Há dias, um amigo estava a jantar, por aqui, na esplanada do “Wish”, na Foz, e, pelo telefone, para Lisboa, disse-me que estava a aproveitar uma das “cinco noites únicas” que o Porto tem por ano. Há pouco, pareceu-me que só restavam três outras: aquela também era uma noite magnífica, a não perder.
Eu saía de um agradabilíssimo jantar com um velho amigo, depois do bife na frigideira do “Convívio”, ali em frente ao Tuela, que o Alberto, palavra segura da casa, me tinha prometido de uma carne memorável (e era). Deu-me então na ideia ir andando pela avenida da Boavista, em direção ao “Campo”, depois de ter passado a curva do Brasília.
(Alguns “soit-disant” conhecedores do Porto dirão: está enganado! Isso já é Rua da Boavista, dado que a Avenida da Boavista é a artéria que parte da rotunda para o Castelo do Queijo. Pois está equivocado quem assim pensa: a parte mais larga, em frente ao antigo hospital militar, ainda (ou já) é Avenida da Boavista. Aprendam, porque eu não duro sempre!)
Fui então andando até à esquina do Café Diu (ainda terá, lá dentro, como acontecia no Estrela d’Ouro, na Rua da Fábrica, o marco do correio embutido na parede? Não deu para ver). Virei para Cedofeita, ainda andei por ali à procura da antiga Adega da Figueiroa, mas já não encontrei qualquer referência. (Era notável a voz anasalada do dono da tasca, óculos de fundo de garrafa, a clamar, regularmente: “Chamam ao telefone o doutor Camelo!” E lá se aproximava do telefone no balcão um cavalheiro que nunca tirei a limpo se era familiar de um pouso e mesa homónimos e bem estimáveis em Seia).
Olhei depois a subida da Álvares Cabral, onde tanto namorei, e, para o fundo, com a igreja de Cedofeita à vista, a descida da Sacadura Cabral (outro erro de alguns portuenses: a parte de baixo da rua, até Aníbal Cunha, tem outro nome).
Iria mesmo até ao hotel, a pé? Se e quando me apetecesse, chamava um Uber (já tinha apanhado dois, nesse dia que acabava, sempre conduzidos por mulheres!) Até ver, ia andando.
Cedofeita, essa, estava quase deserta. O alfarrabista desapareceu, o espaço do Café Bissau está irreconhecível. Ninguém andava na “minha” Torrinha, idem nos Bragas, o mesmo no Breyner e na “minha” Miguel Bombarda (digo “minhas” porque vivi nas duas). Admirável era ver que passavam mulheres jovens, sozinhas, àquela hora.
Carlos Alberto mantinha grande animação e soava um “restolho” saudável dos lados do Piolho. Passei pela porta do Progresso, de onde parece que já saiu o nome. Meti por Sá de Noronha e desci os Clérigos até à Praça, observando, no caminho, a Galeria de Paris já cheia de gente. A vibrante noite do Porto está a regressar, e ainda bem! Maldita pandemia!
Deu-me coragem para subir a Rua 31 de Janeiro (intimamente, sempre lhe chamei Santo António, embora sabendo que foi a ditadura que a crismou com o nome do santo lisboeta, tentando apagar a memória dos heróis de 1891). O declive não ajudava, mas o meu “novo” joelho sim! Irreconhecível, por ali, está a antiga Bertrand. Intocado, felizmente, o belíssimo edifício da Caixa Geral de Depósitos. Mas já não consegui descortinar o Morgado (a cuja porta passei horas, à espera de compras de moda feminina) e o Mercado Filatélico (quando isso me interessava imenso).
(Uma nota, para que não restem equívocos: que não se presuma por aqui a menor nostalgia! O Porto está muito diferente do que o conheci, mas para bem melhor! Era uma cidade cinzenta, fechada, paroquial. Hoje é uma urbe viva, cosmopolita, com muito mais graça. Recordar o passado é apenas uma forma de sublinhar o que a cidade mudou, para diferente, felizmente).
Na Batalha, olhei, como sempre me não canso, a belíssima igreja de Santo Ildefonso, bem iluminada. Segui pela rua com o mesmo nome até aos Poveiros, pelas traseiras do clássico Café Santiago, até à zona onde ficava o Transmontano (onde, em tempos, acabei muitas noites, mas cujo edifício já não identifiquei). Passei depois a São Lázaro (onde foi um “clássico” geracional observar a saída das “pequenas” do Esperança) e segui pela Rodrigues de Freitas até ao início da Rua do Heroísmo, onde fica o Museu Militar e consta que vai haver um Museu da Resistência (espero bem que ainda antes do museu ao ditadorzeco de Santa Comba).
Logo no dia em que a máscara deixou de ser obrigatória, achei estranho encontrar com ela, uma de cada lado da rua, duas figuras, cosidas com as paredes, prestando-me “guarda de honra”, no início do Heroísmo. O meu hotel estava a 100 metros, mas esses iam ser, afinal, os 100 metros essenciais do meu percurso…
Displicente e propositadamente, parei e dei-me ao luxo de fotografar, com calma, o Museu Militar, ouvindo então de um deles: “Não se pode fotografar isso, é militar!”
Avancei, com assumida “autoridade”, respondendo, sem os olhar: “Eu posso! Sou inspetor da Judiciária!” E fui andando, rua adiante, sem trânsito, sempre pelo meio da via. No instante (obrigado, Francisco José Viegas) tinha-me valido a memória de saber que, muito perto dali, na Rua do Barão de Nova Sintra, “vivia” Jaime Ramos, o “inspetor da Judite”, dos policiais da Invicta. Meu “colega”, está bem de ver! Isso fez-me ganhar uns preciosos segundos. O hotel estava já quase ali, mas eu sabia que ainda ia ser necessário tocar à campainha e esperar. Um pouco adiante, havia uma esquadra da PSP, mas podia estar “fechada”, sei lá! Um dos figurões, pelo passeio, ia-me acompanhando, mandando umas bocas. Parei, enfrentei-o e, a alguma distância, fotografei-o com o iPhone e disse, alto: “O 112 já vem aí”. O tipo estacou, ter-se-á assustado e, num tom apressado, caminhou de volta para o início da rua. Aproveitei para entrar no hotel, onde vim beber uma cerveja, no final da qual estou a relatar-lhes isto.
Boa noite!
17 comentários:
Caro Embaixador,
Incluo no meu "Jornal diário", desde há década e meia, uma página com estas suas "coisas", que leio com prazer. (E, já agora, não sou contabilizado no número de acessos porque, em vez de ir ao blogue, respigo os conteúdos através de um agregador de RSS...)
Gosto especialmente das crónicas do Porto, Viana e Vila Real, da vida de Furriel e dos eventos no "25 de Abril", da vida em Angola e de passar pelos bastidores da vida de um Embaixador.
Desta vez vez diverti-me, acompanhando-o nesta caminhada pelo Porto, por ruas que tantas vezes calcorreei, há umas décadas, quando também andei pelos Bragas a divertir-me e a aprender Eletrotecnia. Ao contrário de V. Senhoria, eu também me diverti para tirar bom aproveitamento nos 5 anos do Curso, em que acompanhei, com prazer, por vezes logo pelas 8 horas da manhã (imagine!), as lições de Mestres como, por exemplo, o Prof. Grilo a expor "Teoria do Sinal"...
Nesta caminhada, também não encontrei o "Artur da Figueiroa", porque já nos deixou há meia dúzia de anos. A própria "tasca" deixou de ter a "mística estudantil", poucos tempo depois do Artur a "passar", em finais dos anos 70.
Logo de seguida, quando olhei para a Igreja de Cedofeita, na esquina da antiga Faculdade de Farmácia, perdi-me e fui parar a Aníbal Cunha. Sem pegar no Google Maps, percorri a rua até ao cruzamento da Torrinha, entrei na Boa-Hora, passei pelo CDUP e só depois cheguei ao Rosário.
Desagrada-me saber que, depois das 23 horas, já não dá para se passar para além dos Poveiros, sem ter um iPhone ligado ao 112... e espero poder divertir-me mais uns anos valentes a ler, todos os dias, estas suas "coisas".
-- jlopes
Estimado Embaixador.
Que magnífico roteiro.
na minha próxima viagem à Inbicta já nem preciso do GPS.
Abraço
S. Almasqué
o Porto é uma cidade admirável !
Pela presença de espírito que o Francisco demonstrou, e pela grande caminhada que fez (da Boavista a Campanhã ainda são uns três ou quatro quilómetros), vejo que, apesar de ter estado a jantar, não ficou tão tocado pelo vinho como o Paulo Rangel num célebre vídeo que circula na internet! Parabéns Francisco!
Caro Embaixador.
Como Portuense é uma autêntica delícia ler os seus textos e constatar o seu primoroso conhecimento sobre a cidade do Porto.
Quanto ao seu potencial percalço poderia ter optado por interpelar o seu "acompanhante" com o seguinte:
"Oh morcon!!! Bê lá se queres levar duas galhetas, qua'té ficas a ber istrelas, carago!".
Rapidamente seria identificado como natural da zona e não mais o importunariam.
Um abraço
Muito bem observado o pormenor do nome das ruas, erro em que caem muitos portuenses, a mim próprio chamaram a atenção que Sacadura Cabral e Álvares Cabral não são a mesma rua e não foi assim há tanto tempo.
Eu provavelmente teria atalhado pela travessa de Cedofeita, caminhado em direção ao Largo de Montpellier, descido até à Igreja da Trindade, subido Fernandes Tomás, virado em Ferreira Cardoso e continuado pelo Heroísmo. Não sei se é mais perto, mas custa menos :), desce-se menos e também se sobe menos... Claro, assim não se passa pela Baixa...
E Luís Lavoura, tem razão, esse percurso representa uma distância de seguramente uns quatro quilómetros. Só que a referência ao vídeo de Paulo Rangel é de muito mau gosto, sobretudo tendo em conta as circunstâncias em que o dito vídeo apareceu...
Caro Embaixador,
Nos nossos tempos da FEUP íamos frequentemente almoçar à Adega do Figueiroa, mais simpática do que a cantina no velhinho Almeida Garrett e não muito mais cara. O pagamento era efetuado no balcão, altura em que o dono aproveitava para a pergunta da praxe, querendo saber se tínhamos comido salada: "alface, pepinos ou tomates"? E em que nós, em 5 anos, nunca falhámos na resposta, que mencionava invariavelmente a não ingestão dos dois primeiros e a posse orgulhosa dos últimos...
Obrigado por nos ajudar a recordar esses tempos!
Abraço.
Vivi no Porto até aos 10 anos e revisitei-o profissionalmente muitas vezes, gosto de ver trajectos na cidade. Neste caso pedi ao Google Maps que me indicasse um caminho pedestre entre o "Convívio" e a Rua do Heroísmo e a solução mais curta proposta era de 3,9 km em 51 minutos.
Claro que os caminhos que tomou correspondiam à disposição do momento e o percurso que tentei que fosse aproximadamente fiel à sua descrição deu no google maps 4,6km em 59 minutos conforme se constata aqui:
https://drive.google.com/file/d/1YSiDvgotrWMq8XpyqL3pkC0igcti-0r7/view?usp=sharing
Se demorou um pouco mais poderá atribuir o pequeno atraso à inclinação da rua 31 de Janeiro.
tudo o que esta dito acima esta muito bem, ja nao vou ao Porto ha muitos anos mas para mim, quando penso nessa cidade vem-me a lembranca o que em Lisboa diziamos: "a melhor coisa do Porto e o foguete para Lisboa"!
maitemachado59
Tenho pena de conhecer muito pouco da cidade do Porto. Viajei quase sempre em trabalho e via a cidade ao longe. Fui uma ou duas vezes almoçar á Ribeira e dei um pequeno cruzeiro no Douro com uma visita as caves da Sandeman. Ofereceram-me uma garrafa de vinho do Porto.:))
Quando falam sobre o Porto, sai diarreia.
Maite, o foguete já não existe e acredite, há coisas bem melhores no Porto que o serviço medíocre de comboios que a CP oferece. Basta vir e ver por si...
O Porto é uma naçaum! Conheço esses caminhos de olhos fechados, há uns anos bem que tive que correr para me safar de situação idêntica à sua, no meu caso na Rua da Constituição, duas da madrugada, após uma noite de farra num "clube" perto da rotunda da Boavista. De resto, quando era moço e não tinha carta, fazia a marginal à noite e com frequência do Castelo do Queijo até ao Infante e nunca fui perturbado por guardas de honra não solicitadas. :)
Sr.Embaixador segundo me confirmou um grande amigo meu que vive no Porto há mais de setenta anos, ele não faria melhor esse passeio pedestre e que ainda o faz mas... durante o dia :)
Sr. Embaixador, como possuidora de vários blogues com moderação de comentários como é este o caso, quando ao moderar me dou conta de algum comentário não adequado deito-o para o "cesto dos papéis".
outra coisa que tenho contra os tripeiros:
Em lisboa (naquele tempo, bem entendido) via-se um amigo: "Bonita gravata" "Obrigado, e do Lourenco & Santos".
No Porto: "custou um conto de reis".
Trabalham muito, e verdade, ganham bem e gostam de o mostrar. Um tanto de novo rico, nao?
maitemachado59
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