Naquele ano político decisivo que foi 1980, António Ramalho Eanes deslocou-se à Noruega, numa visita de Estado, como presidente da República, retribuindo a que o rei Olavo V fizera ao nosso país, dois anos antes. Recordo que a Noruega havia sido dos países que mais tinham auxiliado, económica e tecnicamente, o novo regime democrático português.
Eu estava há um ano colocado na embaixada em Oslo, onde só havia dois diplomatas: o embaixador e eu. A montagem dessa visita foi assim um trabalho muito intenso, embora facilitado pelo espírito prático dos noruegueses.
Em Portugal, as coisas estavam a ferro e fogo, entre o presidente e o governo da Aliança Democrática (AD), presidido por Sá Carneiro, ao ponto do ministro dos Negócios Estrangeiros, Freitas do Amaral, se ter feito substituir na delegação pelo secretário de Estado, Azevedo Coutinho, e de nenhum outro membro do governo ter sido indicado para acompanhar o presidente. Muito pouco tempo depois, a AD iria lançar a candidatura de Soares Carneiro para tentar evitar a reeleição de Eanes. Sá Carneiro morreria num desastre aéreo em dezembro, Eanes seria reeleito ainda nesse mês e a AD, como projeto político, iniciava ali o seu inexorável declínio.
Era visível, nessa visita à Noruega, a tensão entre a “entourage” do presidente e o pessoal político afeto ao governo, com a nossa pequena embaixada no meio daquela contenda surda, por vezes a receber ordens contraditórias, o que nos não tornava a vida fácil.
Era visível, nessa visita à Noruega, a tensão entre a “entourage” do presidente e o pessoal político afeto ao governo, com a nossa pequena embaixada no meio daquela contenda surda, por vezes a receber ordens contraditórias, o que nos não tornava a vida fácil.
A visita, essa, correu lindamente. Entre Eanes e o rei Olavo V passava uma forte simpatia, não obstante as conversas serem sempre feitas através de intérpretes.
No último dia, já no aeroporto, toda a comitiva portuguesa tinha já embarcado no avião da TAP, ficando a aguardar Eanes e a sua mulher, que a regra mandava serem os últimos a entrar. O nosso chefe do Protocolo de Estado, Ary dos Santos, aguardava na base da escada do avião.
Na sala VIP, além do rei e dos príncipes noruegueses, Eanes e a senhora estavam acompanhados apenas por diplomatas noruegueses, pelo nosso embaixador e por mim.
Eanes estava com visível pressa. Tinha combinado fazer uma paragem em Bona, na Alemanha, para falar com Helmut Schmidt, uma iniciativa de política externa que se sabia desagradar imenso ao governo de Sá Carneiro. O presidente tinha tomado essa decisão a curto prazo, informando o governo à última da hora. Muita da tensão na delegação portuguesa, percebemos então, advinha daí.
Contudo, por uma razão que ninguém explicava, o presidente e o rei continuavam na sala VIP e o avião não arrancava. Não era, com certeza, uma questão de “slot” aéreo, porque este tipo de voos têm prioridade, em especial num aeroporto tão pouco intenso de movimento, como era o de Fornebu. Seria falha de comunicação entre os dois serviços de Protocolo? A verdade é que estava tudo parado.
Enquanto Manuela Eanes, num sofá, falava com a princesa, nora do rei, Eanes, de pé, ao lado do monarca, estava visivelmente enervado. No estranho eclipse dos intérpretes, ambos quase se limitavam a sorrir um para o outro. Nestas ocasiões, os minutos parecem muito longos - e aqueles estavam a sê-lo.
Constatando o constrangimento do nosso presidente, acerquei-me dele e disse-lhe, discretamente: “Senhor presidente, se quiser que eu traduza alguma coisa...” Como o rei falava um excelente inglês, eu podia facilitar uma interlocução, numa conversa de circunstância, por uns minutos.
O presidente olhou-me, estático e, num tom militar, mas bem compreensível em face daquele impasse que o estava a irritar, disse-me: “O que eu quero é ir-me embora!”
Não sei se Olavo V, provavelmente tão farto de esperar como Eanes, percebeu o sentido daquilo que interpretei como uma ordem. Fui ter com o chefe do Protocolo norueguês, que estava num canto a “fazer sala” com o nosso embaixador e, para espanto do meu chefe, disse-lhe que era imperioso apressar as coisas.
Como por milagre, tudo entrou em movimento. Aparentemente, estava toda a gente à espera que alguém tomasse uma iniciativa. E Eanes e a senhora lá embarcaram.
Quando o avião descolou (a regra é o pessoal da embaixada esperar para ver o avião “rodas no ar”), o meu embaixador, Cabrita Matias, lançou uma frase que eu ouviria muitas vezes durante o tempo em que com ele colaborei, sempre que algum visitante oficial português partia: “Mais uma lebre corrida!” E lá íamos à residência do embaixador beber uma taça de champanhe, com que ele sempre fazia questão de celebrar o regresso ao nosso “business as usual” na terra dos fiordes.
3 comentários:
Passado todo este tempo, ainda se chama "desastre aéreo" ao que foi um "atentado terrorista"?
Grata pela agradável e divertida leitura.
Um muito bom dia.
~~~
Não não foi um atentado terrorista
Fernando Neves
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