Ontem à noite, alguns embaixadores e diplomatas dos países da CPLP, depois de uma comemoração na UNESCO, juntaram-se em casa do embaixador angolano em França. Foi interessante ver como uma língua comum une, com facilidade, o humor e o sentimento, garantindo horas de boa disposição e de são entendimento.
A certa altura, falámos da Angola de outros tempos, da guerra civil, dos períodos de grandes dificuldades que afetavam então a vida quotidiana em Luanda, uma cidade sitiada, com frequentes cortes de água e luz, com recolher obrigatório.
Nesse tempo, de inícios dos anos 80 do século passado, vivi por alguns meses no Hotel Trópico, na capital angolana. Nele se acolhiam muitos estrangeiros, em especial portugueses em negócios. Com o cônsul-geral e com o ministro-conselheiro da embaixada, eu almoçava e jantava, quase por regra, no "grill" do hotel, uma facilidade rara, que não era estranha à nossa invejada condição diplomática. Nesse tempo, obter uma "reserva" para o "grill" era uma benesse pouco comum, muito apreciada pelos portugueses e angolanos que para lá convidávamos. Diga-se que esse privilégio acontecia não obstante as tensões políticas que, à época, marcavam fortemente as relações entre Lisboa e Luanda, o que só revela que alguma afetividade, fruto de certas cumplicidades, se sobrepunha à conjuntura política.
Com algum exagero, o humor corrente afirmava que, no restaurante normal do Trópico, havia, ao almoço, "arroz com peixe frito" e, ao jantar, "peixe frito com arroz". No "grill", as coisas era ligeiramente melhores, mas a variedade de menus não ia muito longe. Longe, sim, iam os tempos em que os grelhados haviam dado nome ao local. Recordo apenas um cíclico "émincé" de vitela e o sempre presente bolo Trópico, uma espécie de pão-de-ló coberto com claras de ovos, que fechava a maioria das refeições.
O "chefe de sala" era um velho e simpático angolano que havia trabalhado no "Café de Paris", em Lisboa, o Smith. Quando perguntado sobre o menu do dia, costumava ironizar sabiamente, respondendo coisas como: "Eu hoje aconselhava um magnífico caldo verde, seguido de um bacalhau à lagareiro. Depois, teremos um bife à marrare. E fecharemos com um pudim abade de Priscos, que está "de truz" ". Esses e outros pratos virtuais, que se deliciava a relembrar, com expressões do léxico luso, fruto da sua longínqua memória da culinária e da vida lisboeta, logo contrastavam com as limitações do pobre menu do dia, a única realidade a que iríamos ter direito.
O vinho era, invariavelmente, o mesmo: português, de uma marca que nunca esquecerei, de que nunca mais ouvi falar - Corredoura. Não o retive, contudo, na minha memória sensorial como um néctar digno de figurar na história vinícola portuguesa, embora, nas condições locais, a minha escala de valores em matéria de consumo tivesse então atingido generosos limites de complacência.
O serviço às mesas do "grill", chefiado pelo Smith, coadjuvado pelo excelente Sambo, era feito por alunos da escola de hotelaria local, que rodavam com grande frequência. Eram jovens muito simples, inexperientes, terreno fácil para ensaiarmos algumas graças. A piada cíclica era perguntar ao jovens alunos: "Há vinho?". A resposta era sempre positiva, como já sabíamos. Essa era então a oportunidade para que um de nós lançasse, variando cada dia de fórmula, uma coisa assim: "Hoje, estava-me a apetecer um vinho português. Um maduro tinto. Por acaso não tem um Corredoura, não?". Ou assim: "Para acompanhar o almoço, traga-me um tinto. Pode ser Corredoura, tem?"
Os olhos dos ingénuos e solícitos rapazes brilhavam de felicidade. "Por acaso" tinham - esse que era o único vinho existente, à época, em toda a Angola, "de Cabinda ao Cunene", para utilizar um lema então em voga. E, minutos depois, a uma temperatura "impossível", lá surgia, saído da cave, um Corredoura tinto.
Consumimos hectolitros de Corredoura. Provavelmente esgotámo-lo. Deve ser por isso que nunca mais ouvi falar desse vinho. E, devo confessar, vá-se lá saber porquê, não tenho nenhumas saudades dele.