quarta-feira, outubro 09, 2024

Biografia do exílio


O quase meio século de ditadura, entre 1926 e 1974, provocou ondas de exilados políticos, que fugiam do regime salazaro-marcelista. Para a história da construção da liberdade, em Portugal, a saga dessas pessoas espalhadas pelo mundo é ainda um capítulo insuficientemente estudado e reconhecido. Há já algumas memórias, algumas monografias localizadas, mas falta um trabalho conjunto que, nomeadamente, nos forneça elementos quantitativos e analíticos do fenómeno.

As culturas de exílio são marcadas por ruturas, por dramas familiares, por dificuldades e, muitas vezes, por imensas incompreensões. O refugiado político vive numa transitoriedade que limita a ancoragem da sua vida, muitas vezes tendo uma realização profissional mínima, quase sempre em ambientes políticos marcados pelo secretismo e pela suspeição. A conflitualidade e a insegurança marcaram os tempos dessas pessoas durante a ditadura portuguesa. Do Brasil à Espanha republicana ou à União Soviética e a outros países do "socialismo real", da França à Suíça e ao Benelux, da Argélia aos Estados Unidos ou à Inglaterra, é imensa a geografia do exílio antifascista português.

Quando fui embaixador no Brasil, procurei, em diversas ocasiões, recordar o diáspora política que a ditadura forçara. Por ali falei, na imprensa e em intervenções públicas, dos nomes de Humberto Delgado, de Henrique Galvão, mas também de Sarmento Pimentel e de Jaime Cortesão, entre muitos outros. Lembro-me de também me ter associado à evocação de memória de Francisco Cachapuz/Paulo de Castro, numa intervenção na Associação Brasileira dos Jornalistas. E tive o gosto de entregar pessoalmente, no Consulado-Geral de Portugal no Rio, uma medalha evocativa da liberdade, oferecida pela Associação 25 de Abril ao mais antigo refugiado político português, Edgar Rodrigues. Mas reconheço que fiquei muito aquém do queria ter feito.

Um dia, pedi para me encontrar com a historiadora Heloísa Paulo, que então trabalhava no Brasil. Tinha lido coisas que ela escrevera sobre o exílio português no Brasil e tentei estimulá-la para ir mais longe nesse trabalho, assegurando o apoio do embaixador português junto de entidades que pudessem facilitá-lo. À ocasião, juntei outro historiador, Douglas Mansour, que tinha em curso um interessante trabalho sobre o "Portugal Democrático", um jornal da comunidade exilada, com grande importância nos anos 60 e 70. Infelizmente, a sequência da nossa conversa acabou por se perder na onda de atividades a que um embaixador português é chamado num país da imensidão do Brasil.

Fiquei assim muito satisfeito, hoje à tarde, quando, na Fundação Mário Soares - Maria Barroso, Heloísa Paulo, que eu já não via há mais de quinze anos, se dirigiu a mim desta forma: "Viu? Segui o seu conselho e o livro que hoje aqui apresento deve muito ao seu estímulo". E, na sua intervenção na sessão teve a amabilidade de repetir o seu agradecimento por essa minha "co-responsabilidade" na obra que agora apresentou em Lisboa, numa edição da Âncora, a editora do meu amigo Baptista Lopes.

Na sessão, falou também a historiadora portuguesa, residente em França, Cristina Clímaco. Ora tinha sido precisamente com ela, com Fernando Rosas e com Luís Farinha que, em 2011, eu organizei, na Embaixada em Paris, para onde entretanto tinha sido transferido, um muito participado colóquio sobre o Exílio português em França. Foi interessante reencontrá-la, uma vez mais em torno do tema do exílio, de que tem bibliografia publicada.

A sessão da tarde de hoje culminou com uma magnífica intervenção de um antigo exilado português no Brasil, um militar do "golpe de Beja", o coronel Manuel Pedroso Marques. O Manuel, do alto dos seus mais de 90 anos, desenhou-nos um fresco sobre as gerações de oposicionistas que cruzou nos seus tempos do Brasil.

Vai ser um gosto poder ler esta obra de Heloísa Paulo. Quem me dera ter podido tê-la como guião, no meu tempo no Brasil, para o esforço que então fiz para honrar quantos por ali tinham lutado pela liberdade em Portugal. Mas mais vale tarde do que nunca.

3 comentários:

Belita Isabel Janeira disse...

Boa noite, Senhor Embaixador! Sendo fan das suas escritas, tanto no Facebook como aqui no blogue, não posso deixar de o felicitar pela qualidade, acutilância e, por vezes , rendilhado das palavras com que me deleita a sua escrita. Sempre que podia gostava de apreciar os seus comentários televisivos e fiquei com pena de os ter terminado. Hoje, sensibilizou-me a referência a meu tio João Sarmento Pimentel que tanto sofreu no exílio e tanta alegria teria sentido se fosse ainda vivo por ocasião do 25 de Abril. Aceite os meus melhores cumprimentos de felicitações por tanto ter honrado Portugal nos diversos cargos que lhe foram atribuídos e permita-me que lhe peça para não deixar de escrever sobre o seu Passado, Presente e a experienciar no Futuro.

Joaquim de Freitas disse...

Não sendo capaz de escrever assim tão bem, faço minhas as palavras da Senhora Belita Isabel Janeira, porque o Embaixador merece.

Sou um emigrante dos anos 60. Mas conheci muitos emigrantes de combate.

Anónimo disse...

Muito obrigado pelo texto.
Tony Fedup

25 de novembro