domingo, dezembro 13, 2020

O segredo


Eu tinha acabado de entrar, há poucos meses, para a universidade, num tempo em que a minha família (que não eu, confesso) vivia convencida de que, cinco anos depois, iria dali sair um engenheiro como deve ser.

O meu tio Humberto, engenheiro (como eu ia ser!), deu-me boleia de carro, numa manhã, de Vila Real para o Porto. Ainda antes de me deixar no lar universitário, levou-me a almoçar a casa do seu pai. 

Este era um homem muito simpático e delicado, com uma figura elegante e fala serena. O senhor Pedro de Carvalho era um pedagogo, autor de muitos livros editados pela Porto Editora. Casara, em Cabo Verde, com a dona Guiomar.

O meu tio Humberto era caboverdeano pelo nascimento, sentia-se um portuense dos sete costados e, em Vila Real, onde foi tudo o que alguém poderia ser, da política à vida associativa, acabou por ser um dos melhores cidadãos locais que por ali houve, como bem sabe quem disso se lembra.

Nesse dia, no fim do almoço com os seus pais e comigo, ali ao Moinho de Vento, no Porto, o meu tio perguntou-me: “Alguma vez tomaste café no Progresso?”. O Progresso era ali ao lado, ao virar da esquina. Nunca lá tinha entrado. Eu frequentava mais o Bissau, em Cedofeita, e, um pouco menos, o Piolho, ao pé dos Leões.

À minha resposta negativa, ouvi-o dizer: “Então não conheces o melhor café do mundo!”. Café de saco, claro, como, à época, era regra maioritária nos cafés do Porto, embora o café de máquina, a tal “La Cimbali”, que crismou o portuense “cimbalino”, estivesse já a fazer, nessa segunda metade dos anos 60, a sua entrada triunfal no mundo dos cafés. Constava, então, que o melhor “cimbalino” era servido no Montarroio, na baixa da cidade.

E lá fomos os três (nesse tempo, as senhoras não iam aos cafés) ao Progresso, depois do almoço, beber “o melhor café do mundo”.

A casa hoje desapareceu e a pandemia tirou-lhe mesmo o honrado destino, que lhe estaria fadado, de ser mais um restaurante da cadeia Avillez, depois de um interregno em que por ali se vendia crepes.

Convencido ou não, nesse dia lá devo ter concordado, para contentar o meu tio, que aquele café é que era!

Mas, afinal qual era o segredo do café do Progresso? Ao que se dizia, mas isso nunca foi confirmado, na máquina do café era diariamente colocada uma lasca de bacalhau (um “rabo de bacalhau”, era exatamente o que constava), que dava o tal toque especial à bebida. Alguém, anos depois, explicou uma coisa simples: não era o bacalhau, mas era, afinal, o sal, que comporia o sabor do café.

Por que diabo trago isto aqui? Pela simples razão de que, ao fazer hoje café em casa, numa máquina de balão que há poucas semanas adquiri, com todos os matadores a cujo luxo um reformado em pandemia se pode dar, me lembrei do Progresso e coloquei, com o café em pó, moído a preceito, uns cristais de sal. E o café saiu soberbo!

Como eu gostava, no dia de hoje, de poder discutir com o meu tio se este meu café era, ou não, melhor do que o do Progresso! Mas o andar da vida é, cada vez mais, feito de conversas que já não podemos ter.

1 comentário:

Flor disse...

Boas recordações! Falei com um amigo do Porto que também tem boas memórias da juventude no Café Progresso e sobre o "rabo de bacalhau". Além dos cristais de sal o belíssimo gosto do café de saco teria muito a ver com a mistura das origens do café.
Parece que agora quem mudou o nome para a "Casa Guedes" é para continuar.
https://www.jornaldenegocios.pt/empresas/comercio/detalhe/brasileiros-convertem-o-cafe-mais-antigo-do-porto-numa-casa-guedes

Agostinho Jardim Gonçalves

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