quarta-feira, setembro 08, 2021

Adriano


Lembro-me muito bem da primeira aula a que assisti, tendo Adriano Moreira como professor. Foi em outubro de 1968, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (ISCSPU), de que Adriano Moreira era diretor. Caramba, foi já há 53 anos! E Adriano Moreira fez agora 99 anos.

Adriano Moreira era, à época, um nome de que muito se falava - mas sobre o qual, por razões que a conjuntura tornava óbvias, muito pouco se escrevia. Dias antes, Marcello Caetano fora nomeado pelo presidente Américo Tomaz para a chefia do governo, em substituição de Salazar, afastado por doença.

Nos conciliábulos do regime e não só, Adriano Moreira havia sido muito citado como uma possível opção, mas os equilíbrios que se refletiram na decisão do presidente da República não o favoreceram. À época, falava-se nas resistências que o seu nome suscitaria em certos círculos militares, embora outras opiniões fossem no sentido de que outras tendências castrenses desejavam vê-lo em S. Bento. A verdade é que, no saldo decisório final, Adriano Moreira ficou arredado da sucessão de Salazar, em benefício de Marcelo Caetano. E, este, logo que pôde, pela mão do ministro da Educação José Hermano Saraiva, herdado da equipa governativa que o velho ditador ainda entronizara pessoalmente no mês de agosto anterior, cuidou em afastá-lo da direção do ISCSPU, nos primeiros meses de 1969.

Para os estudantes, esta evidente conflitualidade com Caetano dava a Adriano Moreira uma auréola de alguma "oposição", que se vinha a somar à imagem vaga, que alguns "connaisseurs" espalhavam à boca pequena, dos seus tempos de jovem advogado, em que chegara a estar detido pela polícia política, pela sua ação de defesa dos interesses da família do general Godinho, cuja morte misteriosa na prisão, na decorrência de uma tentativa de golpe militar nos anos 40, fazia parte das mitilogias recorrentes da Oposição.

Não parecia, assim, estranho que o movimento estudantil dentro do ISCSPU, que se vira provocado pela "não homologação" ministerial da lista vitoriosa nas eleições desse ano para a associação académica, acabasse por se aliar taticamente a Adriano Moreira. Como membro que fui dessa direção associativa, tenho uma memória muito viva da gestão dessa "aliança", que teve em Narana Coissoró, um fiel escudeiro de Adriano, uma figura proeminente. Recordo também a dificuldade que alguns de nós tínhamos em ver a nossa ação articulada com a agenda política e pessoal de um antigo ministro de Salazar, pelo "risco" de estarmos a ser instrumentalizados por uma das fações dentro do regime.

Adriano Moreira era um professor brilhante, com uma exposição atraente, que nos gerava vontade de ir mais longe naquilo que nos transmitia. Começava as aulas em voz muito baixa, para desfazer as conversas residuais na sala. Ao falar, circulava o olhar, fixando-se, por instantes, em cada um de nós, o que dava a impressão de se nos dirigir individualmente. Como a política era, como dizem os franceses, o seu "fond de commerce", nós distinguiamo-la sempre por detrás de todos o seus comentários, onde o esquerdismo de alguns procurava descortinar tudo o que se assemelhasse a odor a heterodoxia.

Adriano - era assim que a ele nos referíamos, entre nós - tinha a rara habilidade de ir suscitando uma controlada polémica política entre os alunos. A minha antiga colega Maria João Bustorff lembrava-me, há tempos, o modo como ele estimulava debates entre mim e o António Marques Bessa, cada um de nós situado em lados bem antagónicos do espetro político, em confrontos nas aulas que sempre tinham temas do programa académico como motivo formal. Belos tempos! (Um abraço para a Maria João e para o António!)

Pouco a pouco, nessas aulas, íamos sendo introduzidos na matriz do pensamento de um homem que, um dia, Salazar escolhera, um tanto inesperadamente, para a pasta do Ultramar, na sequência da rebelião angolana de 1961, mas cujo espírito reformista o regime não conseguira acomodar e cuja frontalidade acabaria por conflituar com o poder administrativo do então governador-geral de Angola, general Venâncio Deslandes, o que levaria o chefe do governo a tomar um dia a decisão de ver-se livre, simultaneamente, dos dois.

Adriano Moreira não era um proselitista deliberado, não cuidava em endoutrinar-nos, não veiculava uma ideologia clara. Era um questionador do quotidiano, alguém que problematizava e nos obrigava a refletir. Sentiamo-lo, claramente, de um "outro lado" que não era o nosso, mas, estranhamente, a suavidade do seu estilo não provocava uma antagonização aberta. E isso, às vezes, como que nos enfurecia interiormente: nós fazíamos parte de uma geração maniqueísta e Adriano Moreira furava essa cómoda dualidade bipolar.

Com o 25 de Abril, o radicalismo saneador dentro do ISCSP (que, entretanto, perdeu o "U", como o país também perdeu o "ultramar"...) fez com que Adriano Moreira se visse obrigado a ir fazer vida no Brasil. Foi uma decisão estúpida e sem sentido, contra alguém que, não obstante as críticas que se pudessem fazer ao seu percurso político anterior, tinha tido sempre um comportamento exemplar face aos alunos e à "nossa escola" (era assim que Adriano Moreira se referia sempre ao Instituto), que nela nunca perseguira ninguém (outros o fizeram, e sei pessoalmente do que falo) e a quem o ensino universitário português - e as Ciências sociais, muito em particular - bastante deviam.

Fiquei satisfeito quando esse seu afastamento chegou ao fim e tive o prazer de lho poder dizer, cara a cara, uma noite de 1979, na Gulbenkian. E gostei muito da sua resposta: "Fico contente de ouvir isso, particularmente vindo de si".

Adriano Moreira, depois do seu regresso de Portugal, envolveu-se na política democrática, sempre de uma forma elegante, sem chicanas nem grandes polémicas. Com naturalidade, a área democrática mais conservadora foi o seu espaço de expressão cívica. Porém, fê-lo sem posteriores "travestismos", sem saltitar em conúbios oportunistas, umas vezes com a esquerda, outras vezes com direita, como aconteceu com certos cataventos da história portuguesa contemporânea. Manteve, em paralelo, uma atividade académica intensa e, pela imprensa, continuou a espalhar um pensamento em matéria de relações internacionais com uma profundidade muita rara entre nós.

Ao longo dos anos, continuei a encontrar Adriano Moreira pelas esquinas da vida, nos diversos tempos profissionais que tive, tendo com ele colaborado em várias iniciativas e dele recebendo gestos de amabilidade e simpatia, que sempre cuidei em retribuir.

Há uns anos, Adriano Moreira publicou um livro com as suas memórias. Nesse seu reencontro com o passado, e embora se possam entender as razões por que o terá feito, Adriano Moreira ficou, na minha perspetiva, bastante longe da síntese de vida que seria de esperar de uma figura com a sua estatura. Senti por ali inesperados compromissos, de uma natureza idêntica àqueles que, no passado, o levaram, algumas vezes, ao desnecessário facilitismo que foi o rodear-se de gente que não estava ao seu nível, nomeadamente no mundo académico, mas também político.

Adriano Moreira tem uma qualidade - moral, humana, política e académica - que, a meu ver, se situa bastante acima do modo como serviu algumas das conjunturas em que esteve inserido. Daí que, sendo um hoje um senador muito respeitado e prestigiado, tenha tido um destino público que ficou manifestamente aquém de um lugar na vida portuguesa que, com justiça, poderia ter sido o seu.

Parabéns ao meu professor Adriano Moreira, por estes seus magníficos 99 anos.

5 comentários:

Anónimo disse...

Excelente crónica.

Flor disse...

Excelente texto!

septuagenário disse...

Um transmontano às direitas, sempre a dar a cara e sempre presente.

Carlos Antunes disse...

Caro Embaixador Seixas da Costa
Com todo o respeito e sobre a personalidade de Adriano Moreira, enquanto interveniente da política colonial, permito-me contraditá-lo com o livro do seu colega Bernardo Futscher Pereira “Crepúsculo do Colonialismo - A Diplomacia do Estado Novo”, que não é assim tão laudatória da acção de AM como pretende fazer crer.
Quanto ao conflito com o general Venâncio Deslandes, se o espírito reformista de AM conflituou com o do então governador-geral de Angola, foi porque este compreendeu que Angola precisava de ser governada a partir do seu território e de forma independente em relação a Lisboa, ao contrário da política integracionista então defendida por AM.
É bom lembrar que Deslandes depois de resolver e controlar a situação no norte de Angola (UPA), tomando consciência do que defendiam as elites do chamado nacionalismo euro-africano (reunindo um alargado conjunto de pessoas e de grupos representativos de vários sectores da sociedade angolana, nomeadamente das associações económicas, mas também de personalidades com peso político na área do nacionalismo africano da FUA) compreendeu que Angola precisava ser governada a partir do seu território e de forma independente em relação a Lisboa, tendo em Fevereiro de 1962, numa carta dirigida a Salazar, defendido a constituição de um "governo autónomo" de Angola, no quadro de uma federação entre a Metrópole, Angola e Moçambique.
Angola viveu então dias de grande efervescência política, colocando-se até a hipótese da proclamação da independência, na qual Venâncio Deslandes foi instado a chefiar um movimento de secessão por elementos da Associação dos Naturais de Angola, convite esse recusado pelo Governador, na sequência do qual foram desencadeadas severas purgas na administração e nas Forças Armadas, afastando-se os elementos considerados mais próximos de Deslandes, o Governo-Geral demitiu-se em bloco, foram afastados os chefes locais da PIDE e do CITA e o Governador do Distrito de Luanda, por serem tidos como "homens de confiança de Deslandes”.
Quanto aos dirigentes da FUA, depois de uma audiência com Adriano Moreira em Luanda, e salvo aqueles que como António Garcia Castilho, decidiram "abraçar" a política reformista de AM, foram presos e deportados para Portugal (Fernando Falcão, Sócrates Dáskalos, etc.), tendo posteriormente, alguns deles conseguido fugir para França, onde acabaram por aderir ao movimento independentista no exílio, primeiro em Paris e depois na Argélia.

amf disse...

Sinto-me compelido a repetir o adjectivo já usado: excelente texto, excelente evocação de uma época e justo tributo a uma personalidade singular.
Parabéns .

amf

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