sexta-feira, agosto 09, 2024

Vai haver guerra?

Há já uns meses, um amigo, pessoa com educação universitária de nível internacional e com fortes ligações pelo mundo, mundo exterior esse onde vivem os seus filhos, telefonou-me e, de chofre, fez-me esta pergunta terrível: "Achas que vai haver uma guerra?" 

Fiquei surpreendido com a questão. Se ela tivesse surgido no intervalo dos concertos na Gulbenkian, onde eu e ele nos vamos encontrando com regularidade, em fins de tarde que nos amainam o espírito, seria normal. Contudo, ser essa pergunta o único objetivo de uma chamada telefónica era coisa bem diferente: traduzia a respeitável angústia que atravessava esse amigo e, no que me dizia respeito, demonstrava alguma confiança no meu juízo, a que eu não podia ser indiferente

Apanhado de surpresa, devo ter começado por dizer algumas obviedades: que a tensão internacional dava sinais de estar em crescendo, que havia no terreno dos conflitos alguns atores essenciais sobre cuja racionalidade decisória havia fundadas dúvidas, que o ambiente de "guerra de surdos" em que o mundo estava a cair tinha fechado certas "pontes" de diálogo de "ultima racio", que começava mesmo a emergir, no discurso de alguns, a perigosa ideia da inevitabilidade de um conflito mais alargado. E porque é essa a minha convicção profunda, imagino que lhe tenha transmitido a ideia, que há muito alimento, de que só pode existir paz quando os adversários, explícita ou implicitamente, acordam numa base mínima de entendimento, que comporte a aceitação de mútuas preocupações de segurança. E que isso estava longe de existir.

Lembro-me de lhe ter dito que o que mais me preocupava era a inconsciência de certas vozes, que pareciam não temer uma deriva do mundo para uma nova guerra, na lógica do "se tiver que ser, que seja". Talvez porque muitos ingenuamente entendem que a guerra, a surgir, acabará por ter um "preço" comportável, que talvez os não "atinja", habituados que estão a assistir no sofá às guerras alheias, feitas dos mortos e feridos dos outros. Mas julgo que não lhe terei falado do mito da guerra "rápida" que, há mais de um século, tinha conduzido à carnificina da Grande Guerra.

Uma coisa, com toda a certeza, lhe devo ter dito, provavelmente constituindo isso para ele uma surpresa: que - e afirmo sempre isto com toda a convicção e sinceridade -  a grande esperança que eu tinha em que se não desencadeasse uma nova guerra internacional alargada residia nos Estados Unidos e, em especial, nos seus militares.

Porquê esta "confiança"? Ao longo da minha vida, nunca fui conhecido por subscrever, "de cruz", as opções estratégicas americanas. Tenho mesmo, nos tempos que correm, sérias reticências perante algumas posições de Washington, em vários teatros de tensão e de conflito, da Ucrânia à Palestina, do Pacífico à América Latina. Mas confio em que os EUA tenham, melhor que ninguém, pelo poder bélico que controlam, a consciência de que um qualquer conflito de natureza grave, com potencial tentação de uso nuclear, poderá significar uma tragédia universal irremediável. 

O meu amigo, que me recorde, não me terá feito a pergunta óbvia: "Mas tu não achas que os russos ou os chineses também devem ter a consciência desse risco?" Eu ter-lhe-ia respondido que, até ver, tendo a confiar mais no "decision-making process" do mundo dito democrático, por muito crítico que dele seja, do que no de atores políticos do campo dos poderes autoritários e centralistas, cujos "checks-and-balances" desconheço. E poderia ter acrescentado que também não confio minimamente em entidades nucleares (ou protonucleares) estrategicamente fanáticas, como Israel, o Irão ou a Coreia do Norte. Ou em certos parceiros europeus empanicados pela conjuntura e, como tal, propensos a (nos fazer) correr riscos limite.

Não sei como acabou a conversa com o meu amigo. Acho que, no seu termo, terá percebido que estou tão preocupado como ele com o estado do mundo, não obstante continuarmos distantes em termos ideológicos e de filosofia política. É que, quando se chega àquilo que é essencial - a vida -, a nossa trincheira acaba por ser a mesma.

9 comentários:

Anónimo disse...

Uma questão de fé, portanto! Fico esclarecido quanto ao racional.

Carlos Antunes disse...

Senhor Embaixador
Excelente análise. Num simples post consegue produzir uma análise sintética mas bastante interessante sobre a situação do mundo atual.
Motivo mais do que suficiente para continuar a acompanhar o seu blog e os seus comentários televisivos, que primam por uma certa diferenciação (com os quais sempre vou aprendendo algo) relativamente à generalidade dos comentadores ditos especialistas, enquistados nas suas análises por posições pró-israelitas ou pró-palestinas, pró-russas ou pró-ucranianas, etc., etc.
Bem avisado esteve o seu amigo ao socorrer-se da sua opinião para a questão que o atormenta.
Cordiais saudações

Anónimo disse...

Hoje, como no tempo das grandes guerras, somos governados por gente da mesma estirpe. Os métodos de agir e de comunicar mudaram, mas a essência do poder mantem-se. Acresce que a guerra (parecem muitas, mas é a mesma guerra) tornou-se um entretenimento televisivo, a que é dado o mesmo tratamento de um jogo de futebol, incluindo o modelo de avaliação das táticas, dos avanços e recuos.

A guerra está aí, com Netanyahu a fazer de Hitler, Putin a fazer de Estaline, Biden a fazer de Napoleão.

Depois temos o povo, que se comove ao som do seu hino, mas incapaz de se libertar do pendão que o amarra a religiões, a coisas que nem entende, mas que o tornam indefeso e dependente que quem o manda para a linha da frente e, imagine-se, até agradece as condecorações a glorificar os seus familiares mortos.

manuel campos disse...

Muito bom texto, mesmo muito bom, a pôr no sítio uma série de verdades incómodas para os que continuam calmamente a ver sofrer os outros e os filhos dos outros entre duas garfadas ou dois sorvos na bebida, achando sempre que o problema é lá longe e nunca vai sobrar para eles, como ao longo da História, mesmo da recente, muita gente cómoda e egoisticamente escolheu pensar.
E também muito bom o comentário do Anónimo das 15.22.

Também os "checks and balances" de um certa "opinião pública" mais informada foram substituídos em todo a parte por uma "opinião publicada" com interesses habitualmente fáceis de discernir e tão bem embalados que muito pouca gente se sente na necessidade de procurar um pouco mais longe, o prêt-à-porter perfeito de um mundo cada vez mais individualista por razões que, bem vistas as coisas, até se compreendem.

PS- É irracional procurar racionalidade na irracionalidade.

Anónimo disse...

O comentário que saiu como anónimo, 15,22, é do J. Carvalho

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Palavras sempre oportunas!
De facto, só mesmo a "cagufa" de alguns atores mais ajuizados poderá prevenir desgraças maiores.

balio disse...

O Irão não é "estrategicamente fanático". Tem propaganda quiçá fanática, mas palavras leva-as o vento. Nas suas atuações concretas, o Irão é muito racional e moderado.

JA disse...

Boa análise, bem construída, esta, sr. Embaixador. No entanto, gostava que explicitasse onde consegue vislumbrar no comportamento do ocidente os tão falados " checks-and-balances" que supostamente garantiriam melhores decisões; refiro-me obviamente às candentes questões da guerra. É que, se bem ajuizo, o grosso das ideias que aqui defende estará em contradição com esse funcionamento cautelar das instituições ocidentais. Costumo ouvi-lo com atenção na CNN e lê-lo aqui, e fico sempre com a sensação de que existe algum camaleonismo nas posições que defende: sérias no blog, mais diplomáticas, resguardadas na TV . Esta dos "checks..." parece-me mais TV !?
."
.

JA disse...

Bom texto, este, sr. embaixador. No entanto, gostaria de saber quais os fundamentos que aduziria para ter chamado à colação os propalados "Checks-and-balances" como modo de firmar a sua crença na melhor qualidade das decisões proferidas pelo ocidente. Confesso, com desgosto, que as guerras a que o mundo assiste revelam que tal mecanismo não funcionou nem parece que virá a funcionar (fora da pressão da opinião pública, em que ainda acredito), ameaçando levar-nos ao desastre. Aliás, se bem ajuízo pelo que escreve no "post", há uma séria contradição entre o grosso das ideias que aí defende com os ditos "checks..." , não acreditando muito na fé que diz depositar em tal mecanismo! Sou um espectador atento das suas intervenções na CNN e leio com muita assiduidade e apurado interesse o que aqui escreve. Pois bem, fico sempre com a estranha sensação de que tem discursos diferentes conforme o meio em que se expressa: muito melhor e mais claro no blog, muito mais camaleónico na TV. Ora, parece que neste texto quis casar essas duas facetas, aparecendo os "cheks..." como um corpo estranho ao escrito: assim como o trapezista que caminha sobre o arame bem sabendo que a qualquer momento pode cair, sendo que a sua arte é sair ileso lá do alto! Ou, serei eu que o interpreto mal!

PS. É terceira vez que tento comentar este post sem êxito aparente, por inépcia minha. Assim se aparecer repetido, peço desculpa.

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