Em setembro de 1999, eu saía de um hotel, em Nova Iorque, onde participava numa Assembleia Geral da ONU, para ir jantar com membros da nossa delegação. Cruzei-me com Freitas do Amaral, que ali tinha ido para um encontro de antigos presidentes da Assembleia Geral. Constatando que ele não tinha jantar programado, convidei-o a juntar-se-nos. Foi uma bela ocasião, em que aproveitei para “puxar” pelas suas recordações dos tempos do pós-25 de abril.
A noite estava ótima, à saída desse restaurante na Madison. Viemos a conversar os dois até ao hotel e tive então a coragem de dizer a Freitas do Amaral, pessoa com quem verdadeiramente nunca tinha tido uma conversa serena a dois (mais tarde, falaríamos mais longamente, em várias outras ocasiões), que ele me tinha “pregado o maior susto político da vida”.
Eu tinha chegado a Portugal em fins de 1985, vindo da nossa embaixada em Luanda, e fiz uma imersão rápida num país político que estava num confronto crispado, nas eleições presidenciais de então. O discurso da candidatura de Freitas de Amaral, com laivos revanchistas, assustou-me bastante. Por detrás dos chapéus de palhinha e dos "loden" verde-garrafa, que marcavam a imagem dessa campanha, eu via então escondido um Portugal contra o qual, pouco mais de uma década antes, me empenhara, política e militarmente, no 25 de abril.
Algumas das caras que rodeavam Freitas do Amaral eram para mim sinistras, representavam muito daquilo que eu detestava na direita portuguesa e, claro, não me mereciam a menor confiança democrática. (Em alguns casos, estava errado, reconheço hoje). Por semanas, criei mesmo a exagerada sensação de que uma eventual chegada de Freitas a Belém poderia significar o início de um regresso ao fascismo. Por isso, a vitória final de Mário Soares (eu que até votara em Salgado Zenha, na primeira volta), acabou por ser um dos mais felizes momentos políticos da minha vida.
Nessa noite de Nova Iorque, achei que tinha o dever de contar isto a Freitas do Amaral, que sorriu e me disse: “Espero que, com o passar dos anos, tenha percebido que eu nunca fui um fascista". Ele tinha toda a razão. Com serenidade e com a distância do tempo, reconheço em Freitas do Amaral um conservador, um pouco ao estilo britânico, mas sempre e indiscutivelmente um democrata.
Para quantos, à esquerda, nunca dele gostaram, acho importante lembrar três coisas, que às gerações mais novas podem hoje parecer despiciendas.
A primeira é que foi preciso uma grande coragem para criar o CDS, no início da Revolução, como um partido que deu acolhimento, institucional e democrático, a quantos não se sentiam confortáveis na onda maioritária saída do 25 de abril. E que tinham toda a legitimidade para assim pensarem.
A segunda é que Freitas do Amaral, para surpresa de muitos, foi uma das vozes que, no Conselho de Estado, em 1974, se recusou a conceder poderes de exceção ao general Spínola, que lhe permitiriam encetar uma deriva autoritária contra o 25 de abril. Não foi o único, mas o simbolismo da sua voz foi muito importante.
Finalmente, nunca ninguém pôde imputar a Freitas do Amaral qualquer promoção dos movimentos anti-democráticos de direita radical, que espalharam ódio e bombas pelo país, nesses tempos revolucionários. De certas figuras incensadas do regime, algumas até de esquerda, não se pode dizer o mesmo.
Quero com tudo isto reiterar que não tenho hoje a menor dúvida de que Freitas do Amaral foi sempre um democrata - porque é o respeito institucional pela democracia, e só esse, o único critério que o define.
Foi, além disso, uma figura intelectual e académica de destaque, que, no cumprimento das muitas funções de Estado que lhe coube exercer ao longo destas décadas, o fez sempre com empenhamento e grande sentido de serviço público para Portugal, e isso não é menos importante.
O percurso cívico de Freitas do Amaral, as suas opções pessoais em termos de afinidades políticas conjunturais, pode ser objeto de todas as críticas e quiçá de acusações de alguma incoerência, não obstante ele tê-las sempre rejeitado.
Mas, no dia de hoje, no dia da sua morte, não tenho a menor dúvida de que, na galeria dos fundadores do regime iniciado em 1974, o seu retrato tem de figurar.
12 comentários:
Foi pena que este senhor tenha acabado na sombra, o que acontece muitas vezes aos grandes homens.Era um homem de uma grande simplicidade a quem todos(as) que passaram pele Universidade de Direito de Lisboa devem muito.Os seus manuais são um testemunho que ficará certamente por muitos anos. À parte a política, tenho-lhe um enorme respeito. Pela minha parte um grande obrigado. É sem dúvida um dia triste para o país.
O Sr. Embaixador sempre com as palavras certas.
Uma pessoa que sempre dignificou a política e que sempre esteve do lado certo dentro do seu espectro político.
Honras lhe sejam prestadas!
O senhor embaixador diz "uma eventual chegada de Freitas a Belém poderia significar o início de um regresso ao fascismo".
Não acene com o espantalho de algo que nunca existiu em Portugal e o senhor sabe-o bem.
Lido.
Despacho
" Por detrás dos chapéus de palhinha e dos "loden" verde-garrafa, que marcavam a imagem dessa campanha,....."
Não é "verde garrafa" mas sim "verde caça" pois pelo feitio dos mesmos, note-se os buracos debaixo dos braços ou sovacos, e logo se vê que eram feitos para caçar, apontando melhor a arma e não para andar pelas ruas das cidades. É oriundo da Áustria.
Mas a moda em Portugal é igual ao resto do país. Quem não usava "sapatos à manifestante", com sola de pneu, era manifestamente um duro de um fascista o qual urgia anular por todos os meios.
Era então a importância do figurino que demonstrava quem era democrata e os que não eram, de uma forma simplista revolucionária.
E foi assim nesses tempos.
Freitas do Amaral foi uma autêntica pérola da democracia portuguesa.
Em certos abrilismos foi uma pérola desperdiçada e desprezada.
Mas aí podemos dizer que foi "pérola a porcos".
«Porque, a partir de certa altura, cavalgando ambições próprias, decidiu "fazer pela vida" e iniciou um "never-ended" percurso zigzaguiante de alianças [...].»
Francisco Seixas da Costa, 13-IX-2019
https://duas-ou-tres.blogspot.com/2019/09/a-tragedia-do-cds.html
Em tempo: "never-ending" (interminável, infindável, inesgotável, inacabável, longo, extenso, ininterrupto, etc.) e "ziguezagueante". Por nada.
Parece-me uma boa definição, ‘um conservador, um pouco ao estilo britânico’. Da ala iluminada, culta e democrática, acrescente-se, o que vai escasseando no Partido Conservador e no CDS. Talvez isso, e uma certa integridade, lhe tenham trazido alguma solidão política.
Portugal perdeu um grande Senhor , não só na política , como em tantos outros aspectos . E o seu ar britânico , com o se loden ( que é austriaco e verde caça ( e não verde garrafa - que ideia usar o termo verde garrafa para o loden ... ) e aspecto bem educado , porque o era de verdade , fazia dele um homem em que os sociais democratas se reviam e acreditavam . De esquerda não tinha nada ...
Que pena para Portugal estes grandes Senhores irem desaparecendo ...
Sentidos sentimentos de pêsames à sua Família .
Ocorrem-me palavras de Miterrand : "On ne sait ce que vaut un homme qu'a la fin ."
Anónimo das 13:00
Neste caso felizmente , desde sempre todos os portugueses sabiam o que valia Diogo Freitas do Amaral .
A referência à canção de Frank Sinatra no seu último discurso , no lançamento do seu livro em julho , foi de uma grande sabedoria e deixou em todos nós uma nota inteligente de poesia , de que todos nós tanto precisamos para enfrentar o futuro sinistro que aí vem , continuando o que já existe ...
Viveu em Santo António dos Cavaleiros?
Ao AI: sim, porquê?
Enviar um comentário