Foi numa sala do Altis, em Março de 1976.
Frente-a-frente, estavam delegações de Portugal e de S. Tomé e Príncipe, país recém-independente. O tema era o chamado "contencioso financeiro" e, no caso específico, os arranjos necessários para garantir a transferência dos descontos para a segurança social feitos pelos funcionários públicos portugueses, durante os últimos meses do regime colonial, que se encontravam depositados no Banco central de S. Tomé.
As conversas estavam a decorrer bem, até que um zeloso membro da nossa delegação, que estava no uso da palavra, decidiu suscitar, sem conhecimento do secretário de Estado que a chefiava, o seguinte tema: haveria cerca de 800 contos de descontos feitos pelos agentes da Direcção Geral de Segurança (novo nome dado à PIDE), a polícia política do regime derrubado no 25 de Abril. Portugal pretendia que o Governo santomense entregasse esse dinheiro.
No cômputo geral do que estava em jogo, o montante era perfeitamente irrelevante e só um espírito "picuínhas" e burocrático, sem o menor sentido diplomático, teria tido a peregrina ideia de solicitar a respectiva restituição. Tecnicamente, o problema poderia ter algum sentido, mas, politicamente, num tema tão delicado, era uma atitude completamente desastrada. E aquela era uma discussão também política.
Antes que o chefe da delegação portuguesa pudesse aperceber-se da dimensão da patetice que acabara de ser dita pelo burocrata, o seu homólogo santomense levantou-se e declarou que, perante uma atitude deste teor, que considerava como ofensiva, o seu país abandonava as conversações.
Ficámos todos em sobressalto. As relações com o novo governo santomense eram excelentes e um incidente destes era mais que escusado. A delegação de S. Tomé e Príncipe seguiu, naturalmente, o seu chefe, e levantou-se da mesa. Do lado português, ainda um pouco aturdidos, fizémos o mesmo.
Todos? Não! O governante português que dirigia a nossa delegação não só não se levantou como, para grande surpresa de quem o olhava como o possível salvador da situação, esperando que ele alcançasse rapidamente o seu homólogo santomense, que já abandonava a sala, e o convencesse a retomar o diálogo, foi-se "enterrando" na respectiva cadeira, com metade do corpo a deslizar mesmo sob a mesa das negociações. Que diabo era aquilo?!
O espectáculo era surreal e ninguém percebia o comportamento do nosso político - um homem competentíssimo, que mais tarde iria ter uma carreira destacada no Portugal democrático. A sua cara denotava embaraço e, pouco a pouco, fomo-nos dando conta de que, afinal, procurava algo debaixo da mesa.
A explicação foi dada em segundos: o nosso governante havia tirado os sapatos durante a reunião de trabalho. Com os momentos precipitados que tinham acabado de suceder, ao procurar calçá-los, terá acabado por lhes dar um pontapé e enviado ainda para mais longe, pelo que toda a sua estranha coreografia não representava senão o seu denodado esforço para se calçar, antes de ir tentar uma "démarche" diplomática. De facto, em peúgas, seria um pouco estranho estar a promover um diálogo político...
Tudo acabou em bem, os sapatos apareceram, os santomenses regressaram à mesa negocial e lá descalçámos mais essa bota...
16 comentários:
Não tenho comentário possível, porque não consigo parar de rir.
Por favor, conte mais destas.
Maria Isabel
Que cena!
E pensar que a França conseguiu impor que as ex-colónias ainda lhe pagassem indemnizações pelas infra-estruturas lá deixadas! Descolonização exemplar.
Boa noite
O episodio do sapato do Nikita foi mais bizarro...
O Gervásio Lobato escreveu Lisboa em camisa, o Senhor Embaixador escreveu A diplomacia em peúgas
Esta está o máximo.
Maria Isabel
Os adidos de embaixada costumavam assistir a negociações desse género ? E qual o vosso papel ? Mero espectador ... calculo , porque opiniões não podem dar ...
Eu estava naquela reunião, em março de 1976, como funcionário do Ministério da Cooperação, para onde fora destacado pelo MNE. Tinha, aliás, na qualidade de adido que recentemente (agosto de 1975) tomara posse, acabado de regressar de S. Tomé, onde fora sozinho, por uma semana, para (1) resolver uma greve de professores cooperantes, (2) fazer um recorte individualizado da situação das dezenas de funcionários públicos portugueses que permaneciam na ex-colónia e (3 ) ter contactos com autoridades santomenses sobre as necessidades de cooperação bilateral - fui recebido pelo primeiro-ministro e ministro da Cooperação, pela presidente da Assembleia Popular e pelos ministros da Educação e Saúde. Repito: eu era adido de embaixada com menos de sete meses de casa. Mas, descanse!, claro que não tomei a palavra na reunião que descrevi. Se tem dúvidas, vá ao anuário do MNE...
Medeiros Ferreira?
Não, não era Medeiros Ferreira.
Ora Senhor Embaixador , um adido de Embaixada recém entrado no MNE ( ou qualquer diplomata mesmo de categoria mais sénior ), só é recebido por um Primeiro Ministro e outros Ministros devido ao bom relacionamento dos colegas que estão na Embaixada , com esse governo e as démarches que fizeram antes para preparar esses encontros . Toda a gente sabe isso e não é preciso consultar o Anuário ...
Gomes Mota?
Ao Anónimo das 12:49. Não, não era Gomes Mota que, de facto era o secretário de Estado da Cooperacão à época (houve então, por uns meses, um Ministério da Cooperação, chefiado pelo Almirante Crespo)
Obrigado senhor Embaixador, na verdade, atento o tema em discussão, poderiam ser muitos outros, pelo que paro por aqui a minha curiosidade...
O Ministro dos Negócios Estrangeiros nessa época se já não era Ernesto Melo Antunes , era o Dr. Mário Soares também Primeiro Ministro ...
Ao Anónimo das 12:09. Era o VI governo provisório, era PM Pinheiro de Azevedo, era MNE Ernesto Melo Antunes, era ministro da Cooperação Vitor Crespo.
Poderia ter sido, mas porventura não foi, o famoso Solilóquio...
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