quinta-feira, dezembro 03, 2020

Giscard e a Europa

Morreu ontem o antigo presidente francês, Giscard d'Estaing.

A Europa comunitária é uma ideia que tem a França no posto de comando. A Alemanha foi essencial para dar músculo económico ao projeto, mas o vetor político assentou sempre em Paris. Escrevi "no comando" porque a França nunca se viu numa outra posição. Desde De Gaulle, a França só aceita uma Europa traduzida na sua língua, sentindo-se alheia a tudo o que assim não for.

Tive o número suficiente de "accrochages" com os meus colegas franceses, quando andei pelo governo, para saber, de ciência certa, que há uma política francesa para a Europa - o que, nem sempre, é sinónimo de uma política europeia da França - que é relativamente independente de que estiver no poder, à esquerda ou à direita. Com os meus amigos Michel Barnier, um orgulhoso gaullista, ou Pierre Moscovici, um socialista "moderno", tive confrontos abertos nos quais senti, às vezes, que eles estiveram à beira de me não perdoarem a minha franqueza. De outras vezes, tive a embaixada francesa em Lisboa a queixar-se nas Necessidades disso mesmo.

Nos quatro anos que passei na embaixada em Paris, tive oportunidade de rever o muito que tinha aprendido, desde a adolescência, sobre a sociedade política francesa. No essencial, confirmei o que julgava saber sobre o modo como a França olha a Europa, como se coloca nela, o que dela quer. Para dizer as coisas em poucas palavras: a França percebe que precisa da Europa para se afirmar no mundo. Por essa razão, alguns políticos franceses estiveram por vezes disponíveis para diluir, num projeto europeu mais "avançado", parte do seu poder nacional, na certeza que o iriam recuperar nesse quadro mais integrado. Isso, porém, até hoje, nunca aconteceu.

Mitterrand, com Maastricht e a moeda única, ficou na soleira dessa audácia. Macron parece ter hoje a consciência de que seria uma opção tentar ir por esse caminho. Mas só Giscard d'Estaing, já depois de sair do Eliseu, revelou rasgo para tentar dar esse mesmo salto em frente.

Em 2002, Giscard d'Estaing presidiu à Convenção sobre o Futuro da Europa, da qual saiu o projeto de Tratado Constitucional Europeu, ideia que o referendo negativo holandês veio a condenar ao insucesso. Parte dessas propostas, mas não as essenciais, ressurgiriam no Tratado de Lisboa, o qual, na minha (muito negativa) opinião, ficou com o pior e recusou o melhor do projeto original.

Tenho tentado lembrar-me, sem êxito, por que diabo, algures no primeiro semestre de 2002, vim a estar presente numa sessão em Nova Iorque onde Giscard d'Estaing falou sobre a Convenção a que presidia. Eu era embaixador na ONU e só por eurofilia militante ali devo ter ido parar. E o que terá levado Giscard a Nova Iorque?

Tendo ao lado o vice-presidente do exercício, o antigo primeiro-ministro italiano Giuliano Amato, Giscard d'Estaing explicou, no seu bom inglês, o que pretendia fazer sair da Convenção.

No final da apresentação, houve algumas perguntas e uma delas foi minha. 

Questionei Giscard sobre se os representantes dos governos dos então Quinze, que estariam presentes no exercício, iriam ter, no final, algum voto qualificado, isto é, se a sua luz verde seria necessária para o processo poder avançar. 

Giscard como que se abespinhou e perguntou por que razão eu entendia que isso seria necessário. Respondi-lhe uma coisa deste género: "Porque os governos é que foram eleitos, porque são eles quem tem legitimidade política, porque são quem responde perante os cidadãos dos respetivos países e a sua anuência, como aconteceu com as Conferências Intergovernamentais que deram origem a todos os anteriores tratados, tem sido essencial para ajudar a um "soft landing" dos projetos junto das opiniões públicas e dos parlamentos". 

Com aquele ar de desdém aristocrático que lhe era caraterístico, a que juntou um sorriso condescendente, Giscard pôs um ponto final no assunto: "Não, caro senhor, o parecer dos governos não será por mim pedido no final dos trabalhos". Ao sentar-me, não deixei de lhe enviar, em francês, um irónico "Bonne chance!".

Um ano e pouco depois, o governo português de então, sendo eu embaixador na OSCE, convidou-me a fazer parte do grupo de aconselhamento do primeiro-ministro Durão Barroso para a negociação do Tratado Constitucional. Entendi dever aceitar.

Quando li os projectos daquilo que estava em cima da mesa como matéria já em vias de ser acordada, percebi que Giscard d'Estaing tinha ido longe demais na sua ambição legislativa para a Europa. E também me dei conta - e disse-o na primeira reunião no "bunker" de S. Bento, na presença de um silencioso Barroso - que o texto já se afastava bastante dos interesses portugueses. Para algum desconforto dos presentes, e levando mais tempo do que parecia ser esperado da minha intervenção, pormenorizei, alto e bom som, as razões por que achava isso. Sem falsa modéstia, o facto de ter sido o principal negociador português dos últimos dois tratados europeus dava-me alguma autoridade para falar.

À saída, Ernâni Lopes, que tinha representado Portugal na Convenção, e que entretanto havia sido objeto de uma atitude de grande indelicadeza por parte do governo, meteu-me o braço e, com um imenso sorriso e a atitude amiga do homem de bem que era, disse-me, na voz mais baixa que o seu vozeirão permitia: "Tiveste-os no sítio!"

Para o que interessa. Giscard d'Estaing tinha-se equivocado. O seu Tratado Constitucional foi rejeitado.

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Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...