quarta-feira, outubro 09, 2019

O papel selado


Naquele declinar da tarde, vi Délio Machado assomar a uma das portas da Gomes, a pastelaria de Vila Real onde, a todas as horas desses dias, abancávamos em morna conspiração política.

Estávamos em outubro de 1969, há precisamente 50 anos. Desde agosto, organizávamos no distrito a candidatura oposicionista às eleições para a Assembleia Nacional.

Délio Machado era uma figura importante da luta oposicionista local, uma espécie de lugar-tenente de Otílio de Figueiredo, o médico que era a grande referência democrática na cidade. Aproximou-se da mesa e disse-me: “O dr. Otílio quer fazer uma reunião urgente connosco”. 

O trajeto era curto. O escritório da Comissão Democrática Eleitoral (CDE) de Vila Real ficava num terceiro andar (na imagem), que nos fora cedido gratuitamente, no mesmo prédio da pastelaria. 

À subida da escada (o elevador nunca funcionou), a cada patamar, lá os víamos em frente, encostados “casualmente” à parede da Brasileira - os pides ou os bufos que informavam os pides de quem entrava no antro oposicionista. Nós sabíamos quem eles eram, eles sabiam que nós sabíamos quem eles eram e tudo assim funcionava naquela pequena e abafada cidade de província.

Entrámos na sala, onde Otílio de Figueiredo nos aguardava. Ficámos aí umas seis pessoas, basicamente o “núcleo duro” da CDE. Havia mais uma presença, um velho oposicionista de uma vila próxima, que tratava por tu Otílio de Figueiredo, gente de toda a confiança, daqueles que já tinham “feito o Delgado”, um ou outro mesmo “o Norton”. Pessoas que, sem falta, reapareciam quando era necessário reapelar às hostes contra o regime.

Otílio de Figueiredo deu-nos conta de que Sottomayor Cardia, da estrutura da CDE de Lisboa, nos perguntava se podíamos dar o nosso apoio a uma determinada posição comum, que se pretendia tão alargada nacionalmente quanto possível. A delicadeza do tema não tornava a decisão fácil.

A discussão começou. A certo passo, o velho democrata, um tanto inopinadamente, dado que não tinha funções na organização, decidiu intervir. Fê-lo um pouco fora do tom geral da conversa e, essencialmente, sem o menor sentido construtivo para a decisão que tinhamos de tomar, com relativa urgência. Espraiou-se em considerações, e nunca mais se calava. Nós olhávamos para os relógios, com o fim da tarde e a hora limite para a resposta a aproximarem-se.

Vi Otílio de Figueiredo começar a perder a paciência, a ficar nervoso, em silêncio. Sabedores da relação entre os dois, nenhum de nós ousava interromper a litania do velho democrata.

Num certo momento, Otílio olhou fixamente para ele, com ar sério, e perguntou-lhe: “Olha lá! Tu sabes a que horas fecha o Bragança?”. O Bragança era uma tabacaria que se via ao longe, a umas dezenas de metros. O outro, surpreendido, respondeu, sem certeza: “Lá para as sete e meia, creio eu”.

“Ainda temos algum tempo! Tu fazias-nos era um grande favor se, enquanto nós resolvemos aqui este assunto, fosses ali ao Bragança comprar já meia folha de papel selado para um requerimento urgente, de que já me tinha esquecido!”. O homem, sentindo-se útil, respondeu “Vou já!”, levantou-se e, prestimoso, saiu pela porta fora. Deve ter deduzido que íamos requerer algo importante ao Governador Civil.

Fechada a porta, saído o homem do “reviralho”, Délio Machado, interpretando a nossa curiosidade coletiva, inquiriu de Otílio de Figueiredo: “O requerimento é sobre quê?” O bigode do dr. Otílio sorriu, ao responder: “Sobre nada! Não há requerimento nenhum. Mas assim ganhamos algum tempo para tomar uma decisão, sem a presença daquele chato!”.

Terá sido nesse momento que eu percebi, realmente, que o velho “reviralhismo” deixara de ter a menor importância na luta da oposição à ditadura.

2 comentários:

Luís Lavoura disse...

História curiosa.
Faz-me lembrar aquela prática portuguesa de, quando num debate público é dada a voz à assembleia dos presentes, para que quem o queira possa fazer algumas curtas perguntas ou curtos comentários à mesa, haver invariavelmente um ou muitos indivíduos que aproveitam a ocasião para falar, falar, falar, expôr, perguntar, desabafar, voltar a expôr e repetir a pergunta, sem que nunca mais ninguém os cale.

Anónimo disse...

Lembrou me a velha expressão EMBRULHAR EM MEIA FOLHA DE PAPEL SELADO QG

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