quarta-feira, outubro 02, 2019

Chirac e os seus pares


A morte de Jacques Chirac, e um sentimento de perda que, com ela, atravessou a França, suscita uma reflexão sobre a relação desta com os seus presidentes, desde o fim do regime parlamentar. 

Charles de Gaulle, um militar que havia sido herói político de uma guerra que a França perdeu, mas que ele teve artes de transformar em vencedora, viria mais tarde a ser o recurso de excelência de um país a que o processo descolonizador havia induzido graves tensões institucionais. O seu papel de “pai da pátria” trouxe consigo um carisma que nunca mais se repetiria.

Saído De Gaulle, a elite política e económica francesa sustentou-se nas rédeas do país por mais 12 anos, nos mandatos de Georges Pompidou e de Giscard d’Estaing. Ambos brilhantes, o primeiro um intelectual oriundo da banca, o segundo um financista de perfil orleanista, partilhavam, contudo, uma escassa ligação afetiva à França profunda. 

A esquerda conseguiu romper a hegemonia conservadora, elegendo um “vieux routier” político de perfil cínico e majestático. François Mitterrand pilotou muito bem a França no tempo complexo do fim da Guerra Fria, foi protagonista central dos novos equilíbrios europeus, adaptando-se bem a uma V República que antes tinha como inimigo jurado. Depois de De Gaulle, consagrar-se-ia como o grande presidente da França.

E surgiu Chirac. Nem muito brilhante nem muito intelectual, era imensamente francês na sua ligação ao “terroir” e aos seus agricultores. Enobreceu-se na reconciliação histórica com algum passado da França, foi a barreira da decência contra o pai Le Pen, esteve no sítio certo face aos americanos, isto é, ao seu lado depois do 11 de setembro e contra eles na agressão ao Iraque. Pelo caminho, envolveu-se em pecadilhos financeiros que parece fazerem parte do ADN político da França.

As subsequentes fragilidades dos mandatos de Nicolas Sarkozy e de François Hollande também justificam, para muitos, alguma saudade de Chirac. Sarkozy foi um “Nixon à francesa”, inteligente, mas com a ambição a gerir-lhe os princípios. Hollande foi apenas um “bom tipo”, um falhado herdeiro de Mitterrand, a que, na melhor das hipóteses, a História dará um pé-de-página piedoso.

A França parece apreciar ser representada por quem, ao mesmo tempo, goste genuína e quase chauvinisticamente dos franceses, lhes transpire orgulhosa e exageradamente as qualidades e, na medida do possível, os consiga fazer sentir menos culpados pelos seus defeitos. Chirac era exatamente isso. Não tenho a certeza de que Emmanuel Macron o seja.

2 comentários:

Joaquim de Freitas disse...

O homem passou muito tempo na cama e à mesa, em comparação com o tempo que passou a governar a França.

Não deixou nada de excepcional nos dez anos que lá esteve, o que lhe valeu o cognome de “Roi Fainéant”.
Se fazia ou faziam para ele, os bons diagnósticos, como as fracturas sociais e de segurança, não as tratou em tempo e horas. E elas continuam. Muito tempo perdido.

Foi o homem da situação face a Georges Bush, no que respeita o Iraque Mas é porque o Iraque foi principalmente equipado com armamentos franceses com os "instrutores" que vão “avec”, não? E na segunda guerra, os franceses participantes foram convidados a ir em missões no deserto para que os militares dos EUA não confundam armamentos idênticos... não?
E ninguém pode esconder o “flirt” de longa data entre o "país dos direitos humanos" com o Irão ou Iraque ou ambos...

Positivo, quando, como De Gaulle, não se deixou impressionar pelos sionistas no tratamento das injustiças israelitas contra os Palestinos, procurando ajudar a autoridade Palestina, recebendo Araffat.
Ao mesmo tempo que soube reconhecer as culpas do Estado Francês contra os Judeus de França, durante a Segunda Guerra Mundial.

Mas incarnou largamente uma certa podridão da direita francesa, nos negócios de dinheiro, com financiamentos ocultos por todo o lado, nos quais os seus correligionários das diferentes versões do partido fundador e ele mesmo, vão afundar-se, que o levou a ser condenado e que leva hoje mesmo também Balladur e Sarkozy à barra do tribunal.

Os km de caçarolas que eles arrastam não podem desaparecer com um belo sorriso …

Não sei qual é a nódoa mais grave da direita, se é a história das retro comissões da vendas dos submarinos e das fragatas ao Paquistão e a Taiwan, que ele mandou anular, provocando o assassinato de sete engenheiros franceses em Karachi, ou o abjecto ataque de Sarkozy, aliado a Hillary Clinton e à NATO, contra Khedafi e a sua eliminação como um animal. O espectro dos milhões de dólares do financiamento da sua campanha eleitoral paira sobre o próximo julgamento de Sarkozy.

Enfim, Jacques Chirac, resta o nucléocrata lançador de bomba na Polinésia, recomeçando as experiências nucleares em Muroroa, na Polinésia Francesa.

É a função que faz o órgão; a partir do momento em que um ambicioso, sedutor, entra num governo bastante imperialista, é necessário matar indirectamente ou não milhares de pessoas em países terceiros para manter o "padrão não-negociável de vida" deste país imperialista.

É preciso talento, é verdade, saber mentir e trair (belos princípios de 1789) com o máximo de lata possível; o campeão francês torna-se regularmente Presidente da República.

Anónimo disse...

Eu acho que é mais ou menos consensual em França que o período mais feliz dos franceses, mais tranquilo e de mais progresso, foi com o Pompidou. Les années Pompidou. Curiosamente, ou talvez não, fora de França o seu nome é ofuscado pelo que o precederam e pelos que lhe sucederam.

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