quarta-feira, outubro 30, 2019

Os factos


Perguntado um dia sobre aquilo que, como primeiro-ministro, mais temia, o político britânico Harold Macmillan cunhou uma frase que ficou célebre: "Events, dear boy, events!". Quero crer que António Costa não deve pensar algo de muito diferente, depois de um mandato em que foram precisamente factos inesperados que vieram perturbar o curso da sua governação e os frutos, em termos de reforço político, que dela esperava colher, para um mandato seguinte mais sereno e menos dependente.

Como a vida é sempre muito mais imaginativa do que os homens, há uma imensidão do futuro que não se consegue prever: ninguém esperava a violência dos fogos de 2017 ou mesmo a patética incompetência de Tancos. Mas é evidente que, em ambos os casos, foi a falta de prevenção adequada que acabou por dar àqueles factos as consequências graves que tiveram.

Se há um efeito negativo sobre a imagem do Estado que vem a acentuar-se nas últimas décadas esse é a ideia, que está instalada, de que a rede de segurança coletiva que esse mesmo Estado tem obrigação de proporcionar está muito fragilizada. Em muitos cidadãos prevalece a ideia de que o Estado corre atrás dos problemas, não os antecipa, não consegue preveni-los.

É descredibilizante para a democracia ver os governantes, em permanência, a tentarem reagir ao que corre mal, em lugar de revelarem medidas para evitar, a montante, que esse mal possa emergir. Isto tanto é válido para as urgências dos hospitais como para as filas nas Lojas do Cidadão. Ver políticos a tentarem colocar um “penso rápido” nos problemas que não souberam prever, surgindo com ar determinado nos telejornais, resulta num retrato irritante do país oficial.

Salazar dizia que “os portugueses gostam de viver habitualmente”. Salvo alguns inconscientes ou excitados, todos gostamos de viver de forma previsível, de sentir que o nosso quotidiano não é sujeito a disrupções, que colocam sucessivos pontos de interrogação sobre como será o dia de amanhã. A ansiedade que atravessa as sociedades contemporâneas é feita da dúvida sobre se teremos capacidade de enfrentar os riscos, reais ou imaginários, que temos perante nós. Daí os medos, a desconfiança de princípio face ao desconhecido e ao diferente, o recuo para as trincheiras identitárias.

Reconstituir a confiança e a segurança dos cidadãos é o maior desafio da política contemporânea em democracia. Conseguir criar a perceção de que a sociedade está minimamente preparada para o inesperado do futuro é a chave para o crédito da ação política.

6 comentários:

Luís Lavoura disse...

O país está fragilizado, em grande parte, devido ao declínio demográfico. O qual não é culpa de nenhum governo.
Com o declínio demográfico, há cada vez menos gente disponível para, e capaz de, trabalhar. Torna-se extremamente difícil encontrar pessoas, quer para trabalhar nas urgências hospitalares (grande parte dos médicos tem hoje, tal como grande parte da população, mais de 50 anos de idade), quer para limpar matos nas florestas, quer para atender os imigrantes nas filas do cartão de cidadão.
O declínio demográfico é uma coisa lixada. A sociedade começa a meter água por múltiplos buracos, que não consegue tapar.

Anónimo disse...


Li algures que não se deve deixar o vazio ocupar espaços da vida política ou seja vazio de projetos, de governação, de estudos de causas, ou de outras coisas
assim esse vazio será ocupado por oportunistas e outros "istas" interessados em destabilizar e fazer os seus próprios negócios
a vida será um estado de alerta constante, de trabalho, e de antecipação de acontecimentos potencialmente danosos tendo como objetivo a prevenção dos mesmos

João Cabral disse...

O declínio demográfico não é culpa de nenhum Governo? Essa é boa.

Luís Lavoura disse...

João Cabral, claro que não é culpa de nenhum governo. A prova é que já diversos governos em diversos países procuraram combater o declínio demográfico, através de diversas medidas, e todos tiveram sucesso muito limitado.

João Cabral disse...

Deve ser por isso que Portugal tem das populações mais envelhecidas da Europa. Nada que ver com Governos e com políticas socioeconómicas...

Jaime Santos disse...

D. Rumsfeld foi muito gozado por ter vindo falar dos 'unknown unknowns', mas de facto o que ele queria dizer é que há riscos que sabemos que corremos e que podemos de alguma maneira prevenir ou pelo menos mitigar as consequências e há coisas que são completamente inesperadas e em que nem sequer conseguimos pensar antes de ocorrerem.

A complexidade da vida moderna aumenta a possibilidade de tais eventos acontecerem.

O roubo de Tancos é um caso claro de um risco que sabemos que corremos e que poderíamos ter prevenido não fora sobretudo a incompetência da instituição militar (a subsequente inabilidade do Ministro só veio piorar as coisas), já a violência dos incêndios de 2017 era em larga medida imprevisível, passe embora o facto de que num território mais bem ordenado eles não teriam porventura assumido a dimensão que assumiram.

Precisamos de uma cultura de segurança que passa desde logo pelo civismo da população (veja-se o comportamento típico dos peões e condutores portugueses, por exemplo), mas eu sugeriria aos Governos que não tentassem fazer de conta que conseguem controlar tudo.

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