O debate que está aí instalado sobre o impacto ambiental da construção do futuro aeroporto no Montijo, nomeadamente em torno dos potenciais efeitos negativos do tráfego aéreo na circulação migratória das aves que sazonalmente passam por aquela região, fez-me uma “luz” na memória: lembrei-me de uma história que o Nuno Brederode Santos ouvira a Melo Antunes, passada num Conselho de Ministros nos tempos do PREC. Nem o Nuno nem o Ernesto Melo Antunes já estão vivos para fixarem melhor os pormenores do episódio, que o primeiro contava, com a sua graça insuperável, nas grandes noites da “mesa dois” do Procópio. Vou tentar ser fiel àquilo de que me lembro ter ouvido.
Nesse final de 1974, durante o II ou III governo provisório, o tema dos efeitos negativos de certas ações humanas na mudança no habitat que tradicionalmente acolhia a passagem de aves pelo estuário do Tejo foi um dia suscitado pelo subsecretário de Estado Gonçalo Ribeiro Telles. A temática ambiental, por essa época, era um assunto ainda muito pouco mobilizador, tratado mesmo com alguma sobranceria, pela classe política. Ribeiro Telles, que os anos viriam a demonstrar que tivera razão antes do tempo, preocupava-se genuinamente com o assunto, mas, nesses dias de “politique d’abord”, era ainda difícil para ele captar a atenção dos seus pares.
Acresce que esse Conselho de Ministros estava em absoluto concentrado num determinado tema, sobre o qual era fundamental conhecer a posição do PCP, logo, ouvir o ministro sem pasta Álvaro Cunhal. Naquela mesa em forma de ferradura, fechada no fundo, que Marcelo Caetano mandara construir, muito poucos anos antes, numa sala do primeiro andar da residência oficial de S. Bento (ainda por lá me sentei uma meia dúzia de vezes, vinte anos depois), Cunhal tinha um dos lugares imediatamente à esquerda do primeiro-ministro Vasco Gonçalves. À direita, estava Ribeiro Telles.
O tema em discussão no Conselho, que não retive, era de natureza económica. Depois de uma (como habitualmente) longa introdução de Vasco Gonçalves, este abriu o debate e iniciou a “volta à mesa” pela direita, por Ribeiro Telles. À medida que este falava, percebeu-se que tinha aproveitado o ensejo para derivar para uma interpretação das decorrências ambientais do que se pretendia fazer no estuário do Tejo. De certo modo, o raciocínio, típico do mundo do ambiente, era uma versão daquela metáfora científica consagrada de que “o bater de asas de uma borboleta no Brasil pode provocar um tufão no Texas”. Ribeiro Telles explicava as consequências multiplicadoras de uma possível interrupção do pouso no Tejo das aves, no seu ciclo migratório.
Para o que aqui interessa, tratava-se de uma abordagem um tanto “ao lado” daquilo que nesse dia suscitava o interesse prioritário dos restantes ministros, que começaram a revelar a sua impaciência. Eles ansiavam ouvir o que Cunhal tinha para dizer e isso só ocorreria no fim da ronda de intervenções iniciada em Ribeiro Telles e que nele estacara.
Como sempre acontece nestas ocasiões, em que o que os outros dizem deixa de interessar, a sala foi invadida por diversas conversas a dois entre os membros do governo vizinhos de mesa, criando um “bruá” de fundo que indisciplinava o exercício. Vasco Gonçalves, ao contrário dos seus ministros, mostrava-se interessadíssimo naquilo que Ribeiro Telles dizia e, por mais de uma vez, pediu “silêncio” aos impacientes governantes. E, para crescente desespero destes, ia colocando questões ao interventor, inquirindo sobre pormenores que o ministro, com o maior agrado, lhe ia detalhando, alongando assim, perante a impaciência geral, o seu tempo de palavra. Foi numa dessas perguntas que o primeiro-ministro inquiriu: “E que ave seria mais prejudicada, nas suas migrações, por essa possível intervenção?” Ribeiro Telles respondeu-lhe: “O maçarico de bico direito”.
Nessa altura, as conversas na distraída sala estavam a tornar o Conselho já um tanto caótico e Vasco Gonçalves, desagradado, deu então um murro na mesa e, elevando a voz e com cara grave, disse: “Senhores ministros! Peço o favor da vossa atenção! O senhor ministro Ribeiro Telles está a falar sobre o maçarico de bico direito”.
A sala “acordou”, não tanto por um remorso de atenção, mas numa genuína gargalhada coletiva. E, agora já perante as caras sorridentes de todos, Ribeiro Telles lá concluiu a sua explicação sobre os riscos que impendiam sobre o futuro do maçarico de bico direito, se privado de amarar no nosso Tejo e zonas adjacentes. Minutos depois, finalmente, Cunhal teria oportunidade de intervir sobre o tal tema grave que a todos preocupava, quiçá um pouco mais do que o destino da ave que, por instantes, pousara, com inegável graça, nesses dias da Revolução.