sexta-feira, dezembro 11, 2020

Era bom que trocássemos umas ideias


Reduzi o título deste artigo, que deveria ser “Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto”. Não que a frase seja original: é o nome de um livro de Mário de Carvalho. Lembrei-me dele, há dias, ao assistir a um “webinar” em que se analisava a política externa americana, na era pós-Trump. E por ter então sentido, com assumida sinceridade, que não me revia em muito daquilo que por ali se dizia e pensava. Mais do que isso: que não estava solidário com os pressupostos na base dos quais a discussão estava a ter lugar. Pelo que achei que era necessário falar abertamente sobre o assunto.

A nuvem negra que foi a administração Trump, que projetou uma postura egoísta e nacionalista dos EUA pelo mundo, quebrando ou criando tensões nas alianças tradicionais e, pior do que isso, reduzindo as margens de previsibilidade e estabilidade que são essenciais à relação entre os Estados, criou uma inédita “frente comum” de bom senso. Isto é, juntou todos aqueles que comungavam a leitura de que a postura do presidente americano ofendia a razoabilidade e era provocatória de interesses que mereciam ser respeitados. Ao longo dos últimos quatro anos, todos nos encontrámos, em grupos de pessoas que, à partida, tinham perspetivas diferentes do mundo, com uma rejeição muito alargada do estilo “bully” do conjuntural líder americano.

Isso acabou. Trump vai-se embora e cada um de nós regressará ao seu ponto de partida. É natural, é normal, diria mesmo que é saudável. É bom separar as águas. E, ao fazê-lo, é importante que fique claro que o fim de uma administração americana hostil e a provável chegada de outra diferente não deve fazer esquecer à Europa a sua própria autonomia estratégica.

Estivemos sempre com a América no que era essencial. Ela foi um parceiro para a nossa estabilidade e segurança. E deve continuar a sê-lo.

Mas a Guerra Fria acabou e a Europa é hoje uma coisa bem diferente. A União Europeia, se quiser ser digna desse nome, deve saber assumir uma estratégia de interesses própria, autónoma, a qual, muitas vezes, coincidirá com a dos EUA. Mas não necessariamente. A Europa, aliás, é um concorrente objetivo dos Estados Unidos em vários planos – e deve assumi-lo sem complexos. É-o no plano económico, mas também em áreas geopolíticas de concorrência de influências, como a África ou a América Latina. E, partilhando embora as mesmas preocupações de estabilidade, como é o caso das ambições nucleares do Irão, nada obriga a que olhemos as coisas da mesma forma no Médio Oriente – desde logo, na relação com Israel e na complacência face ao medievalismo prevalecente no Golfo Arábico. Ou no caso do desafio que a China representa.

Estamos e devemos continuar, quase todos os europeus, aliados na NATO. Mas a NATO, neste pós Guerra Fria, não tem de continuar a ser um heterónimo dos Estados Unidos e, em especial, não pode aparecer como uma espécie de cobertura, sem baias geográficas, para a leitura estratégica que Washington quiser fazer dos seus interesses pelo mundo, que se habituou a identificar como sendo também os dos seus aliados.

Não esqueço, quero mesmo lembrar, os riscos que uma aventura radical, titulada por uma administração democrática dos EUA, aliada a alguma irresponsabilidade europeia, fez correr a todos nós na Ucrânia, com um saldo que Kiev está hoje a pagar, com Moscovo a rir-se na Crimeia. A NATO do futuro não pode ser uma mera alavanca da liberalidade de afirmação estratégica americana. E o seu alargamento não pode servir de instrumento para aventuras.

Uma administração Biden é mais do que bem vinda, depois do trauma que Trump representou. O grande teste à sua benignidade, contudo, será o modo como souber respeitar a vontade dos seus aliados. No fundo, na forma como preservar o mundo multilateral que a própria América a todos nos ensinou a acreditar como sendo a forma mais democrática de gestão global.

10 comentários:

Joaquim de Freitas disse...

Senhor Embaixador : O Senhor disse quase tudo com outras palavras, mas não haja dúvida que criada em 1948 para se opor aos países socialistas e movimentos populares, a NATO. sob o pretexto de defender a democracia e os direitos humanos, hoje faz reinar no mundo a ordem das desigualdades dos países dominantes .

Dentro desta aliança, o imperialismo dos Estados Unidos exerce uma pressão constante sobre os seus aliados europeus para aumentarem as suas despesas militares e se comportarem como supletivos. As intervenções da NATO, são sempre mortais para os povos.

As últimas no Kosovo no Afeganistão e na Líbia, não resolveram os problemas destes países. As “democracias” implementadas são apenas fachada e as tropas da NATO. não impedem o desenvolvimento das máfias locais. O Afeganistão nunca exportou tanta droga…A NATO. tem sido, de facto, como o Senhor muito bem escreve, a ferramenta da política externa americana desde a sua criação.

A NATO. não é uma instituição . A Europa tem de ser independente dos Estados Unidos.

Anónimo disse...

A guerra fria acabou para as pessoas saudáveis mas continua na cabeça dos traumatizados que a perderam. Isto é como aquele tipo que, depois de andar em combate, passa a vida a acordar a meio da noite, aos gritos.

Ainda esta semana um dos sites do PCP publicou uma condenação aos EUA (por causa de Cuba), da autoria de um Conselho Mundial da Paz, uma coisa criada em plena guerra fria pela URSS e que fede comunismo a quilómetros. Quais as suas atuais preocupações?: as más condições de vida dos ex-guerrilheiros/ex-terroristas das FARC, as crianças Sarauis (o fascínio pela Frente Polisario), a guerra na Síria. Nenhuma referência às condições de vida dos povos "abençoados" por regimes de extrema esquerda, portanto. Todo o "wording" dos comunicados é decalcado do estilo comuna.

Na Wikipedia, continua a defesa das organizações terroristas de esquerda ou muçulmanas, através do adocicar dos termos em que são descritas e da perseguição a quem os corrija.

Nas nossas políticas, continua a radicalização ideológica, a perseguição à liberdade de expressão, o controlo das universidades e da comunicação social, o domínio da agenda mediática, etc.

Na cena internacional, vemos a Rússia a tomar o lugar da URSS e a tentar chamar a si os velhos companheiros - então forçados, agora voluntários -, do Bloco de Leste.

Os ditaduras de esquerda ou apoiadas pela Rússia de Putin (que as viúvas de vermelho engolem sem problemas), aí estão, viçosas e contando com o entusiasmado apoio de comunistas. Veja-se a recente palhaçada na Venezuela.

A guerra fria só acabará quando a democracia vingar, quando os povos da Rússia, Cuba, Venezuela, Bielorrússia poderem aceder ao estatuto de livres, soltos da prisão totalitarista. No resto do mundo também há imensos problemas, como se pode ver pela dicotomia Coreia do Sul próspera e Coreia do Norte miserável mas não se pode ir a todo o lado ao mesmo tempo.

Viva a liberdade! Vida a democracia! Abaixo as ditaduras! Abaixo o comunismo!

Luís Lavoura disse...

O Francisco olha para a administração Trump de um ponto de vista europeu (o que é compreensível: o Francisco é um europeu). Para ele, o mal que Trump fez foi ter alienado a aliança dos EUA com a Europa.
A meu ver, porém, o pior que Trump fez não foi isso. O pior que Trump fez foi ter lançado uma guerra fria contra a China. Tendo utilizado nessa guerra fria armas que os EUA nunca antes usavam, como boicotes comerciais pesadíssimos (contra a Huawei) e o domínio dos mecanismos do dólar como moeda de troca global.
Isto foi muito mais desestabilizador do mundo do que, propriamente, as questiúnculas de Trump com a Europa (tipo, em torno do NordStream2).
A Europa, de que o Francisco (compreensivelmente) tanto gosta, não é mais agora que um side show. O verdadeiro problema para o mundo está na rivalidade entre os EUA e a China que Trump promoveu.

José Figueiredo disse...

Senhor Embaixador,
Estou amplamente de acordo consigo no que diz respeito à defesa dos interesses europeus, seja em relação aos EUA, seja em relação a outros menos próximos. Concordo de todo com a necessidade de a Europa ter uma postura deferente em relação à NATO e dentro dela.

Há uma coisa que me parece hoje de todo impossível de reverter, mas não compreendo o caminho que tomou a relação com a Rússia depois da implosão da URSS. A ideia que tenho é a de ter sido um erro empurrar a Rússia para fora da Europa. Afinal a grande cultura da Rússia, na música, na literatura, nas artes, nas ciências, etc., é uma coisa comum. Não é por ter um terço da Ásia que a Rússia é menos europeia. E do ponto de vista estratégico - de segurança - não era mau termos as costas pelo menos não descobertas. Claro, a Europa tem de ter outra capacidade de afirmação estratégica, mesmo quando de boas relações com os EUA, p.e. em relação à China, ao Irão, à Turquia, etc. Ainda quanto à Rússia também me custa a compreender como pôde dispensar uma relação que do ponto vista comercial, tecnológico e, a prazo, estratégico só a poderia favorecer.

Ainda: estive 8 dias na Crimeia (15 dias na Ucrânia) em Maio de 2013, antes da confusão do fim do ano em Kviv. Na Crimeia, a ideia com que fiquei foi a de o sentimento ser russo, não apenas pró-russo. Aliás, a Crimeia foi um presente dado à Ucrânia. Claro, há ali factores históricos de longo prazo que exigem um conhecimento mais profundo.
José Figueiredo
Braga

Joaquim de Freitas disse...

Jaime Santos disse...
Verdadeiramente, não se percebe. Quer ter comentários de contas inventadas, com nomes inventados?
8 de dezembro de 2020 às 16:33
Francisco Seixas da Costa disse...
A “ Jaime Santos”. Prefiro essa fantochada (que, no entanto, facilita a identificação dos IP) a meros anónimos. Mas se o “ trend”, mesmo assim, continuar, fecha-se a “torneira” e não se fala mais nisso.
-----8 de dezembro de 2020 às 16:40
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Ah, compreendo melhor as aspas no nome do comentador, Senhor Embaixador, no seu texto de 8 de dezembro de 2020 às 16:40.
Tenho bem a impressão, ao ler o texto acima, com vibrantes vivas, que o Senhor Embaixador pensava ter ido à caça dos “corajosos” anónimos” mas só os fez mudar de pele…e que agora, com um nome, são eles que vão à caça mesmo duma inocente “Flor” que ousa mostrar-se… A nao ser que a "Flor" seja o mesmo...Neste tempo de transgénero tudo é possivel...

Ao ler este texto, parecia-me ouvir este abaixo:

"Unser Führer Adolf Hitler, Heute Nachmittag in seine Beffalstand in der Reichkanzlei, bis zum letzten Atemzuge , gegen den Bolchevismus kämpfend für Deutschland gefallen ist".
O que quer dizer: "O nosso Führer Adolf Hitler, que lutou até ao último suspiro contra o bolchevismo, caiu para a Alemanha esta tarde no seu bunker na chancelaria.
Versão oficial, dada pela rádio Hamburgo em 1945.
Saudosismo, saudosismo, quando tu estás nas tripas…

Joaquim de Freitas disse...

“A guerra fria só acabará quando a democracia vingar, quando os povos da Rússia, Cuba, Venezuela, Bielorrússia” eis o que leio acima...
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Francamente, vir falar de democracia em Cuba, na Venezuela, na Rússia sem mencionar os EUA!

A farsa 'Trump Won' já não tem piada. Os republicanos estão agora a argumentar seriamente que as eleições só são legítimas quando o seu lado ganha.

A "piada" é a luta contínua do Presidente Trump para derrubar os resultados das eleições e manter-se no poder contra os desejos da maioria dos americanos, incluindo aqueles em estados suficientes para igualar muito mais do que os 270 votos eleitorais necessários para ganhar a Casa Branca.

Infelizmente para Trump, e felizmente para o país, não conseguiu nada. Os militares também deixaram claro qual é a sua posição. "Não fazemos um juramento a um rei ou a uma rainha, a um tirano ou a um ditador. Não fazemos um juramento a um indivíduo", disse o general Mark A. Milley, presidente do Estado Maior Conjunto, num discurso pouco depois das eleições.

Quem vê a derrota no seu rosto como ilegítima, um produto de fraude inventado por opositores que não merecem deter o poder. Que é totalmente o partido do governo minoritário, comprometido com a ideia de que um voto não conta se não for para os seus candidatos, e que se a democracia não servir os seus interesses partidários e ideológicos, então "tant pis" para a democracia!
Nada disto é novo — há toda uma tradição de pensamento reaccionário e contra-a maioria na política americana de que o movimento conservador é herdeiro — mas é a primeira vez desde a década de 1850 que estas ideias quase capturaram todo um partido político.

Quem vê a derrota no seu rosto como ilegítima, um produto de fraude inventado por opositores que não merecem deter o poder. Que é totalmente o partido do governo minoritário, comprometido com a ideia de que um voto não conta se não for para os seus candidatos, e que se a democracia não servir os seus interesses partidários e ideológicos, então "tant pis" para a democracia.

Nada disto é novo — há toda uma tradição de pensamento reaccionário e contra-maioria na política americana de que o movimento conservador é herdeiro — mas é a primeira vez desde a década de 1850 que estas ideias quase capturaram todo um partido político.

Vão ser precisos muitos actos corajosos de Biden, na boa direcção, para fazer esquecer estas eleições ,afim de poder falar de novo de democracia naquele país e no mundo.

Francisco Tavares disse...

Caro embaixador, é verdade que, para já, o mundo viu-se livre de um anómalo (para dizer o mínimo) presidente dos EUA, ainda que até 20 de janeiro parece que continuará a fazer das suas. No entanto, haverá que aguardar para ver o que significa um presidente Biden, que diferenças fundamentais vai trazer. E não posso deixar de relembrar, a propósito de aventuras radicais o bombardeamento em 1999 da então Jugoslávia pela NATO comandada pelo sr. Clinton (democrata), o bombardeamento da Líbia (também por interpostos franceses e ingleses) em 2011 sob o sr. Obama (e a senhora Clinton) (ambos democratas), tudo ações turtuosas em nome da suposta democracia. Qual o rasto destas aventuras radicais? E porque não relembrar uma aventura radical, como o assassinato de Bin Laden em 2011 (uma verdadeira cowboyada, ou seja, fazer "justiça" pelas próprias mãos) sob o sr. Obama (democrata). E já para não falar da Síria, do Iémen....
abr do Francisco Tavares

Joaquim de Freitas disse...

"O verdadeiro problema para o mundo está na rivalidade entre os EUA e a China que Trump promoveu." escreve o Sr.Lavoura.

Nao: A verdade é que a liderança republicana está a seguir os desejos fantásticos dos seus eleitores em vez do contrário. A cauda abana mesmo o cão. Este é o segundo presidente democrata que Trump está a tentar chamar de ilegítimo: Obama baseado em certidão de nascimento mentiras e Biden baseado em teorias da conspiração e alegações infundadas de fraude. A democracia depende disso.E os EUA à deriva, sao o verdadeiro perigo para o Mundo.

Unknown disse...

Senhor embaixador
Cá estou eu, teimoso. Mas enquanto um embaixador do meu país escrever "América" (a parte pelo todo) em vez de escrever "Estados Unidos da América" (pois creio que sabe que na América há mais alguns países...) eu continuarei a verrinar a sua paciência (de embaixador do meu país. Correndo, claro, o claro risco de que o senhor embaixador não publique isto.
MB

Anónimo disse...

O serviço de saúde em França inclui consultas de psiquiatria? É que bem jeito faziam a um tipo que por aqui anda.

Os amigos maluquinhos da Ucrânia

Chegou-me há dias um documento, assinado por algumas personagens de países do Leste da Europa em que, entre outras coisas, se defende isto: ...