Morreu Delfim Netto. Os obituários trarão, com toda a certeza, retratos muito completos desta interessantíssima figura da economia e da política brasileiras. De ministro da ditadura, no seu período mais duro, a conselheiro informal de Lula, Delfim Netto fez um longo e controverso percurso. A sua inteligência e o seu brilhantismo serão, contudo, unanimenente reconhecidos, tenho absoluta certeza.
Foi no "Piantella", essa rotunda (os brasileiros dizem rotatória) obrigatória da política brasileira, que vi pela primeira vez Delfim Netto, no início de 2005. Passeava o seu corpo pesado entre as mesas, saudado por uns e por outros, destacando-se pelos seus vistosos suspensórios. Eu tinha aquela figura gravada, há décadas, das páginas dos jornais e revistas. "É o Delfim Netto, não é?", perguntei ao Toninho Drummond, representante da Globo na capital federal, meu convidado para almoço. "É. Quer conhecê-lo?" Fui-lhe apresentado como o novo embaixador de Portugal acabado de chegar, trocámos umas curtas banalidades e cada um sentou-se na sua mesa.
Passaram mais de três anos e, num outro almoço, desta vez em casa do embaixador da Ordem de Malta, coincidiu ficar sentado ao lado de Delfim Netto. Eu lembrei o nosso anterior encontro no "Piantella", ele fingiu simpaticamente que também se recordava.
A conversa, creio que entre cerca de oito pessoas, foi naturalmente dominada por ele. Vivia-se o segundo mandato de Lula. Com o impulso da reeleição, os efeitos económicos no bem-estar de certos setores e a hábil exploração interna da sua então forte projeção internacional, o presidente tinha conseguido recuperar parte do desgaste sofrido com as sequelas da crise do "mensalão". Preparava já a sua sucessão através de Dilma Roussef e recordo que fiquei para sempre com a sensação que a então Ministra-Chefe da Casa Civil não colhia grande simpatia de Delfim Netto.
Nesse almoço, rodeado de uma companhia heterogénea, misto de políticos e diplomatas, Netto foi cauteloso e hábil. Mas, mesmo assim, deixou cair algumas notas críticas sobre a política económica de Lula, aliás não muito distantes do que, por vezes, expressava em artigos pontuais na imprensa. Tudo era apresentado, contudo, num tom construtivo, muito realista, desprovido de qualquer viés ideológico.
À despedida, disse-lhe que gostaria muito de o convidar para ir um dia à nossa residência. Que teria o maior gosto, foi a resposta, acrescentando que já não tinha uma refeição por lá desde os tempos do "excelente" embaixador Adriano de Carvalho, como qualificou um meu antecessor que, nos anos 80, havia deixado muito bom nome na capital brasileira.
Prometi contactá-lo para marcarmos uma data. A vida não é o que queremos que ela seja e acabei por não cumprir a promessa. Outros compromissos devem ter-se metido pelo meio e a oportunidade nunca surgiu. Fiquei, para sempre, com muita pena. Não é todos os dias que surge o ensejo de privar com uma verdadeira figura da História.
Delfim Netto sai hoje de cena, aos 96 anos.
2 comentários:
Foi pena. Que em paz descanse.
Uma figura histórica de uma época das mais históricas e benéficas do Brasil.
Quem dera à América Latina ter ditaduras tão utilmente democráticas com aquela de Delfim Neto e vários outros.
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