quinta-feira, setembro 12, 2019

Os trabalhos de Elisa


Elisa Ferreira recebeu, na Comissão Europeia, uma pasta que, a meu ver, corresponde exatamente àquilo que António Costa desejava para o comissário indicado por Lisboa. 

Tendo ficado evidente, desde há muito, que Mário Centeno não tinha hipóteses de obter uma vice-presidência na área financeira - cenário ideal para Portugal, por razões que creio desnecessário explicar -, o “next best” realista para Costa era, claramente, uma pasta desta natureza.

A visibilidade de António Costa no processo de distribuição dos principais cargos europeus, com um nível de influência que, no passado, nenhum primeiro ministro português havia conseguido atingir (o caso Barroso, em 2004, tem contornos que não se ligam à sua nacionalidade de origem), só não teve consequências mais relevantes porque, ao final do dia, os socialistas europeus tiveram de ceder nas suas ambições, em face da força demonstrada pelos conservadores. 

Ao ter que se vergar perante este imperativo, Costa terá conseguido, no entanto, assegurar a temática central que sempre pretendeu, nesse “plano B”, que ficasse sob a tutela do comissário a indicar por Lisboa. 

Nesse contexto, Pedro Marques era a hipótese óbvia e quase pré-anunciada, mas o imperativo da paridade obrigou a fazer avançar Elisa Ferreira, cuja experiência naquela área técnica é similar à de Marques, mas cujo perfil, político e europeu, é incomparavelmente maior e mais sólido.

Achar que seria plausível, como reclamaram alguns maximalistas de cátedra, ter podido obter uma vice-presidência para Elisa Ferreira é um reflexo de insensatez, de quem não sabe “ler” os equilíbrios - políticos, geográficos e outros - que sempre têm de estar presentes num arranjo final desta natureza.

Alguns perguntarão: a pasta atribuída a Elisa Ferreira é importante para Portugal? 

Não sou minimamente sensível à ideia de que, com os fundos estruturais “na mão” de Elisa Ferreira (embora a sua pasta vá bem para além disso), Portugal possa vir a obter diretas vantagens. Se a comissária indicada por Portugal tivesse a tentação de favorecer o seu país de origem, ”suicidar-se-ia” de imediato no seio da Comissão.

Mas sou muito favorável à ideia de que uma comissária de nacionalidade portuguesa pode ter um papel decisivo na preservação da “política de coesão”, de que os “fundos estruturais” são o instrumento essencial, no eixo das grandes políticas europeias. E isso é de um (imenso) interesse para Portugal.

Reitero, assim, o que escrevi num artigo que publiquei em 28 de agosto:

Uma visão antiga e ingénua é a de que, a um país, interessa que ao comissário que indicou seja atribuída na Comissão uma "pasta" que corresponda especificamente aos seus interesses nacionais mais relevantes. Se essa perspetiva egoísta pode funcionar, às vezes, para os maiores Estados, é uma completa falácia no que toca aos restantes. Pela experiência de observação da vida europeia nas últimas três décadas, um comissário torna-se relevante quando, pela sua qualidade, consegue ganhar poder de influência pessoal no seio do colégio de comissários e a quem, pela horizontalidade do seu pelouro, os outros sejam obrigados a recorrer com frequência.

É esse o desafio - explorar a transversalidade da pasta e ganhar peso no seio da Comissão - que Elisa Ferreira vai ter pela frente.

Conhecendo-a, estou totalmente seguro de que vai levar a cabo a sua tarefa com grande eficácia e com efeitos de forte prestígio para Portugal.

(A imagem que escolhi para ilustrar este texto não é casual. Não “bebo do fino”, não tenho nenhuma informação privilegiada. Limito-me a “espreitar” e interpretar o que vou vendo, à luz do que penso.)

quarta-feira, setembro 11, 2019

Traduzir Portugal


Um grupo de embaixadores estrangeiros, acreditados em Portugal, teve hoje a amabilidade de me convidar para, durante um almoço, lhes falar da situação política no nosso país, a escassas semanas das eleições, bem como da minha visão sobre os atuais equilíbrios na Europa, depois do último sufrágio para o Parlamento Europeu e no início de uma nova Comissão.

Para mim, tratou-se de um exercício muito interessante, porquanto, nas suas múltiplas e bem informadas perguntas, estavam projetadas as principais interrogações de quem nos olha de fora. Tentar responder a essas questões, centradas no que verdadeiramente interessa às chancelarias estrangeiras, é sempre um desafio curioso.

Na minha experiência lá por fora, constatei que os diplomatas estrangeiros são capazes, muitas vezes, de olhar as realidades dos países em que estão acreditados sob prismas que escapam aos cidadãos nacionais, porque sublinham aspetos que não fazem parte das prioridades destes. No diálogo que hoje acabo de ter, isso mesmo se confirmou, mais uma vez.

Terei sido útil para os meus interlocutores? Espero que sim, embora muitas vezes, quando falamos de coisas sobre as quais julgamos ter bastante informação, sejamos tentados a entrar num detalhe que se torna irrelevante para quem apenas quer desenhar um quadro geral, o qual, contudo, nem por ser simples deve deixar de ser rigoroso. 

O adeus a Bolton


John Bolton foi a terceira escolha de Donald Trump para Conselheiro de Segurança Nacional, depois de Flynn cair em desgraça pela “Russisn connection” e do rigor de McMaster ter feito perder a paciência ao presidente. Bolton era um conhecido radical em política externa, descrente na diplomacia e fervoroso adepto dos modelos de “regime change”, advogando que o caso líbio servisse de exemplo para a Coreia do Norte e o Irão. 

Muitos se recordam dos seus “infamous” tempos como representante permanente na ONU, de onde saiu com fama de doido. Temeu-se o pior, quando ele entrou na Casa Branca. Pensava-se que, com ele junto do ouvido de Trump (que sempre disse que o pior de Bolton era o seu farfalhudo bigode), o Departamento de Estado (o MNE americano) iria perder ainda mais peso, tanto mais que o presidente vivia crescentemente irritado com a gestão de Tillerson à frente da diplomacia americana.

Trump, contudo, já deu mostras de ser menos belicoso, na prática, do que o seu discurso jingoísta pode fazer pressupor. A prova é que Bolton não só o não convenceu a derrubar Kim Jong-Un como, ao que parece, o presidente começaria a estar cansado dos seus constantes conselhos para enveredar por uma resposta bélica no caso do Irão. Veio entretanto a constatar-se que a chegada de Mike Pompeo ao Departamento de Estado, depois da saída de Tillerson, acabou por reforçar o papel desta estrutura governamental na balança interna de poderes, tendo resultado num forte recuo da influência de Bolton (que, na passada semana, já tinha sido privado de acesso a certa documentação diplomática sensível). Em certos meios americanos, há hoje a convicção de que Trump se sente com uma crescente auto-confiança no terreno internacional, pelo que necessita menos de conceptualizadores (como Bolton) e mais de “implementadores” (como Pompeo).

Semanas antes de Bolton ter entrado para a Casa Branca, tive o ensejo de o ouvir numa conferência em Kiev, na Ucrânia, onde tirei esta fotografia. Ele assumia, na altura, um discurso equívoco sobre a Rússia, que me recordo que não agradou aos ucranianos. Ao ouvi-lo falar daquela maneira, ficou para mim claro que já estava a fazer uma aproximação sedutora a Trump, que então seguia na sua “lua de mel” com Putin, ainda antes de Muller vir a assediá-lo judicialmente. 

Bolton viria a conseguir, de facto, o lugar de McMaster, mas o seu tropismo de “neocon” terá agora sido demasiado para a paciência de Trump.

A crise dos rituais


Imagino que poucos leitores terão tido paciência para acompanhar, na madrugada de segunda para terça feira, a singular coreografia da cerimónia que consagrou o encerramento do parlamento britânico, imposto pelo primeiro-ministro Boris Johnson.

Durante o desenrolar do protocolo daquela cerimónia, houve um momento que me pareceu revelador: à chegada do representante da Câmara dos Lordes aos Comuns, em farda própria e em passo muito estudado, foram visíveis e audíveis risotas e gargalhadas por parte de muitos parlamentares, numa cena impensável há alguns anos. 

Ficou a sensação de que todo aquele gongórico aparato, feito de algum exagero no sublinhar dos rituais, pode estar já menos conforme com o “ar do tempo”. Mais do que isso: resultou a ideia de que existe um setor da classe política - seguramente correspondente a áreas homólogas na opinião pública - que já não está disposto a respeitar alguma dessa liturgia.

Minutos depois, quando os Comuns se deslocaram em procissão até aos Lordes, e nessa câmara foi lido, em nome da rainha, um discurso sem a menor substância relevante, preparado pelo governo, com a soberana a ser, no meio de tudo aquilo, um mero “carimbo” formal, era visível, na cara de todos os presentes a esse “teatro”, um sentimento de alguma distância face à “peça” em cena.

Os rituais não existem por si próprios: consagram um entendimento coletivo que serve de esqueleto formal às instituições. Todos eles, se olhados singularmente, podem quase sempre ser lidos numa perspetiva ridícula. O que os sustenta, o que lhes está subjacente, é o respeito às instituições que encarnam. Quando alguém se ri de um ritual, ri-se da própria instituição. 

Não quero, com esta leitura, deixar a ideia de que a monarquia britânica está em inevitável crise. Mas parece-me evidente que a circunstância de, sem qualquer escândalo, a sua liturgia começar a ser desrespeitada é um sinal claro de que as coisas já não são o que eram. E talvez importe perceber porquê.

O mundo parece surpreendido com o facto do fundamentalismo anti-europeu poder estar a abalar um sistema democrático que era tido por exemplar. É, aliás, sintomático que seja um partido dito conservador a titular essa mesma agressão, de que a insólita suspensão do parlamento é o ato mais evidente. Ora isso não pode deixar de ter consequências no modo como muitos britânicos passarão olhar, no futuro, as suas instituições. A monarquia, e a sua provada irrelevância neste grave contexto, pode vir a sofrer bastante com isso.

terça-feira, setembro 10, 2019

André Gonçalves Pereira


André Gonçalves Pereira, que ontem morreu, com 83 anos, foi, por algum tempo, Ministro dos Negócios Estrangeiros, num governo presidido por Francisco Pinto Balsemão. O país ficou sempre com a sensação de que não terá gostado muito dessa sua curta experiência política.

Para mim, que nunca o cruzara pessoalmente, ele foi, por muitos anos, apenas uma figura pública conhecida. Advogado de largo sucesso, jurista brilhante, catedrático de Direito, fora assistente de Marcelo Caetano, que o não convencera a entrar na política. Era também um “socialite”, com fotos frequentes nas revistas sociais dos anos 80/90, a sua famosa “casa redonda”, na Quinta do Lago, e um muito respeitável gosto pela beleza feminina. Com o seu manual, eu tinha aprendido o Direito Internacional Público de que necessitei para entrar na carreira diplomática.

Era esse o André Gonçalves Pereira que eu conhecia até que, numa noite, no início de 1995, dele recebi um telefonema. Acabara de ser nomeado, pelo governo de Cavaco Silva, representante de Portugal no “grupo de reflexão” europeu que ia rever o Tratado de Maastricht. Contactava-me, por indicação do ministro dos Negócios Estrangeiros, Durão Barroso, para eu lhe “fornecer toda a informação disponível” sobre o processo de revisão daquele tratado, que se ia iniciar em breve. Eu era então subdiretor-geral dos Assuntos Europeus, tendo esse assunto a meu cargo. “O ministro disse-me que você pode dar-me a papelada que há lá pelo ministério sobre o assunto”.

Com a delicadeza possível, expliquei-lhe que, dependendo eu do secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Vitor Martins, e não obstante as indicações que ele recebera diretamente do ministro, só lhe poderia facultar qualquer documentação reservada com prévia autorização daquele. “Claro que sim! Ele deve estar ao corrente. Fale com ele.”

Falei com Vitor Martins ... que não estava ao corrente! O seu ministro tinha nomeado alguém para ir opinar lá fora, em nome de Portugal, sobre a revisão do tratado europeu que estava em vigor, sem antes ter avisado o seu secretário de Estado - que era, como se sabe, um qualificado membro do governo e um respeitado especialista na matéria europeia.

Mas tudo acabou por se resolver. Criámos um “modus operandi” em que eu facultava a André Gonçalves Pereira as informações que o secretário de Estado entendia deverem “sair” dos nossos trabalhos internos. Nunca houve quaisquer problemas.

Gonçalves Pereira convidou-me um dia para almoçar no Ritz e, no final, fez-me uma proposta: “No “grupo de reflexão”, cada país tem um titular e um alternante. Gostava que fosse você a ocupar esse lugar de meu substituto. Teria muito gosto em que aceitasse. Depois desta conversa, concluí que nos daríamos muito bem a trabalhar em conjunto”. Fiquei surpreendido, confesso. Aceitei, mas perguntei-lhe se tinha “luz verde” de Durão Barroso para me formular o convite. Então, a surpresa foi dele: “Não, mas nem me passa pela cabeça que ele não aceite o seu nome, foi ele quem me disse para falar consigo”. Eu (cá por coisas...) insisti que ele devia verificar com o ministro. Saímos do almoço a tratar-nos por Francisco e André.

Nessa mesma noite, telefonou-me, furibundo. Eu tinha razão: Barroso levantara dificuldades a que eu fosse indicado para o “grupo de reflexão”, como seu substituto. Aparentemente, o meu nome não seria do agrado do gabinete do primeiro-ministro, Cavaco Silva. Gonçalves Pereira fora, então, inflexível: “Ou conto com o Seixas da Costa ou o governo muda de representante no grupo. Eu não fico, se o nome dele não for aceite”. Ora a indigitação de Gonçalves Pereira já saíra em toda a imprensa. Um seu abandono teria um impacto político.

O governo recuou e eu fui nomeado. A partir daí e até novembro, acompanhei André Gonçalves Pereira a todas as reuniões do “grupo de reflexão”, o chamado “grupo Westendorp” (nome do então secretário de Estado espanhol do Assuntos Europeus, que presidia ao grupo), substituindo-o mesmo em dois desses encontros. No essencial, eu preparava os “talking points” na base dos quais ele fazia as suas intervenções. 

No início, o André seguia muito aquilo que eu lhe recomendava. Depois, começou a “navegar por si próprio”, afastando-se, muitas vezes, da orientação que era a doutrina base do MNE. Esse era o seu privilégio, como personalidade que, não sendo um simples funcionário, não tinha por isso uma disciplina institucional perante o governo, junto do qual tinha garantido um estatuto de total independência. Compatibilizar a subordinação às orientações de Vitor Martins, mas respeitando simultaneamente as posições de Gonçalves Pereira, não foi um equilíbrio fácil para mim, confesso. Mas levei “a carta a Garcia”.

André Gonçalves Pereira era um convicto europeísta. Muito mais do que, à época, eu era. E ia muito mais longe do que aquilo que o MNE queria que Portugal fosse, em termos de partilha europeia de soberania. Quanto eu lhe aconselhava prudência e o advertia para não assumir determinados riscos, respondia-me, galhofeiro: “Ó Francisco! Eu é que sou de direita, mas você, em matéria europeia, é que é o reacionário!”. 

Divertimo-nos muito e ficámos amigos. Viajámos bastante por essa Europa, ele sempre com gostos requintados, em matéria de hotéis e restaurantes, vícios que eu aproveitava com o maior deleite. Dizia-me: “Eu, em Madrid, só fico no Ritz. E, em Paris, no George V. E a você nem lhe passe pela cabeça ir dormir a outro sítio!”. Nem sei bem como foram pagas essas belas bizarrias, já que a sua generosidade pessoal cobria os convites que me fazia para os almoços e jantares - do restaurante do Jockey Club, em Madrid, ao La Truffe Noire ou ao Comme Chez Soi em Bruxelas, ao Pierre Gagnaire ou ao Grand Véfour, em Paris, e outros locais requintados, de Londres a Amesterdão (“trabalha-se o dia na Haia, mas à noite vamos ficar no “L’Europe”, em Amesterdão”, ensinava-me), de Roma a Toledo, de Atenas a Messina e outros poisos.

O André era um epicurista de altíssimo refinamento, dos melhores charutos aos melhores vinhos, da mais sofisticada comodidade aos prazeres requintados levados ao extremo, com a naturalidade de quem sempre viveu assim, sem snobeira e sempre com muito bom gosto. Acho que, nesses meses, gastou bem mais do dobro daquilo que lhe pagavam para cumprir aquela tarefa, que ele fazia com competência e rigorosa dedicação à leitura que tinha do interesse nacional. Discutimos muito, aprendi bastante com ele, nem sempre concordando. E, repito, ficámos, para sempre, amigos.

Um dia, nesse ano de 1995, vieram as eleições legislativas. O PS ganhou, o PSD perdeu, Durão Barroso deixou de ser ministro e eu fui convidado para secretário de Estado dos Assuntos Europeus. No dia da posse, telefonei a André Gonçalves Pereira, depois de ter combinado isso com Jaime Gama e António Guterres, a convidá-lo a continuar, com o novo governo, como representante português no “grupo de reflexão”. Para o meu lugar, como seu “número dois”, indiquei Miguel Almeida e Sousa, que hoje é embaixador em Dublin. Meses depois, o grupo terminaria, esgotado o seu mandato e propósito. 

Passei a ver menos André Gonçalves Pereira, que, contudo, tive o gosto de ter comigo no lançamento de dois livros que publiquei. Às vezes, encontrávamo-nos casualmente em lugares públicos, dávamos abraços, ele sempre com aquela gargalhada rouca que era a sua. 

A partir de 2013, integrei, a convite de Artur Santos Silva, a comissão, presidida por André Gonçalves Pereira, que a Fundação Calouste Gulbenkian criou para orientação do trabalho da sua delegação em Paris. O André, por razões pessoais, deixou essa comissão tempos depois e eu vim a suceder-lhe na presidência.

Tenho imensa pena pelo desaparecimento de André Gonçalves Pereira. Recordo-o como um homem com forte personalidade, grande sentido de Estado, um jurista de primeira água, alguém que sempre procurou prestigiar o nome de Portugal. 

Pessoalmente, devo-lhe um singular gesto de confiança pessoal, ao conferir-me responsabilidades que contribuiram para mudar a minha vida.

segunda-feira, setembro 09, 2019

Mais Alentejo à mesa

Um fim de semana no Alentejo deu para quatro experiências à mesa. Aqui vão breves notas, em jeito de “serviço público”.


“Em Portalegre, cidade”, como diria Régio, procurei os “cuidados” do José Júlio Vintém. Sabia que nem ele nem a Catarina estariam por lá, mas a sala estava, como sempre, entregue à eficácia antiga do Apolino, cujo embranquecimento do bigode o torna, dia-a-dia, (ainda) mais parecido com o Asterix. Já conheci várias “geografias” onde o José Júlio operou em Portalegre, mas o novo endereço do “Tomba Lobos” é, de longe, o melhor. Um belo e confortável espaço, numa casa antiga, como os tetos e paredes revelam, no centro da cidade. Comemos lindamente, talvez mesmo uma das melhores refeições de sempre naquela (mutante) casa, com um serviço (como é habitual) impecável, a um preço justo.


Em Elvas, desde que a antiga pousada, hoje “Hotel Santa Luzia”, reabriu, passo por lá sempre que posso, para revisitar o Bacalhau Dourado, que, como se sabe, fez a marca gastronómica da primeira pousada de Portugal. Desde há muito naquela cozinha, prepondera a mão hábil do Vicente, o qual, sempre que há vagares para tal, prepara o prato na sala, à nossa frente. Voltei lá no sábado e, como sempre exclamo perante alguns bons pratos clássicos, voltei a pedir: “Não mexam! Façam sempre assim!”. O hotel tem a sorte de ser hoje dirigido por alguém que é um “vieux routier” da gestão hoteleira, João Simões, responsável por tempos áureos da Pousada de Extremoz. Daí que ele cuide em manter o “estilo” da antiga (primeira) pousada, como a imagem da sala de refeições mostra, o que lhe confere um toque sempre especial. E tivemos uma bela conversa!


Ainda em Elvas, por uma sugestão, fomos jantar ao mais moderno espaço da cidade, o “Acontece”, uma área excelentemente transformada, com imenso bom gosto. Vou começar pelo fim: comeu-se muito bem. Antes, houve ocasião de “experimentar” um serviço que, não deixando de ser simpático, chegou a pontos de ser quase caótico. Para escolher o vinho, foi uma confusão: ou vinha o corrente, ou vinha o reserva, ou chegava branco, quando se pedia tinto. Depois, as coisas lá “assentaram” e como, em matéria gastronómica, estava tudo a preceito, acabámos por esquecer os pecadilhos. É no que dão as contratações tipo “Manpower” para o verão...

Finalmente, à despedida, o Alandroal. E aí, claro, encontrámos a Maria, acompanhada da serenidade sábia do marido, o Cândido, que me orientou nos vinhos e que até recordou a minha primeira ida por lá, nos anos 90. Como sempre - e convém repetir isto, como sempre - comeu-se magnificamente, nomeadamente uma perdiz estufada, que estava de se lhe tirar o chapéu, já que não foi preciso tirar o chumbo. A “Maria” é um lugar obrigatório do mapa da geografia da grande cozinha tradicional portuguesa, um marco notável de persistência e qualidade. Que gosto tive em parar uma vez mais por ali!

Pobre Arcada

Foi o café mais tradicional da Praça do Giraldo, em Évora, um espaço amplo, à antiga, cheio de tertúlias e de belas conversas. Era o sítio onde, por décadas, se parava, à passagem por Évora.

Nos dias de hoje, o cheiro nauseabundo que atravessa a sala torna a frequência impossível a quem não tiver a “sorte” de estar constipado.

“É dos canos!”, “a culpa é da Câmara”, diz um embaraçado empregado, perfeitamente consciente da “agressão” olfativa proporcionada ao potencial cliente. Digo “potencial”, porque entrei e saí logo.

É uma tristeza, uma situação como esta, na mais turística cidade do Alentejo, das mais bonitas do país.

A ASAE ainda existe?

Protocolo do Estado... a que isto chegou!


Proposta do programa eleitoral do PAN:

“3. Determinar como regra que todas as refeições nos eventos promovidos pela administração directa e indirecta do Estado são vegetarianas, com a possibilidade de providenciar alternativa com produtos de origem animal a quem o solicitar, dando assim cumprimento às recomendações da ONU e seguindo o exemplo holandês”.

Deixo uma imagem do que, no futuro, poderá ser um jantar de Estado no Palácio da Ajuda.

domingo, setembro 08, 2019

Chegaram tarde


Agora que todos os políticos, alguns bem à pressa e de forma oportunista, parece terem descoberto “a pólvora” das questões ambientais, vale a pena relembrar o nome de Gonçalo Ribeiro Telles, o arquiteto que soube ter razão bem antes do tempo dos outros.

Vegas

Um dia, algures por esta Europa, acompanhei uma importante figura política portuguesa (não interessa o nome, irrelevante para a história) a uma reunião com um seu homólogo. 

Era uma conversa sem agenda oficial. Entre ambos havia uma excecional relação pessoal e o encontro, apenas comigo e com uma outra pessoa como testemunhas, passava-se em tom de plena confiança, com discrição assegurada. 

Só nesse registo seria possível ao dignitário estrangeiro - que não ao nosso político, cuja contenção foi digna e notável - permitir-se fazer comentários fortemente depreciativos sobre colegas de outros países, ironizando com o respetivo perfil físico, fazendo insinuações sexuais, duvidando da sua capacidade intelectual, apostrofando-os a um limite de conversa solta de café. 

Eu estava abismado, confesso, mas o nosso político não estava menos. No final, recordo, ambos concordámos em, a propósito dessa reunião, e para sempre, usar o velho mote americano para momentos comprometedores: “What happens in Vegas, stay in Vegas” (o que se passou em Las Vegas, ficou em Las Vegas).

A vida, política e diplomática, tem destes momentos embaraçosos.

Avante!


Nestes dias da Festa do Avante!, veio-me à memória o exercício que, há dias, teve lugar na Biblioteca Nacional, no qual se cruzaram experiências associativas universitárias de 1969, há precisamente 50 anos.

Éramos seis pessoas na mesa, cada uma oriunda de uma área universitária diferente. A esmagadora maioria dessas pessoas, sem minimamente renegar a sua herança de memória, pareceu-me estar já distante das perspetivas ideológicas em que, há meio século, assentara essa sua atividade associativa. A leitura por cada um dessa sua experiência foi assim feita numa linguagem solta, sem grande preocupação de respeito formal pela terminologia da época, ou usando-a, às vezes, para melhor caricaturar aquilo que o tempo entretanto nos ensinou. E assim o PCP foi tratado como “revisionista”, o MRPP como os “pinta paredes” e coisas assim. Todos parecíamos confortáveis com os diferentes estilos adotados por cada um.

Todos? Todos, não. Um cavalheiro (que a imagem não mostra), de barba branca, entendeu que o modo como o PCP fora mencionado por alguém tinha sido “desrespeitoso” para o (imagino que seu) partido, cujos méritos relevou em tom apologético, daí partindo para uma infindável diatribe contra a mesa (ou alguém nela).

Confesso que já não tenho a menor paciência para aturar estas doentias sensibilidades, para me vergar perante “vacas sagradas” partidárias. E pareceu-me que grande parte da sala comungava desse meu sentimento, embora seja difícil ler silêncios. Finalmente, ao final de uns minutos que foram demasiados, lá foi possível conseguir que o “grave” e sentencioso interveniente se calasse.

O PCP é um grande partido, com uma história muito respeitável na luta contra a ditadura. Mas, tal como há 50 anos foi diabolizado pelos maoístas militantes, tem de habituar-se a que hoje outros, embora dentro da sua lateralização ideológica, olhem para esse passado com os olhos que muito bem quiserem utilizar, por muito heterodoxos e provocatórios que sejam, sem serem obrigados a usar um discurso hagiográfico sobre a sua história.

Isto não significa que não deseje ao PCP e a quem o segue, com grande sinceridade, uma bela Festa do Avante!.

Miradouro


Um dos meus locais de culto: o miradouro de Nossa Senhora do Folguedo de Cima, em Gozón, em Espanha, próximo da fronteira portuguesa. Um local de eleição. Ontem

sábado, setembro 07, 2019

Simancas


Era aqui o Hotel Simancas. Em Badajoz. Foi aqui que, na tarde de 13 de fevereiro de 1965, o “militar” Ernesto Castro e Sousa (aliás, o pide Ernesto Lopes Ramos), veio buscar Humberto Delgado e a sua secretária e companheira brasileira, Arajaryr de Campos. Daqui foram levados para perto de Villanueva del Fresno, onde, supostamente, se iriam encontrar com militares democratas portugueses, no que não passava de uma armadilha montada pela PIDE, através do seu sinistro agente em Itália, Mário de Carvalho. À sua espera, tinham uma brigada da polícia política portuguesa, chefiada por Rosa Casaco (o agente graduado da PIDE que, nas horas vagas, era fotógrafo de Salazar e dos seus derriços com Christine Garnier), com Agostinho Tienza e Casimiro Monteiro, que logo os mataram a sangue frio. Depois, os corpos foram enterrados por ali perto, com cal trazida no carro, de Portugal, o que prova a premeditação. Era chefe do governo, recorde-se para sempre, Oliveira Salazar, o ditador a quem alguns querem agora branquear os crimes de décadas. Badajoz, por virtude destes assassinatos, permanecerá eternamente como uma das cidades da memória da luta contra a ditadura portuguesa.


O da perdiz


É uma cidade do sul. Há uns anos, naquela varanda, num belo dia de sol, fui convidado a hastear a bandeira nacional, pouco antes de ter recebido a medalha de ouro da cidade, por alegados “feitos” em favor da urbe, que alguém considerou dignos de nota. 

Ontem, alojei-me discretamente por lá, neste fim de férias. Numa esplanada, no largo principal, muito perto do local da fotografia, com uma noite deliciosa, perguntei que whisky tinham. A jovem que servia às mesas sabia pouco do tema: “Creio que só temos daquele da perdiz”. 

Era esse mesmo que eu queria! Até isso correu bem!

Fim da tarde, com flores, lua e tudo!


sexta-feira, setembro 06, 2019

Uma área de real serviço


Desde sempre, conheço-me como um fã das áreas de serviço das auto-estradas. Porque gosto muito de fazer pausas em viagens, “estaciono” imenso nas lojas que há pelo país. 

Pode parecer bizarro a muita gente, mas já me aconteceu, em viagens ao Norte ou ao Algarve, parar em todas as estações de serviço! A sério! Às vezes, não chego a comprar nada: vejo a net, leio um pouco mais os jornais ou as revistas, descanso uns minutos, faço uns telefonemas. E chego mesmo a passar “pelas brasas”...

Nos últimos seis anos, desde que regressei definitivamente a Portugal, o conta-quilómetros do meu carro indica que fiz 160 mil quilómetros pelas estradas da pátria. Acumulei assim alguma experiência - de Valença a Vila Real de Santo António, de Sagres a Bragança e, em especial, de Lisboa a Vila Real, claro.

Cometerei a audácia de dizer que conheço bem mais de 80% das lojas nas áreas de serviço do país. E constato que há de tudo! Desde lugares sinistros, onde a comida só disso tem nome (a de Castro Daire é o meu “benchmark” negativo, mas a A8 tem coisas “notáveis” de mau), até às “Sol”, onde, salvo algum descaso pontual e preços especulativos, o serviço é agradável e eficaz. Algumas vão mudando, com o tempo. Pelo meio das que referi, ficam coisas incaraterísticas como as “La Pausa”. Numa destas, há dias, a confusão da oferta dos “menus” era tal que entrei e saí logo de seguida.

Decididamente, e é isto que quero hoje aqui dizer, a minha melhor experiência (e já foi mais do que uma, na direção Lisboa-Vendas Novas), em termos de oferta e de imbatível serviço, é a “Colibri” de Vendas Novas: excelente apresentação, gente simpática e prestável, muito bons produtos, boa relação qualidade-preço. Experimentem e vão ver que tenho razão!

“Frappés”


Os dois diplomatas chegaram tarde ao restaurante, para o almoço. Algumas mesas começavam a esvaziar-se. Naquela que ficava ao seu lado, um casal conversava animadamente. No balde com gelo entre as duas mesas, surgia uma garrafa de Chablis, "frappé", consumido por esses vizinhos. 

Chablis! Ora aí estava uma boa ideia! Pediram ao empregado dois copos de Chablis. O tempo passou, a conversa fluiu, os copos dos diplomatas foram-se esvaziando.

A certo passo, os convivas da mesa ao lado levantaram-se e saíram porta fora. Os diplomatas miraram a quase meia garrafa de Chablis por usar e, depois de um olhar discreto em torno, serviram-se. Sempre era melhor do que o vinho ir "para dentro", levado pelos empregados, conluiaram em voz baixa.

O Chablis estava excelente. Cada um acabou mesmo por se servir de mais do que um copo. A garrafa chegou ao fim, mas já estavam saciados. Iam pedir a sobremesa e, depois, dois cafés.

De súbito, os vizinhos da mesa ao lado regressaram, depois de, aparentemente, terem ido ao exterior fumar um pouco. 

Os diplomatas levantaram-se num salto, correram para o balcão, pagaram a conta e desapareceram, antes que a evaporação súbita do Chablis, na garrafa dos vizinhos de mesa, fosse notada.

História verídica. Em Paris. No “L’Esplanade”.

quinta-feira, setembro 05, 2019

Notícias para o Outono


Ontem, numa televisão, António Lobo Xavier disse que, pela primeira vez, desde há muitos anos, os tradicionais apoiantes do PSD e do CDS sabem, de ciência certa, que os votos conjugados dos deputados que vierem a ser eleitos por esses dois partidos, nas próximas eleições, nunca serão suficientes para os levarem ao governo. Assim, quem vier a votar PSD ou CDS já percebeu que vai continuar a ser oposição. 

Por outro lado, o “fond de commerce” tradicional da direita, as “contas certas”, habitual arma de arremesso contra o “despesismo” socialista, deixou de ter a menor validade: o governo socialista fez, nestes quatro anos, nesse domínio, exatamente aquilo que a direita disse que ia fazer - respeitar os compromissos europeus em matéria de objetivos macroeconómicos. E, escorado nesse património, o que o PS anuncia que se propõe fazer no próximo futuro é exatamente o mesmo que a direita pode dizer que também faria. Os socialistas, não apenas “raptaram” o discurso da direita, como deram razões a muita gente desse setor, em face do que fizeram, para confiar neles.

Sente-se, assim, que muitos votantes tradicionais de direita, aqueles que são pragmáticos e não cultores de uma agenda ideológica obsessiva, começam a acolher a teoria da “bondade” de uma maioria absoluta do PS. Porquê? Porque, sendo inevitável que António Costa continuará a ser o primeiro-ministro, então - podem pensar - talvez valha a pena dar-lhe toda a responsabilidade, evitando que, na sua ação futura, ele possa vir a ter algumas derivas “esquerdistas”, que pudessem ser justificadas pela sua dependência dos parceiros da anterior Geringonça.

Mas, neste caso, com uma oposição de direita destroçada, que contra-poder passará a existir no terreno, perguntar-se-ão alguns? O presidente da República. Estando em absoluto excluído - e volto à ideia de Lobo Xavier - que PSD e CDS possam formar governo, a “esperança” no equilíbrio do sistema passa a residir, quase exclusivamente, no chefe do Estado. Sabe-se que, na direita, Marcelo não faz a unanimidade mas, neste caso, perante o inevitável, mesmo para setores que não apreciam a sua ação, ele é o único instrumento disponível para “controlar” um governo socialista. 

É perante este cenário de derrota anunciada que setores desse eleitorado tradicional de PSD e CDS podem sentir-se tentados a dar o seu voto, numa opção “experimentalista” e quase lúdica, a minúsculas formações de direita recentemente emergidas, politicamente oportunistas da crise daqueles partidos tradicionais. Elas vão desde o populismo filofascista, com laivos xenófobos e racistas, até uma espécie de “bonapartismo” tardio, personalizado em figuras em decadência política, passando por uma direita mais radical, tipo “alt right”, por cá travestida de liberal. 

Os socialistas só podem “agradecer” a quem se sinta tentado a ir votar nessas formações residuais: não lhes causa a menor mossa política na sua garantida maioria (absoluta ou não) e retira votos que, normalmente, seriam do PSD e CDS. No caso dos social-democratas, em alguns círculos eleitorais mais pequenos, pode mesmo vir a “oferecer” alguns deputados ao PS, na fronteira da maioria absoluta. António Costa só tem razões para sorrir.

quarta-feira, setembro 04, 2019

Clarke e os conservadores


Kenneth Clarke foi ministro das Finanças, do Interior, da Educação e da Saúde de Margareth Thatcher, que nunca gostou dele, sempre desconfiou do seu lado europeísta, mas reconhecia a sua competência e respeitava a sua independência. É hoje o mais antigo membro da Câmara dos Comuns (“the father of the house”), uma figura altamente considerada na vida política britânica.

Ontem, na sequência de não ter seguido as instruções da liderança do grupo parlamentar do Partido Conservador, ao recusar a estratégia de Boris Johnson para o Brexit, Kenneth Clarke viu-se afastado do partido (foi-lhe retirado o “whip”, no jargão parlamentar britânico), juntamente com um grupo de outros deputados, entre os quais o último ministro das Finanças de Theresa May (e ministro dos Estrangeiros de David Cameron), Phillip Hammond.

É este o “estado da arte” no seio dos conservadores britânicos. Mas há mais.

Hoje à noite, tudo o indica, a Câmara dos Comuns votará uma resolução recusando um Brexit sem acordo (mas essa decisão terá ainda de passar pela Câmara dos Lordes, onde a maioria para aprovação não está garantida), o que implicará um pedido de novo adiamento da saída da UE, que estava prevista para 31 de outubro. (A UE concederá sem problemas esse pedido).

Boris Johnson, que recusa em absoluto esta orientação, disse ir tentar convocar novas eleições legislativas em 15 de outubro. Mas, para aprovar isso, necessita de 2/3 dos votos nos Comuns, o que significa que precisa dos votos da oposição. Ora esta insiste, há muito, que quer eleições. Pode assim concluir-se que Johnson tem caminho aberto para realizar o sufrágio?

Longe disso. O líder trabalhista só aceita somar os seus votos aos de Johnson, para a antecipação de eleições, se, antes, ficar aprovada a tal moção que recusa o Brexit sem acordo, o que implica pedir o novo adiamento a Bruxelas. Ora o primeiro-ministro já disse (mas ele já disse tanta coisa, diferente uma da outra...) que nunca faria tal coisa. Em que ficamos? Como se sai daqui? 

Confuso? Ninguém deve estar mais confuso do que os britânicos.

Ainda Timor


Há 20 anos, os timorenses votaram pela independência do seu território. E pagaram por isso, sofrendo uma onda inusitada de violência que escandalizou o mundo.

Tinha cabido à diplomacia portuguesa, ao longo de anos, sustentar, no plano internacional, a questão da ilegalidade da ocupação indonésia da parte Este da ilha de Timor, em face do direito dos timorenses a autodeterminarem o seu futuro. Às vezes, esquece-se um facto: Portugal não tinha de ter opinião sobre se Timor-Leste devia ser um país independente ou se devia integrar-se na Indonésia, eventualmente como uma região dotada de autonomia. Essa era uma questão que cabia aos timorenses decidir, por livre escolha. Portugal não podia aceitar é que a Indonésia ocupasse o território, reprimisse quem se opunha à nova "colonização" e desse por adquirido que Timor-Leste passava a fazer parte do país.

Portugal esteve longe de ser uma parte inocente no conturbado processo de descolonização de Timor-Leste. Depois de 25 de Abril, muitos erros foram cometidos em seu nome e, por ação e omissão, isso facilitou que a lógica da Guerra Fria tivesse permitido a Jacarta executar o golpe de mão que levou à invasão do território e à imensa chacina que, ao longo de anos, dizimou parte importante da sua população civil.

Com o tempo, Portugal foi-se redimindo desses pecados e, já com outro sentido de responsabilidade, conseguiu montar uma campanha internacional, que teve um custo político não despiciendo, de persistente denúncia da violência indonésia. Isso muito veio a ajudar a dar visibilidade à luta heroica dos guerrilheiros que combatiam pela libertação do território.

Para a diplomacia portuguesa, o caso timorense viria a ter duas consequências.

A primeira foi a criação de uma escola de diplomacia aculturada na defesa dos Direitos Humanos. Todas as dimensões de ação externa do país ficaram marcadas pelo caso timorense, tornando algumas relações bilaterais reféns dessa temática e, naturalmente, sobredeterminando a postura dos nossos diplomatas no mundo multilateral.

A segunda teve a ver com os países de língua portuguesa. O caso de Timor acabou por criar um cimento comum, uma causa que Portugal, Brasil e os cinco Estados africanos passaram a desenvolver em conjunto, nos fóruns multilaterais e nos respetivos quadros bilaterais, decisivamente contribuindo para a densificação daquilo que viria entretanto a constituir-se como CPLP.

A luta por Timor-Leste reforçou, ética e funcionalmente, a diplomacia portuguesa.

terça-feira, setembro 03, 2019

Uma improvável amizade


Há dias, numa cerimónia pública, em Lisboa, perguntei a quatro figuras que ocuparam importantes cargos como ministros da democracia se identificavam um senhor idoso que estava sentado num canto. Todos, sem exceção, foram incapazes de colocar um nome naquela cara. E, ainda antes que eu lhes satisfizesse a dúvida, viram, com curiosidade, eu e esse cavalheiro darmos um forte abraço. Tratava-se Rui Patrício, o último ministro dos Negócios Estrangeiros da ditadura.

Conheci pessoalmente Rui Patrício quando cheguei ao Brasil, como embaixador, em 2005. Foi em casa de Alberto Xavier, um breve governante do último executivo de Marcelo Caetano. Naquela que acabou por ser uma longa e agradável noite de conversa, falámos de amigos comuns e trocámos histórias de vida. 

Eu tinha bastante curiosidade em conhecer o último ministro dos Negócios Estrangeiros do regime para cujo derrube tinha modestamente contribuído, em 1974. Ao Rui, presumo, terá sido interessante saber um pouco mais do novo representante diplomático que Lisboa mandava para o Brasil, dos muitos que conhecera desde o exílio que se auto-impusera, já depois da Revolução. Lembro-me bem de, nessa noite, lhe ter dito, na presença de um seu filho, que seria imperdoável se não publicasse as suas memórias.

Durante os anos que permaneci no Brasil, Rui Patrício e eu construímos uma muito agradável convivência, chegando mesmo a planear escrever um livro "a dois" - uma espécie de cruzamento de leituras sobre o papel de Portugal no mundo, antes e depois do 25 de abril. Julgo que o Rui não me levará a mal a revelação pública desta nossa ideia. Por insuperáveis dificuldades de agenda, mas também por alguma pressentida diferença na filosofia de abordagem do trabalho, nunca levámos a ideia à prática. Pela minha parte, tive pena.

Há uns anos, Leonor Xavier disse-me que estava a fazer uma longa entrevista ao Rui, que iria passar a livro - “A vida conta-se inteira”. Mandou-me o texto e, sobre ele, escrevi um comentário que surge publicado na contracapa do livro: "Rui Patrício, um homem sem angústias na fidelidade ao seu passado, ajuda-nos a melhor entender certas decisões assumidas na política externa do Portugal de então, num curioso retrato, a preto e branco, do estertor da ditadura – uma foto, em alto contraste, de dois mundos separados por uma certa noite de Abril."

Rui Patricio vive, desde 1974, no Rio de Janeiro. Tem hoje 87 anos e manteve uma jovialidade que sempre apreciei. Devo-lhe muitas gentilezas, durante os meus tempos do Brasil: fez questão de estar presente em todas as intervenções públicas que fiz no Rio - da PUC ao Real Gabinete, passando por eventos económicos e culturais. Visitou-me depois em Paris, onde, em jantares, cruzámos memórias dos tempos do caetanismo, embora não tivéssemos reconciliado a nossa diferença de perspetivas sobre as grandes dinâmicas desse período. Ficámos amigos. Uma improvável amizade.

Associativos


Cabem todos?

Há dias, numa cerimónia religiosa, vi-o, ao longe. É um traste, uma nódoa moral, um vigarista, com um currículo, melhor dizendo, um cadastro de mau comportamento - face ao cônjuge, à família, aos colegas. Traiu amigos, continua a ser uma figura mesquinha e má. Mas lá o vi, subindo e descendo o corpo na coreografia da cerimónia, repetindo com os lábios a ladaínha do ritual. Ah! E no final, com um ar compungido, foi buscar a hóstia, saindo depois com ela, com o ar humilde dos crentes respeitáveis.

Fui, desde que me conheço, ateu. Olho para estas cerimónias com grande distância, mas sempre com o respeito que acho que é devido às crenças dos outros. Mas, confesso, tenho uma imensa dificuldade em poder admitir que uma religião onde reconheço que há tanta gente de bem, que se apoia em princípios decentes e solidários (princípios em que fui educado e em que me reconheço, embora sem nenhuma matriz religiosa de suporte), aceite no seu seio, sem uma mínima denúncia pública, sem uma estigmatização perante os seus pares, figuras do jaez daquela figura.

segunda-feira, setembro 02, 2019

Fernando Mendes


Leio que Fernando Mendes vai manter-se com o seu “Preço Certo” na RTP, não obstante ter sido tentado por um convite da TVI. A televisão pública vai assim poder continuar a contar com um “produto” de entretimento (não uso “entretenimento”, no que sigo Frei Luís de Sousa e João de Araújo Correia) que, para além dos seus méritos próprios, tem funcionado como um importante “driver” para “segurar” as audiências que levam ao telejornal das oito (o qual, por muitas críticas, algumas justas, que se lhe façam, é, a longa distância, o mais equilibrado e menos populista jornal noticioso televisivo de Portugal). E isso é excelente! 

Dirão alguns, mais puristas, que o modelo do “Preço Certo” casa mal com a ideia de “serviço público”. Estou em total desacordo. A televisão pública não pode desprezar os produtos televisivos que correspondem ao interesse de um largo conjunto de pessoas que apreciam modelos de diversão que, nem pelo facto de serem simples, deixam de ser dignos. Não há serviço público sem ter público. E a televisão pública não é apenas sinónimo de produtos para elites, mais ou menos cultivadas. 

Fernando Mendes é assim, nos dias de hoje, uma figura televisiva de referência. Mas é, igualmente, uma personalidade muito simpática. Há uma década, em Paris, coincidi com ele numa iniciativa na Rádio Alfa, organizada pelo comendador Armando Lopes. Eu levava comigo um casal amigo brasileiro que, desde logo, ficou “íntimo” de Fernando Mendes. Cruzaram-se, dias depois, no aeroporto. Caíram nos braços uns dos outros. Dias depois, estavam a confraternizar no “Solar dos Presuntos”. É assim Fernando Mendes!

É esta afabilidade, esta forma aberta de estar com as pessoas, que me agrada em Fernando Mendes. É isso também que me leva a congratular-me que o “Preço Certo” possa continuar a ser o lugar geométrico onde, ao final da tarde, um certo Portugal se junte para passar uma hora divertida, fora das preocupações da vida, unido por alegrias simples e inócuas. Fazer as pessoas felizes é também serviço público.

domingo, setembro 01, 2019

Cardeal



Agrada-me que o país tenha um cardeal que já encontrei nas noites do “Procópio”.

Spoooorting!


Ser sportinguista é ser portador eterno de um insondável mistério: que mal fizeram ao mundo os sportinguistas para merecerem sofrer, como sofrem, dia após dia, e, não obstante isso, viverem no singular paradoxo de terem imenso orgulho naquilo que são e nem lhes passar minimamente pela cabeça serem outra coisa diferente daquilo que são?

Tertúlia


sábado, agosto 31, 2019

Luiz Rosa Dias


Cheguei ao Luiz através da Alice Pinto Coelho, sua prima. Um dia, há muitos anos, sentou-o na Mesa Dois do seu “Procópio” e passei então a conhecer um médico divertido, bom conversador e que tinha a curiosidade de ser sobrinho de Fernando Pessoa (o Luiz nasceu, em 1931, no edifício onde é hoje a Casa Fernando Pessoa). Da Mesa Dois aos jantares anuais da Mesa Dois (que, por uma década, organizei) foi um salto que o Luiz passou a dar com todos nós.

Um dia, em Paris, fui convidado para um jantar comemorativo do 25 de abril, organizado por esse imparável promotor cultural que é o João Heitor. O repasto, que aconteceria no mais improvável dos lugares, a cave do La Coupole, em Montparnasse, era “abrilhantado” por uma palestra do Luiz Rosa Dias, sobre o seu tio Fernando. Confesso que temi o pior! Sabia que o Luiz tinha, como seu “fond de commerce” para palestras, a memória familiar de Pessoa. Isso, porém, nada garantia à partida. Admito que temi uma estopada. Enganei-me redondamente! O Luiz era um surpreendente bom orador, de fala solta e criativa, prendeu a assistência com belas evocações do tio, do exoterismo às mulheres, e contribuiu para passarmos uma bela noite. Foi um 25 de abril diferente.

Li, há minutos, que o Luiz se foi desta vida. Já não teremos o seu bigode branco e o sorriso daquela figura curvada que sempre nos trazia boa disposição e boa conversa. É a vida! Ou, pior, é a morte.

A cereja no bolo


José Sócrates publica hoje no “Expresso” um artigo em que critica António Costa (sem o mencionar pelo nome) pelo facto de este ter afirmado, numa recente entrevista à TVI, que “os portugueses não gostam de maiorias absolutas”. A esse propósito, Sócrates elenca o essencial daquilo que o seu governo, de maioria absoluta, conseguiu levar a cabo nesse período.

É sabido que José Sócrates mantém uma forte distância crítica de António Costa, por entender que o PS, sob a liderança deste, não prestou a solidariedade que ele entendia ser-lhe devida, no tocante ao processo judicial de que é alvo, em especial face ao modo como a justiça se comportou nesse contexto. Sócrates considera que, desde o início, houve uma inescapável dimensão política em todo esse imbróglio. Costa, pelo contrário, entende que o PS não deve ser envolvido num processo que cabe à justiça conduzir e que seria descabido, com consequências político-partidárias, o PS fazer uma leitura do comportamento da máquina judicial. São duas visões inconciliáveis.

O artigo de Sócrates, pense-se o que se pensar das desavenças no seio da família socialista, é um gesto que, a meu ver, acaba por ser benéfico para António Costa e para as suas ambições, não explicitadas mas muito óbvias, de poder vir a obter uma maioria absoluta, por muito que os portugueses gostem delas ou não - e eu também acho que não gostam. É que, no atual contexto, ser atacado por José Sócrates é quase a “cereja no bolo” que faltava ao líder socialista no caminho para a renovação do seu mandato em S. Bento.

Sylvie ou as férias


Há muitos anos, o Duo Ouro Negro cantava, no “Sylvie”: “E setembro chegou / vamo-nos separar / o Verão terminou / diremos au revoir”.

Sinto o mesmo com as férias, que se vão embora neste fim de semana, com a segunda-feira a significar o regresso ao trabalho. E o Setembro que aí vem promete!

Pensando bem, acho que, um dia, vou ter de me reformar. Mas, dessa vez, será mesmo a sério, juro!

sexta-feira, agosto 30, 2019

Os dias difíceis de Timor


A meio da tarde de ontem, num livraria em Vila Real, comprei o livro “O Negociador”, uma longa entrevista da jornalista Bárbara Reis ao embaixador Fernando Neves. Agora, pela madrugada, lidas atentamente as suas 430 páginas, em cerca de quatro horas, dou comigo em “balanços”. 

Desde logo, para concluir que aprendi bastante com esta obra. Embora eu tivesse acompanhado, relativamente de perto, o processo negocial em que, sob a égide da ONU, Portugal e a Indonésia esgrimiram razões sobre Timor, verifico agora que me escaparam muitos aspetos fundamentais desse extraordinário trabalho negocial, através do qual Portugal tudo fez para que os timorenses tivessem o direito a decidir o que queriam fazer do seu futuro.

A segunda constatação a que cheguei é de que este livro pode ajudar a mostrar, se acaso isso for necessário, a importância de que se reveste, para o país como o nosso, o facto de ter ao seu serviço uma máquina diplomática competente, determinada, perfeitamente consciente dos seus objetivos e com a capacidade de saber instituir uma prática consequente e eficaz para os atingir.

Finalmente, devo dizer que fechei este livro com o reforçado gosto de ter feito parte de uma escola diplomática que produziu profissionais da qualidade do embaixador Fernando Neves, cuja intervenção no processo timorense prestigiou o nosso país e contribuiu para que assim pudesse ser escrita uma magnífica página da nossa história diplomática. Não vislumbro motivo para que o facto de ser seu amigo me obrigue a um qualquer ato de contenção ou modéstia.

quinta-feira, agosto 29, 2019

Agostos da vida - o poder do silêncio


A chefia interina do governo é uma fórmula banal. Nas ausências do primeiro ministro, a coordenação das reuniões semanais de governo é assegurada pelo ministro mais sénior na hierarquia governamental, que estiver em exercício efetivo de funções - e que pode até nem ser o "número dois" do governo. É vulgar que quem coordena a reunião deixe vaga a cadeira que usualmente é a do primeiro-ministro e que continue sentado naquela que lhe corresponde. Uma coisa é óbvia: nenhuma decisão importante é aí tomada sem que o chefe do executivo, que está apenas a uma chamada telefónica de distância, decida por ele próprio. 

Foi assim com que estranheza que, numa reunião de um Conselho de ministros, já há muitos anos atrás, o ministro que a chefiava interinamente (e que, por sinal, não era o "número dois" do governo), que se tinha sentado na cadeira do chefe do governo, depois de despachados alguns diplomas que já vinham "limpos" da reunião de secretários de Estado, e que só necessitavam da chancela formal do Conselho, teve a inusitada iniciativa de suscitar um debate sobre um qualquer tema de "política geral". 

Estava-se em Agosto, mês em que os Conselhos de ministros são, em regra, mais breves, muitas vezes só dedicados a coisas de rotina, sem um pendor decisório muito forte. A ausência do primeiro-ministro como que inibe o Conselho a envolver-se em matérias que passem o estritamente indispensável.

Convirá também dizer que esse ministro, que havia ingressado numa remodelação intercalar inesperada, estava longe de fazer a unanimidade de apreço político entre os seus pares, na apreciação de uma certa geração presente à volta da mesa, por razões que não vêm aqui para o caso.

O ministro começou por dizer da importância do Conselho refletir sobre a temática em causa, tendo introduzido a discussão com uma intervenção detalhada de vários minutos. Alguma perplexidade começou a instalar-se à volta da mesa. Alguns dos restantes ministros e secretários de Estado presentes (estes que aí estavam em substituição dos respetivos ministros, nesse mês de férias) entreolharam-se com algum espanto. Era pouco curial que, na ausência do chefe do governo efetivo, tivesse lugar um debate sobre um tema de orientação política geral. Mas, em silêncio, lá deixaram ir o ministro até ao fim da sua fala. 

Acabada esta, o chefe interino da reunião convidou os ministros presentes a intervir. O silêncio, benevolamente tido como de atenção, com que a intervenção inicial fora acolhida, prosseguiu, mas agora num registo de algum indisfarçável embaraço. Ninguém se inscreveu para falar. Manifestamente, ele não tinha acertado com nenhum dos colegas uma reação para abrir o debate, como frequentemente ocorre.

O nosso homem, talvez já pressentindo que o Conselho lhe estava a "fugir de mãos", inquiriu se os secretários de Estado presentes desejavam dizer alguma coisa. E, perante o também silêncio destes, entendeu por bem complementar a sua intervenção anterior, com novo monólogo de mais uns minutos, suscitando mais algumas questões, sobre as quais "gostaria de poder colher a sensibilidade do governo". Todos os colegas eram agora formalmente interpelados a responder. 

Sem sucesso. Novo e fragoroso silêncio se instalou, com alguns sorrisos e troca de olhares a aflorarem. Alguns dos presentes colocavam já as suas pastas sobre a mesa, com algum "restolho", prenunciando o fim ansiado da reunião. Mas o ministro não a tinha dado por terminada. No continuado e penoso silêncio, olhava para os seus dossiês, talvez perguntando-se como sair dali. A solução acabou por vir de um membro do governo do fundo da sala, um homem de rara ciência que o tempo já nos levou, num comentário a meia-voz: "E se fôssemos andando?". E fomos.

Uma real questão


“Se a Escócia ficar independente, será que vou continuar a poder ir para Balmoral? É que eu nunca tive um passaporte...”

Reino Unido - guia para desatentos


O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, numa decisão que está a ser bastante contestada, decidiu ir suspender, por algumas semanas, o funcionamento do parlamento do país.

As questões, institucionais e políticas, que esta decisão envolve encontram-se em forte debate, até pelas suas implicações constitucionais, atendendo, em especial, ao motivo pelo qual Johnson o quer fazer: facilitar a sua própria liberdade de ação no processo do Brexit.

O Reino Unido não tem uma constituição escrita mas, em contrapartida, dispõe de um corpo de outras leis de idêntica natureza, que, no dia a dia, constituem o esqueleto normativo e orientador do funcionamento do Estado. A isto se soma uma jurisprudência constitucional muito sólida, testada e apurada ao longo de séculos.

Na prática britânica, o parlamento só pode ser suspenso ou dissolvido através da palavra da rainha. De acordo com o compromisso institucional que suporta o regime monárquico britânico, o soberano não tem hoje a menor palavra a dizer sobre questões de Estado. Fará o que o governo de momento (que, noto, lhe foi indicado pelo parlamento) lhe disser que faça. Daqui a dias, a rainha lerá o “discurso da coroa”, preparado integralmente pelo governo, no qual detalhará aquilo que o “my government” escreverá para ela ler.

A ideia, que anda por aí, de que a rainha poderia usar este momento para poder contrariar o governo em funções é completamente desprovida de sentido, tanto mais que nem sequer se sabe o que a rainha pensa - e ninguém no Reino Unido tem intenção de lhe perguntar. Todo o cidadão britânico sabe bem isto, vive confortável com esta regra e só os estrangeiros é que especulam sobre o tema.

Uma última nota, de natureza mais geral: a condição implícita para as monarquias contemporâneas poderem subsistir em regime democrático (leia-se, na Europa e no Japão) é a cedência aos eleitos de todo o poder de intervenção em matérias de Estado. Assim, nos dias de hoje, todos são ... “rainhas de Inglaterra”. Até a própria!

quarta-feira, agosto 28, 2019

O senhor Moisolindo


Passei há dias por lá, por aquela casa, que tem aquela janela. É na rua da Torrinha, no Porto. No passado, foi ali o Lar Gomes Teixeira, pertença do Centro Universitário do Porto. Disponibilizava quartos a preços módicos e por lá me alojei, durante o ano letivo de 1966/67, como caloiro do curso de Engenharia Eletrotécnica.

O lar tinha um porteiro, o senhor Moisolindo (pergunto-me agora: será que se chamava Nozolino e eu sempre percebi mal?), que por lá dormia. Dormia quando podia, porque a agitação no lar era imensa, com noitadas frequentes, até ao dealbar.

Ao pobre do Moisolindo tudo acontecia: desde “bombas” de água em sacos de plástico, que explodiam no eco fácil do saguão fechado para o qual dava o janeluco do seu quarto, até ser chamado, de madrugada, pelo som estridente da campaínha da porta, e, no percurso, tropeçar em fios de pesca estrategicamente colocados, ao mesmo tempo que, pelo vão da escada, sobre ele caíam, cocoricando, galinhas raptadas de quintais vizinhos. Entre tantas outras “invenções”, porque a imaginação dos utentes do lar era infinita.

O Moisolindo era uma figura gorducha, com um ligeiro atraso psicológico e uma gaguez persistente. A nós, servia para abrir e fechar a porta da rua, receber uns recados e pouco mais. Coadjuvava a lavadeira e governanta, que nos servia os pequenos almoços. E imagino que também fizesse limpezas. Era filho do senhor Claudino, um homem simpático que preponderava na portaria do Centro Universitário, a umas centenas de metros.

A porta do lar permanecia aberta, com o Moisolindo por perto, até às 10 horas da noite. Depois, a cada hora, até à uma manhã, estava convencionado haver três aberturas da porta, a toque nosso da campaínha. E lá surgia o Moisolindo, estremunhado, de eterno pijama às riscas.

Num desses serões, às 11 da noite, à abertura da porta, entrei com um grupo de colegas e fiz questão de desejar boa-noite ao Moisolindo, de forma bem visível. E subi para o meu quarto, no topo do edifício.

Na “porta da meia-noite” um novo grupo entrou no lar. Nesse grupo ... eu também vinha! O Moisolindo, julgando estar a sonhar, mirou-me com gaguejante supresa: “O senhor Seixas na-na-não entrou já, há bocado?” Fazendo-me de novas, devo ter dito algo como “Eu? Está enganado, senhor Moisolindo. Boa noite!”, zarpando pela escada.

Uma da manhã. Um derradeiro grupo acede ao lar. Estava o Moisolindo prestes a fechar a porta quando surji eu, afogueado, vindo da rua: “Não feche, senhor Moisolindo, não feche! Falto eu!”. O homem esbugalhou os olhos, não querendo acreditar naquela “aparição”. Creio que já nem reagiu, ficando a olhar para mim, que, pela terceira vez, lhe dava as boas-noites, dirigindo-me rapidamente à escadaria interior.

Nos dias imediatos a esta cena, o Moisolindo, sentindo ter sido gozado por mim, embora ainda sem perceber como, fez-me cara feia. Depois, com o tempo, tudo passou. Acho que ele nunca entendeu a explicação simples para o mistério da multiplicação das minhas “aparições”: eu saía pela janela que se vê na imagem, pertencente a um dos dois quartos do rés-do-chão.

O funcionamento do Lar Gomes Teixeira veio a ser suspenso no final desse ano, por decisão da universidade. Queixas por reiterados atos de indisciplina tinham obrigado a Reitoria a uma intervenção de emergência. Em nome desta, o professor Daniel Serrão já havia chegado a reunir com os utentes do lar, para tentar impor alguma acalmia. Quando um dia, numa conversa no Porto, lhe revelei que, nesse ano “histórico”, tinha sido um dos utentes daquela casa, nem queria acreditar: “Não me diga que o meu amigo era um deles?! Nunca, na história da universidade do Porto, se viu tanta anarquia num lar!", disse-me.

Quero crer que o facto de, nesse ano, eu ter apenas conseguido concluir uma cadeira do curso, é capaz de ter tido alguma coisa a ver com o ambiente no local onde me hospedava. Foram bons tempos? Não estou tão certo disso...

Genial

Devo dizer que, há uns anos, quando vi publicado este título, passou-me um ligeiro frio pela espinha. O jornalista que o construiu deve ter ...