sexta-feira, março 02, 2012

Manuel Sá Machado

Na história do Ministério dos Negócios Estrangeiros português há um nome, pouco conhecido pelas atuais geração, a quem a carreira diplomática muito ficou a dever: Manuel Sá Machado. Ontem à noite, uma amiga estrangeira falou-me dele, com grande admiração.

Manuel Sá Machado estava a trabalhar no MNE, na secção do "Pacto do Atlântico", na altura do 25 de abril. Homem de conhecido perfil democrático, tinha travado conhecimento com o oposicionista Victor da Cunha Rego, ao tempo em que servira como diplomata no Brasil. Cunha Rego acabara de ser escolhido por Mário Soares, logo em Maio de 1974, para seu chefe de gabinete nas Necessidades. E, com naturalidade, chamou Sá Machado para trabalhar junto de si.

Como relata o embaixador Calvet de Magalhães no seu trabalho "O 25 de abril e as Necessidades", Manuel Sá Machado era "um funcionário excecional. Além das suas invulgares qualidades era uma pessoa de um enorme bom-senso, trato cordial e raras qualidades de caráter. O Dr. Cunha Rego indicou-o ao Dr. Mário Soares como a pessoa idónea para o informar sobre tudo o que respeitava ao ministério e aos seus funcionários".

Em vários livros e conversas, Mário Soares já revelou que a imagem que, até ao 25 de abril, criara do MNE e, na generalidade, da carreira diplomática portuguesa, não era muito lisonjeira. Porque a diplomacia aparecia ligada à primeira linha da ação internacional de defesa da política colonial do regime e porque também se suspeitava que a polícia política utilizava certas redes diplomáticas e consulares para espiar democratas no exílio, era perfeitamente natural que o MNE surgisse, aos olhos dos opositores do regime, como um núcleo funcional merecedor de muito escassa confiança. Em vários setores políticos do novo poder cedo surgiu a ideia de proceder a uma ampla "vassourada", que afastasse um grande número de diplomatas e, em sua substituição ou para um seu eficaz enquadramento, garantisse o rápido recrutamento de uma nova classe "diplomatas da democracia", oriunda dos meios políticos vitoriosos.

Ora foi precisamente a credibilização da carreira, ou melhor, a certificação do profissionalismo da grande maioria dos diplomatas portugueses, a tarefa de que se encarregou Manuel Sá Machado. Este nosso colega terá conseguido explicar a Mário Soares que, com algumas exceções, tinha ao seu dispor, para conduzir a política externa, um corpo dedicado e qualificado de funcionários de grande lealdade à causa pública, com sólida experiência, perfeitamente preparados para sustentarem o novo tempo internacional que se abria à diplomacia portuguesa. Mário Soares acreditou em Sá Machado e a carreira soube corresponder a essa confiança.

Nunca conheci pessoalmente Manuel Sá Machado, embora talvez o possa ter cruzado nos corredores do MNE, antes da sua prematura morte, creio que em 1977. Mas a conversa que ontem tive lembrou-me o dever de deixar aqui uma nota de admiração e de gratidão pela ação desse colega, que ajudou a que a carreira diplomática portuguesa não tivesse de passar por desnecessários tempos traumáticos. E, mais importante que tudo, que a diplomacia portuguesa pudesse preservar, para além dos ciclos políticos, o seu perfil de serviço público, competente e leal.

11 comentários:

Teresa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Mônica disse...

Sr Embaixador Francisco
Homens honrados nunca morrem de verdade!
com amizade Monica

patricio branco disse...

muito tinha ainda portanto para fazer, pela sua carreira e a dos outros.

patricio branco disse...

interessante o testemunho de calvet de magalhães sobre o seu 25 de abril

domingos disse...

Conheci o Dr. Sá Machado que era, de facto, um diplomata brilhante. É uma pena que não se publique a dissertação que ele apresentou no concurso para promoção a Conselheiro de Embaixada, onde ficou classificado em primeiro lugar. É um estudo denso e muito bem feito que só confirma a alta craveira intelectual do seu autor.

Anónimo disse...

Um funcionário da embaixada de Londres por volta de 1973, contou-me que o Mário Soares na altura da visita do Marcelo Caetano a Londres, organizou uma manifestação junto da embaixada e com a multidão inflamada entrou dentro da embaixada com a multidão e discursou em cima do piano que estava sala principal e que os danos foram enormes!

O Mario Soares sempre teve as costas quentes e nunca precisou dos diplomatas para nada. Ele fazia a sua diplomacia por meios próprios e autonomos .Ele só queria que o não chateassem!!

A descolonização foi só um pequeno exemplo !

OGman

Anónimo disse...

É interessante como ainda hoje o comum dos mortais não tem boa impressão dos diplomatas. Penso que seria bom dar a conhecer ao público em geral, não os segredos de Estado, mas sim a necessidade de uma verdadeira vocação para se abraçar a carreira diplomática.

Anónimo disse...

Conheci o Dr. Manuel Sá Machado pouco tempo depois de ter entrado para o Ministério, em 1968. Como eu estava na altura no Gabinete do Secretário-Geral e era da praxe todos so funcionários que vinham a Lisboa visitarem-no para se apresentarem, tivemos oportunidade de falar um par d evezes e pude confirmar o que me fora dito - que, sob uma aparência discreta se encontrava um diplomata inteligente, sério,sólido e bem informado e de ideias interessantes quanto ao seu posto o Brasil, que via não do Rio de Janeiro, mas de Brasília, aonde era responsável pela espécie de QG avançado duma Embaixada que, como todas as outras no Brasil, já para lá se devia ter mudado mas resistia estoicamente. Depois do 25 de Abril o seu comportamento foi irrepreensível e depois o Dr. Soares levou-o para S. Bento como Secretário de Estado. A sua morte prematura e repentina chocou-me, como a tantos outro colegas, que viamos nele a personificação dum homem sério e com grande sentido de Estado. Mas entre os que o conheceram o seu nome ainda é recordado com a amizade e o respeito que merece. VV

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro OGman: Há uma confusão no seu comentário. Mário Soares esteve na embaixada de Portugal em Londres algures em maio de 1974 - isto é, já depois do 25 de abril -, quando se deslocou ao Reino Unido para contactos relacionados com a descolonização. Na cena que refere (e que nada tem a ver com a manifestação de 1973, contra Marcelo Caetano), e contrariamente ao que frequentemente se relata, não subiu para cima do piano mas para uma banqueta do piano. Estive hoje com uma testemunha presencial do ato. Isto tem escassa importância, mas convém que as coisas fiquem registadas como foram.

Anónimo disse...

Caro Embaixador,

A afinação da veracidade dos factos tem pouca importância para o assunto em análise, no entanto a minha fonte presenciou esse discurso porque era funcinário da embaixada à altura e não mostrou grande simpatia pelos factos ocorridos.

Ogman

Luísa disse...

Manuel Sá Machado morreu em 1975. Foi Ministro-adjunto de Pinheiro de Azevedo.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...