quarta-feira, outubro 24, 2018

O fim de uma bela ideia

Viena, 24 de outubro de 1998. Há vinte anos. Jantar em casa de João Lima Pimentel, nosso embaixador representante permanente junto da OSCE. 

António Guterres estava muito bem disposto. Sem que ninguém tivesse reparado, passou pela sala de jantar e retirou o cartão de mesa que tinha o nome do seu assessor diplomático, Freitas Ferraz. Quando nos íamos a sentar, este último deu várias e angustiadas voltas à mesa, para tentar perceber qual seria o seu lugar. Por algum tempo, terá pensado que o anfitrião, e seu antecessor no cargo em São Bento, o tinha excluído do repasto. Alguma conflitualidade passada entre os dois legitimava a dúvida. Guterres inaugurou o coro das gargalhadas que todos soltámos com o quase incidente. E foi um belo jantar.

Passados à sala, Guterres disse que queria falar, à parte, com Joaquim Pina Moura, ministro da Economia, com Lima Pimentel e comigo, ao tempo secretário de Estado dos Assuntos Europeus. Recolhemo-nos numa zona mais privada, com porta de vidro. 

Nem eu adivinhava que, tempos mais tarde, eu iria viver nessa casa, um belo apartamento sobre o Graben, por mais de dois anos.

Guterres foi direito ao assunto. Era necessário desmontar o plano que estava em curso, destinado a criar condições para a sua escolha para presidente da Comissão Europeia. 

O João Lima Pimentel, em finais de 1997, tinha sido a primeira pessoa a falar-me da ideia. Foi num jantar no "Vela Latina", com o Joaquim Pina Moura. 

Inicialmente muito cético, achei que o assunto não tinha pernas para andar. O Joaquim, ao que recordo, estava tentado a que se avançasse, o que me levou a deduzir que já tinha falado com Guterres. 

O João, que já conversara "com Bona" (seguramente com o Joachim Bitterlich, assessor diplomático de Kohl, a quem, um ano antes, ele me tinha apresentado, num périplo que ambos tínhamos feito a Paris e Bona), tinha já várias ideias concretas sobre o que fazer e desenhou, num papel, aquilo que ele passou a designar, para sempre, como o "Plano Alfa". Fiquei de pensar sobre como poderia contribuir para o processo. À saída, alertei para o facto de ser necessário informar Jaime Gama. "Está descansado, o António encarrega-se disso", sossegou-me o João, com a sua tradicional gargalhada.

Por muito estranho que possa parecer, a partir daí e durante alguns meses, não abordei diretamente a questão com António Guterres. E, com Jaime Gama, não me lembro de ter falado nunca do assunto. 

Respaldado pela garantia de que Guterres abençoava a aventura, fui fazendo, por minha conta e risco, algumas diligências exploratórias. Às vezes, isso incluiu lançar pistas equívocas em meios da imprensa internacional em Bruxelas, do género: "posso assegurar que Guterres diria que não, se acaso o seu nome viesse a ser falado para o Berlayamont!". É assim que se põe coisas a correr...

Ao longo de 1998, em diversas conversas a que assisti, entre Guterres e alguns dos seus pares, testemunhei, sempre por iniciativa dos interlocutores do primeiro-ministro português, várias insistências para que ele considerasse aceitar candidatar-se ao cargo. Guterres nunca era conclusivo sobre o seu possível interesse. Recordo-me, em especial, de ouvir Tony Blair, em Downing Street, a ser bastante enfático nessa insistência, numa longa conversa em que referiu, nominativamente, outros possíveis apoiantes de Guterres, avaliando que o ambiente, em Conselho Europeu, lhe era amplamente favorável. Os meus pares dos Assuntos Europeus, com quem me ia cruzando pela Europa, davam, cada vez mais, o assunto por quase decidido. 

Regressemos então a Viena, a outubro de 1998. A decisão que Guterres nos transmitia não era uma completa surpresa para mim e, seguramente, não o era para Pina Moura, que já devia estar avisado dessa intenção. Desde há semanas que me tinham chegado sinais de que Guterres estava cada vez mais avesso à ideia de ir para Bruxelas. Aquele era então o ponto final, concluí

João Pimentel, que um ano antes fora o "pai" da ideia, mas estava então afastado da convivência diária com Guterres, era o mais inconformado. "Porquê, António? Está tudo a correr tão bem! Cada vez me chegam mais sinais que o teu nome tem condições para ser aceite".

Guterres explicou. Estava viúvo desde janeiro. A filha, que aliás estivera no jantar, era muito nova e precisava muito da atenção do pai. Até ali, ele tinha sacrificado a sua irmã, no acompanhamento da sobrinha. E isso não podia continuar. Uma ida para Bruxelas ocupar-lhe-ia ainda mais a vida, de uma forma que não era compatível com a atenção que devia à filha. Tinha de pôr a família primeiro.

"Além disso, há a questão política interna". Eu e Pina Moura mantinhamo-nos calados. Lima Pimentel fazia a despesa da conversa e das perguntas.

"Com a saída do governo do Vitorino, por aquele assunto da sisa da propriedade no Alentejo, não há um sucessor natural para mim. Se eu anuncio a saída, o PS parte-se, saltam dois ou três putativos substitutos e o mais provável é que quem ganhe o partido venha depois a perder as eleições legislativas, daqui a um ano. Nessa altura, eu estaria já em Bruxelas e o partido nunca me iria perdoar. Não posso sair". 

A reserva impede-me de referir a análise que, na ocasião, fez a cada um dos nomes possíveis, como hipóteses para o substituirem como líder. Foi interessante o modo como avaliou, com respeito político e pessoal mas com realismo, o perfil de cada um, para depois os excluir a todos, por não terem, não obstante as suas qualidades, um sucesso garantido, no partido e no eleitorado. 

Mas senti que havia ali mais qualquer coisa. Havia já um desânimo, uma falta de motivação. A morte de Luísa, cuja doença todos tínhamos acompanhado no governo, tinha ajudado a criar um outro António Guterres. 

A noite acabou comigo e o Joaquim Pina Moura a passear no frio da Kärntner Strasse, a caminho dos diferentes hotéis em que estávamos alojados. De certo modo, ambos nos sentíamos um pouco aliviados. A continuidade de Guterres na liderança do governo sossegava-nos. A situação política interna não se apresentava brilhante, a imprensa, depois de um longo estado de graça, tinha "virado" e, nessas circunstâncias, ele era a melhor cara para tentar conseguir uma nova vitória, em outubro do ano seguinte. 

Na manhã seguinte, partimos para Pörtschach, no sul da Áustria, para uma reunião informal de líderes europeus. Pina Moura regressaria a Lisboa. O ministro das Finanças, Sousa Franco, iria a juntar-se-nos, para parte dessa reunião. 

Vivia-se então um tempo intenso e muito difícil de negociações financeiras, na preparação do quadro de financiamento que iria vigorar nos sete anos seguintes a 2000. Muitos jornalistas portugueses acompanhavam a nossa delegação. Antes do encontro europeu, não havia muito para dizer, mas Guterres entendeu que era importante que Sousa Franco e eu falássemos à imprensa. Acabou por não ser um bom momento. O ministro estava tenso e teve uma troca de argumentos menos simpática com Sérgio Figueiredo, diretor do "Diário Económico", que procurei atenuar. Valeu a conferência de imprensa final, em que Guterres esteve, como sempre, muito bem.

Nesse mesmo dia, o meu gabinete tinha-me enviado, por fax, o texto de uma longa entrevista ao "Público" que, dois dias antes, eu tinha dado a Teresa de Sousa, a propósito das negociações financeiras então em curso na Europa. Com má fé, a paginação do jornal tinha-a ilustrado com uma inesperada e oportunista fotografia minha a colocar as mãos sobre os olhos, como que a traduzir desespero. A Teresa, ali mesmo, pediu-me desculpa pelo incidente, a que era em absoluto alheia. 

Aquilo era, no entanto, significativo. O estado de graça do governo Guterres, perante a imprensa, que se tinha prolongado por imenso tempo, já tinha acabado. O vento tinha, definitivamente mudado. E nós passámos a navegar contra ele.

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