sábado, setembro 18, 2021

José-Augusto França


Há coincidências do diabo! Há dois dias, depois do jantar, saído do Grémio Literário, depois de charlar com um amigo para umas dezenas de pessoas, sobre o diplomata que Eça de Queirós também foi, veio-me à memória, de repente, José-Augusto França. Que seria feito dele? Sabia que estava doente, há já bastante tempo, algures em França, onde vivia.

Acabo de saber que morreu, aos 99 anos.

É que tinha sido precisamente no Grémio Literário que eu tinha sido apresentado a José-Augusto França, nem sei bem em que contexto. Fiquei então satisfeito por lhe poder dizer que, além de conhecer muita da sua obra, ainda antes do 25 de Abril lia, com grande interesse, crónicas que ele publicava, creio que no “Diário de Lisboa”, sobre questões de património e arte.

Lembrava-me, aliás, de que fora ele quem, numa delas, dera o alerta para o facto da antiga igreja, junto à Praça do Município, onde hoje está o Museu do Dinheiro, e que era à época uma garagem do Banco de Portugal, ter surgido com as respetivas pedras numeradas. Isso significava que estava prestes a ser demolida e transportada, ao que julgo, para a zona de Benfica.

França escreveu então um artigo a insurgir-se contra o que achava ser um atentado ao património. O que hoje é coisa banal na nossa imprensa - alertar para uma decisão passível de contestação - era então, não apenas coisa rara, mas algo de corajoso. A verdade é que o assunto foi travado e o edifício ficou por lá. Muito graças ao alerta de José-Augusto França.

Nessa minha conversa, que julgo que teve lugar durante um jantar, aproveitei para lhe contar um episódio que ele desconhecia. Uma cena que eu tinha testemunhado, numa noite de 1970 ou 1971, no Centro Nacional de Cultura.

Francisco Salgado Zenha, advogado de renome, oposicionista à ditadura e que, em democracia, foi depois “número dois” do PS e candidato presidencial, intervinha num ciclo de palestras. O regime não iria deixar durar muito essa iniciativa do Centro.

Já não recordo qual era o tema da palestra de Zenha, mas lembro-me bem de que, a certa altura, ele citou, com ironia, uma frase que ouvira a José Augusto França, segundo a qual os portugueses viviam divididos entre “dois santos”: São Bento, para quem era atraído pelo poder, e Santa Apolónia, para os que viviam na permanente miragem de Paris.

Nessa altura, ouviu-se, do fundo da sala, a voz forte, quase de tribuno, do advogado, jornalista e político Francisco Sousa Tavares, que também ali estava, ao lado da sua mulher, a escritora Sophia de Mello Breyner, a interromper o orador: "O José-Augusto disse isso? Essa agora!? Logo ele, que nunca usa o comboio, que vai sempre de avião para Paris!" A sala desatou em gargalhadas. 

Divertidíssimo, França confirmou-me que, de facto, contava, às vezes, essa graça. Mas estava longe de supor que Sousa Tavares o citara.

José-Augusto França era um homem fascinante. Historiador de arte, mas também memorialista e ficcionista, teve um papel muito ativo no nosso panorama cultural, tendo chefiado o Centro Gulbenkian em Paris. É um nome grande que se vai.

2 comentários:

JPGarcia disse...

Caro Francisco,

O meu pai foi o melhor amigo de José-Augusto França, como ele próprio mo disse quando partiu em 1985. Lembro-me de, durante anos e anos, ele e a mulher virem a nossa casa jantar ao Domingo antes de uma ida a quatro ao cinema. Foi António Pedro que o apresentou ao meu pai em Moledo na década de 40 do século passado, tendo-lhe por sua vez J.- A. F. apresentado outros que ficaram amigos, como Fernando Azevedo, Fernando Lemos e Vespeira. Desde então, J.- A. F. fez parte da vida da nossa família, até eu lhe suceder como director da delegação em Paris da Fundação Gulbenkian. Entretanto, havia-me convidado para escrever artigos na Colóquio-Artes. Com ele, parte também um pouco do meu passado. O último texto que escreveu antes de adoecer, em 2016, foi sobre a colecção de arte dos meus país. Irá ser publicado em breve.

Um abraço

JPGarcia

ZeBarreto disse...

José-Augusto França escreveu, em 1966, para a revista O Tempo e o Modo um artigo que foi cortado pela censura. O texto descrevia o debate havido sobre a localização a dar à estátua de Nun'Álvares, que tinha sido encomendada a Leopoldo de Almeida e por ele concebida para ser colocada no alto do Parque Eduardo VII (a estátua acabou por ir para a Batalha, em 1968, por decisão salomónica do Salazar). Em 1966, 7 vereadores da CML tinham decidido que o alto do Parque não era um sítio digno e que a estátua devia ir para a Praça da Figueira (onde ainda não estava a estátua de D. João I, obra do mesmo escultor, lá colocada anos depois, no final de 1971). Muitos se opuseram em 1966 à localização da estátua de Nun'Álvares na Praça da Figueira, incluindo o José-Augusto França, que no fim do artigo perguntava se não seria melhor deixar a estátua "em gesso, numa qualquer arrecadação municipal", pois então "menos se ririam de nós os nossos filhos". Gonçalo Ribeiro Teles também tinha participado no debate, sugerindo para a Praça da Figueira o papel de um "dedo" verde a apontar para a Baixa.

Aqui abaixo fica o link para o artigo de JAF chumbado pela censura, que acaba por ser cómico a vários títulos, sobretudo se pensarmos no destino que o pedestal do alto do Parque teve, com o "pirilau" do João Cutileiro.

http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=06772.064

Diga-se que o site da Fundação Mário Soares não identifica a autoria do texto, que é claramente de JAF.


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