quinta-feira, setembro 02, 2021

Mikis Theodorakis


Um dia de novembro de 1977, numa escala no aeroporto de Benghazi, na Líbia de Kadhafi, o avião em que eu seguia, na rota de Tripoli para Atenas, ficou estacionado por quase uma hora. Ninguém sabia o que se passava. 

Um tanto inconscientemente, eu tinha aproveitado para fotografar o que me pareceu serem uns caças Mig, que divisei pela escotilha do avião da Olympic Airways, numa zona militar do aeroporto. Não me sossegou o modo como o pessoal de cabine tinha olhado para aquela minha inusitada atividade lúdica. Por isso, sair dali, tão cedo quanto fosse possível, estava a ser o meu desejo íntimo.

A certa altura, tudo se precipitou. Surgiram três viaturas na pista, que pararam junto ao avião. De uma delas, saiu um homem grande, de cabelos largos, cumprimentado por quem dele vinha despedir-se. Entrou e sentou-se do outro lado da fila do avião em que eu estava, com apenas o corredor a separar-nos. 

Aquela cara… Demorei uns segundos apenas no esforço de memória facial: era Mikis Theodorakis. Olhei à volta, mas ninguém no avião dava mostras de tê-lo reconhecido, não obstante o “espetáculo” da sua entrada.

Theodorakis era um compositor genial e havia sido um resistente à ditadura dos coronéis gregos, com expressão marcante em toda a esquerda europeia. Membro do Partido Comunista Grego, tinha-lhe sido dado pelos soviéticos o Prémio Lenine.

Não sou muito dado a abordagens pessoais, mas, a certa altura do voo, mais por curiosidade do que por outra razão, decidi cumprimentá-lo, aproveitando para lhe dizer quanto a sua obra era reconhecida em Portugal, naturalmente depois do êxito do filme “Zorba, o grego”. Theodorakis era muito mais importante musicalmente do que isso, mas eu então não sabia, confesso.

Não me pareceu muito expansivo, mas foi por sua iniciativa que, sabendo-me português, me falou do 25 de Abril e do modo como os militares revolucionários portugueses tinham sido um “exemplo” para a Grécia. Só me referiu dois nomes, com evidente admiração: Otelo e Cunhal. Perguntei-lhe se conhecia José Afonso, autor da “Grândola”. Reagiu: “Ah! A “Grândola”! Claro!”, mas fiquei sem perceber se sabia algo do cantautor. A conversa, curta e banal, ficou por ali, com cada um de nós recolhido às suas leituras.

Chegado a Atenas, vi que ele tinha, de novo, um acolhimento VIP, natural para alguém que era uma cara prestigiada da nova Grécia democrática. Disse-me “Adiós!” (!) e foi-se.

Mikis Theodorakis morreu hoje. Tinha 96 anos. Tenho um pressentimento de que a nossa Isabel da Nóbrega não teria desdenhado a coincidência de partirem, com a mesma idade, neste mesmo dia.

1 comentário:

Flor disse...

Gosto imenso de ler estas histórias (vivências). Obrigada.

O futuro