1999, Budapeste, onde Jorge Sampaio cumpria uma visita de Estado à Hungria, a convite do seu homólogo Árpád Göncz.
Por esses dias, estavam iminentes os primeiros bombardeamentos da NATO sobre as tropas sérvias no Kosovo. A guerra ia explodir, em breve, ali ao lado. Os aviões iriam sobrevoar a Hungria, que ainda nesse ano iria integrar a NATO.
Num dos momentos do programa, eu havia acompanhado Jorge Sampaio a um encontro com o então primeiro-ministro Viktor Orbán, hoje presidente do país.
A conversa não foi fácil, quando, a pedido de Jorge Sampaio, fiz referência a alguns dos passos institucionais que a União Europeia exigia à Hungria, então candidata à adesão, e que esta resistia a fazer. Orbán mostrava-se frio, tenso, desagradável mesmo. Sampaio mantinha uma frieza protocolar, eu comecei a irritar-me.
A certa altura, a propósito dos anunciados bombardeamentos da NATO, Orbán falou da sua preocupação com as populações de origem húngara da Vojvodina, uma região da Sérvia. Eu disse perceber a sua inquietação, mas reagi ao seu bizarro conceito de “futuras populações NATO" com que qualificou esses sérvios, lembrando que a ditadura portuguesa tentara, sem o menor sucesso, utilizar um similar conceito extensivo para os habitantes das colónias africanas em guerra.
Jorge Sampaio sorria levemente, feliz por ter podido delegar-me uma parte menos fácil da conversa. Orbán lançou-me um olhar duro. À saída, Sampaio perguntou-me: “Reparou bem nos olhos de Orbán?”, relevando a frieza do líder húngaro. Eu tinha notado bem.
À noite, Árpád Göncz ofereceu um jantar a Sampaio no majestoso parlamento húngaro. Sabia-se que as relações entre Göncz e Orbán não eram nada fáceis, por razões de política interna, mas, igualmente, por diferenças notórias de personalidade e de história política. Por contraste com Orbán, o presidente era uma figura suave, um homem de bom senso, com uma vida difícil nos tempos comunistas, da qual, contudo, falava com a superioridade de quem já colocara uma distância entre os traumas e o presente. Resistente na II Guerra Mundial, havia estado preso durante seis anos, depois da invasão soviética de 1956.
No final do jantar, como despedida, Árpád Göncz recebeu Sampaio em “petit comité”. A amizade e confiança que criara com o presidente português levaram-no a partilhar então alguns sentimentos de inquietação que o comportamento político do seu primeiro-ministro lhe causavam. Notava-se bem a sua angústia por não poder travar o que sentia ser a deriva autoritária para a qual a Hungria caminhava. Vi Sampaio ficar muito tocado por aquela cumplicidade e confiança. Duas décadas depois, o comportamento de Orbán só tem vindo a dar razões para as preocupações de Göncz, que morreu em 2015.
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