terça-feira, setembro 28, 2021

Uma memória do 28 de setembro de 1974


Depois da derrota política sofrida no dia 28 de setembro de 1974, o general António de Spínola, presidente da República, na ressaca dos acontecimentos e das manifestações desse dia que ficou histórico, tinha convocado o Conselho de Estado para 30 de setembro. Foi anunciado que, nessa ocasião, faria uma comunicação ao país pela televisão e rádios, diretamente de Belém.

Eu andava pelo palácio da Cova da Moura, onde era adjunto da Junta de Salvação Nacional, instituição a que Spínola ainda presidia, mas que, tudo o indicava, tinha a sua existência a prazo. Juntámo-nos uns tantos, de tendências político-militares bastante diversas e até antagónicas, em torno de um televisor, para ouvir a intervenção do chefe de Estado.

Os tempos eram muito tensos, o ambiente político era de cortar à faca. Naquela sala estava gente cujo futuro iria ser, a partir desse dia, muito díspar. Lembro-me de que havia por lá um general do Exército, cujo nome não consigo recordar, recém-regressado de uma Angola em convulsão, que sabíamos ser um "spinolista" ferrenho. Estava acolitado por figuras que não conhecia, com cara patibular, de quem tinha ficado do lado dos derrotados nas “batalhas” das vésperas.

Todos antecipávamos as palavras do "velho" (como os "spinolistas" gostavam de chamar à sua figura tutelar). A ideia mais comum era a de que se demitiria em direto das funções, mas outros cenários, nomeadamente de alguma resistência à recente derrota nas ruas dos seus apaniguados, ainda eram plausíveis.

O discurso começou, com a voz rouca de Spínola, naquele registo épico e um pouco teatral que era o seu, a dramatizar, como era de esperar, a situação política, na exata linha das suas anteriores frustradas tentativas de fazer levantar a suposta "maioria silenciosa" do país.

O diagonóstico que saía da sua boca era ácido e impiedoso para os vencedores dessas horas. Todos olhávamos o aparelho de televisão mas, verdadeiramente, policiávamo-nos pelo canto do olho, sabendo que cada um lia as palavras de Spínola de forma diferente. Para mim, como jovem militar "a prazo", que me via do lado vencedor da contenda, o momento era excitante.

A certo passo da intervenção, mas ainda antes do anúncio da demissão do "caco" (como Spínola também era conhecido, por virtude do seu monóculo), um homem da Marinha, Duarte Lima (não, não é esse!), não se conteve e fez ecoar pela sala alguns adjetivos qualificativos, muito pouco abonatórios para o presidente da República e presidente da Junta de Salvação Nacional, a cujos quadros pertencíamos e em cuja sede estávamos.

Praticamente, ninguém o acompanhou na expressão vocal dos sentimentos que o motivavam, os quais, no fundo mas apenas no íntimo, creio que eram partilhados pela maior parte dos presentes. Mas, com os diabos!, Spínola era um derrotado daqueles dias e havia outras maneiras de, como dizem os militares, "explorar o sucesso", tanto mais que "não se dispara sobre ambulâncias". 

Duarte Lima, porém, estava imparável, indignado com os ataques de Spínola ao MFA, e não se calava, nos insultos que ia proferindo, em crescendo. O general chegado de Angola, a alguns metros dele, fervia de raiva, marcada pela impotência que Spínola confessava no seu discurso. Os seus escassos acompanhantes remoíam em silêncio.

Quando tudo terminou, depois de Spínola ter anunciado a sua demissão, todos nos levantámos, ainda um pouco aturdidos com o início de uma nova fase da Revolução que o seu gesto prenunciava. O tal general, lívido, passou pelo Duarte Lima e, num assomo de autoridade, lançou-lhe: "Você devia ter vergonha pelo que disse". A compostura militar impôs-se e Duarte Lima não reagiu. Ou melhor: deixou sair o superior da sala e comentou, para nós: "Estive para o mandar à ....". Mas não mandou. E ainda bem. O general já tinha tido a lição dos factos.

3 comentários:

septuagenário disse...

28 de Setembro de 1974, recordando penso que seria Domingo.

Havia um controle de viaturas nas entradas de Lisboa, à procura de armas.

Sendo que no caso da entrada sul na ponte que na altura ainda não estava certificada como ponte 25 de Abril, havia uns jovens bastante cabeludos, calças à boca de sino, e tacão de 5cm, tudo bem à moda lisboeta daquele tempo, a fazer essa fiscalização à procura de armas, com uma pequena proteção de militares de G3 à beira da via, militares também sem frequentarem o barbeiro desde Abril, cabelo de 5 meses sob o quico.

Ora acontecia que os rapazes à boca de sino, dentro de uma inexperiência natural para tal fiscalização limitavam-se a parar as viaturas, espreitavam pelo vidro da porta da frente e pelo vidro da porta de traz, e mandavam seguir.

Às tantas alguém de cabelos grisalhos sai de uma viatura acabada de fiscalizar, chama a atenção dos rapazes que uma boa fiscalização à procura de armas não se faz sem abrir o porta bagagens, e sem alguem se enfiar por baixo da viatura e espiolhar bem o chassis em todos os seus recantos.

Ora aquela rapaziada equipada mais para ir a um baile do que para rastejar no asfalto...o tal homem grisalho, quando viu as três ou quatro faixas de viaturas com uns tantos rapazes debaixo das viaturas, entro na sua viatura pisgou-se e não mais foi visto pelos jovens.

Ainda hoje esse dia, penso que era Domingo, foi um dia memorável para esta pessoa que protagonizou o papel de "passageiro grisalho"

Retornado.

JFM disse...

Sr. Embaixador
Quando vi o seu post lembrei-me logo desse dia.
Como jovem universitário, por esse motivo adiado do serviço militar, fazia outras atividades entre as quais ginástica.
Calhou uma vez mais que a "classe" (como se designava ao tempo a equipa) tivesse sido, mais uma vez, convidada para participar no festival de inauguração de mais um novo pavilhão desportivo.
Desta vez em Viseu.
Confesso que embora consciente q.b. sobre a "situação politica actual e as medidas a tomar" tinha considerado a manif da maioria silenciosa como mais uma manobra daqueles que queriam voltar a todo o custo ao antigamente.
E lá parti com os outros, de autocarro alugado, manhã cedo, por aquelas poéticas estradas da época, depois de Vila Franca, havia, só
para referir algumas, Castanheira, Alenquer, Rio Maior, Pombal, Condeixa, Coimbra, Mealhada, Tondela etc..
Em todo o lado havia autocarros, daqueles com cores garridas, muitos cromados, pertencentes a empresas como Auto Viação de... Camionagem de... etc cheios de "excursionistas à borla a Lisboa, mas encostados a berma e impedidos de prosseguir por elementos militares e população.
Ai tomei verdadeira consciência da dimensão do que tinha sido preparado.
Fomos passando de admirados a entusiasmados com o desenrolar dos acontecimentos que se mostravam ao vivo diante dos nossos olhos durante a viagem.
Realizadas as atividades após dormida não me lembro onde, regressámos no dia seguinte, domingo, a Lisboa já com as estradas desimpedidas.
Convem lembrar que estes episódios não estavam, a época, disponíveis ao vivo e em direto, com os comentários das Sandras Carinas, de micro na mão e cabelos ao vento, por não existir nada disso.
Depois de assistir ao vivo à rendição do quartel do Carmo, este foi outro momento que vivi e que guardo na memória como uma data importante para a possibilidade de vivermos hoje em Democracia.
Só mais um detalhe, a coisa passou-se a um sábado.

septuagenário disse...

Afinal, insistindo no 28 de Setembro de 1974, não era Domingo como eu septuagenário pensava, já a bater hoje quase nos 80, mas segundo comentário anterior seria Sábado, concordo que sim.

Ora o dia do "passageiro grisalho" não terminou com a fiscalização das viaturas na margem sul do Tejo, e os jovens debaixo dos chassis dos automóveis.

Seguiu para o Rossio (baixa de Lisboa) a procura de mais novidades.

Há de facto dias que marcam um povo, e este foi um desses dias.

Havia de facto muita gente "silenciosa" nesse dia.

Havia algumas pessoas mencionadas em cartazes no largo do Rossio bem caladinhas.

E o "passageiro grisalho" recorda dois nomes em dois desses cartazes: um era Jorge de Brito, apanhado em fuga para Espanha com quadros dentro do automóvel.

Outro nome era nada mais nada menos que Amália Rodrigues acusada de ligação à PIDE.

Um deles mais tarde acabou presidente do Glorioso e a outra no Panteão.

Houve tantas cenas, que vistas à distância foram "umas atrás das outras".

Retornado

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