição ; ) ele passou pela Gonçalves Zarco para ir dar missa ao Estádio do Restelo : ))
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