quinta-feira, agosto 31, 2017

Turismo

Ouvir Toni de Matos na FNAC do aeroporto de Lisboa é uma nova e curiosa sensação, neste Portugal 2017. Confesso que se fosse Quim Barreiros ou Toni Carreira, a seguir a Keith Jarrett ou Madonna, era a exatamente a mesma coisa. Já nada nos espanta e tudo espanta o estrangeiro visitante, que nos olha como o seu novo objeto etno-antropológico. O bandido do restaurante gatuno da Baixa vem já incluído no pacote de viagem de quem se prepara psicologicamente, antes de cá chegar, para ser assaltado no 28 dos Prazeres ou que é alvo preferido da "pancada" no bolso dada pelo taxista vígaro do aeroporto. Depois, com um azulejo e uma guitarra de plástico, vendem-lhe como típico o pastel de bacalhau com queijo da serra. E se alguém, no Porto, tiver a ideia de lançar um pudim abade de Priscos lardeado com tripas, aposto que também "marcha". É que, por estes dias, já vale tudo, nesta máquina registadora chamada Portugal. Dias felizes, não é, Mário Centeno?

quarta-feira, agosto 30, 2017

Mais valia...


Há quantos anos não vou à Festa do Avante! No seu início, esta "feira popular" dos comunistas portugueses, que copiava o modelo italiano do L'Unità e francês do L'Humanité, convocou a curiosidade de muita gente, muito para além dos comunistas. Havia livros e discos com desconto, arte a preços convidativos e uma oferta de gastronomia regional que, somada aos espetáculos, atraía (e julgo que ainda atrai) pessoas de várias orientações políticas.

Nos primeiros anos a seguir ao 25 de abril a novidade levou-me por lá, a uma meia dúzia de edições. Numa delas fui com o meu amigo Alfredo Magalhães Coelho, um homem cordial, divertido e com imenso sentido de humor. A certo ponto do percurso pelas tasquinhas, pedimos dois copos de vinho, talvez para "olear" duas sandwiches de panado. O "camarada" que nos serviu foi parco na quantidade do líquido, deixando uma boa parte por encher. O Alfredo indignou-se logo:

- Ó camarada. Então aqui também há exploração do homem pelo homem? Então não se enchem os copos? Sabe como se chama a diferença entre o vinho que colocou e o copo cheio?

O homem, coitado, não sabia e ficou atrapalhado. O Alfredo, forte do seu conhecimento de economia marxista, esclareceu:

- É a mais-valia, camarada. Já o grande Marx ensinava. Ora ateste aí a mais-valiazinha que está a faltar!

E lá bebemos nós o copo bem cheio, de um vinho que, afinal, era uma zurrapa. Afinal, mais valia o Alfredo não ter protestado.

Enganos felizes


O erro foi fatal: saí de Ginzo de Limia (os galegos dizem Xinzo) pela estrada errada. Pretendia, na tarde de sábado, ir para Montalegre... e perdi-me! 

Antes, tinha almoçado (muito bem!) no "Costa do Sol", em Vila Pouca de Aguiar, e, à saída, deu-me um "vaipe" de passar por Orense. A cidade, contudo, nessa tarde, estava mais "cerrada" do que o Alcázar de Toledo (não pude, assim, visitar a Tanco, a sua melhor livraria). 

Optei por ir lanchar, ao final da "siesta" espanhola, numa esplanada dessa pérola galega que é Allariz. Em seguida, fui recordar como era a estrada velha para Ginzo, que tantas vezes fiz. E foi então que meti pela direção errada. Fui dar a Bande e aí o "Portugal" que se me oferecia nas placas era já o Lindoso (!) ou a Portela do Homem... Ó diabo! Eu estava já quase no Minho!

Não empaniquei porque tinha gasolina e tempo. Optei por ir pela Portela (ainda encontrei um desvio para Pitões das Júnias, mas o meu espírito David Crockett baixa rapidamente com o sol a pôr-se).

Subi a densa encosta para a Portela do Homem, depois do vale espanhol que se vê na imagem, descendo para o Gerez ainda com luz, com uma paisagem deslumbrante. Fui ainda bem a tempo de jantar na bela varanda do "Hotel Águas do Gerês" - um serviço simples, mas "de primeira", e uma carne tão soberba como a do bife à Marrare que o "Café de S. Bento", aqui em Lisboa, me "deu" na noite de 2ª feira.

Acabado o repasto no Gerês, subi às Cerdeirinhas mas não ousei a estrada de Chaves, nem o percurso pelo Basto, que o GPS recomendava: fui de Braga pelo "défice" (perdão, pelas auto-estradas) até Vila Real, onde cheguei antes da meia-noite. 

Se, à uma e meia da tarde daquele dia, à hora da minha saída de Vila Real, alguém me tivesse sugerido o percurso que acabara de fazer, nem sei o que lhe chamaria... E, no entanto, não saberia o que iria perder.

terça-feira, agosto 29, 2017

De Angola à contracosta política


O antigo primeiro-ministro angolano, Marcolino Moco, não gostou de declarações que proferi sobre Angola e disse-o numa entrevista a "O Sol", em que cita o que eu referi à Lusa, à TSF e ao Jornal de Notícias.

Eu havia notado, à Lusa e TSF, que não me parece correto procurar comparar Angola com modelos políticos europeus ou latino-americanos, dado que o país deve ser avaliado à luz do resto de África. Repetindo o argumento ao JN, fui de opinião que o regime angolano não deve ser posto em paralelo crítico com sólidas democracias existentes noutras geografias, como a Noruega ou a Suíça, mas que, posto lado-a-lado com outros regimes africanos, como a Guiné-Equatorial ou a República Centro-Africana, é uma evidência que a Angola atual compara positivamente.

Marcelino Moco entende que o que eu escrevi me coloca "a falar sempre a favor do regime angolano" e que isso são "bitolas para baixo", tratando os angolanos como "seres inferiores" que "têm de se contentar com qualquer coisa".

Estamos aqui perante perspetivas diferentes. 

Desde logo, eu discordo de Marcolino Moco quando ele fala de "seres inferiores" a propósito de comparar Angola com outros Estados africanos. Há aqui, parece-me, alguma sobranceria assumida face a vizinhos, que não são "qualquer coisa", atitude que não fica bem a alguém que já teve fortes responsabilidades em Angola.

Além disso, eu entendo, errado ou certo, que o regime angolano, saído há 15 anos de uma sangrenta guerra civil, que se sucedeu a uma das mais traumáticas transições coloniais de toda a África, fez uma evolução importante, desde o regime de partido único de inspiração marxista-leninista para um modelo democrático, seguramente ainda muito imperfeito, mas que representa, em si mesmo, um indiscutível avanço. 

Sem ironias, esse foi um "salto" similar ao que o próprio Marcelino Moco efetuou, desde os tempos em que foi primeiro-ministro dessa República Popular de Angola. Recordo-me de como defendia então um regime assumidamente totalitário, tendo evoluído até às posições democráticas em que hoje se revê, que legitimamente assume e que o coloca em oposição aos seus antigos camaradas de ideologia. E os Estados, como Marcolino Moco deve reconhecer, são como as pessoas.

Angola é, goste-se ou não, um regime politicamente em transição, como há muitos pelo mundo - um regime que partiu do totalitarismo para uma abertura democrática. A única questão é saber se essa abertura se fez ou está a fazer de modo correto e a um ritmo razoável, ou se há uma excessiva lentidão e deficiências graves nesse processo. 

Podemos discutir isso, mas, repito, é insensato tentar aplicar a Angola uma matriz de exigência como a que se aplicaria a sólidas democracias, com muitas décadas de cultura democrática. Mais: nem só é insensato pedir isso, como é uma óbvia realidade que Angola está, infelizmente, ainda longe desses países com essa solidez democrática.

Esta minha constatação não absolve ninguém em Angola, ao contrário do que Marcelino Moco e alguns "futungólugos" lusitanos parecem julgar. É que, gostem eles ou não, ainda há em Portugal vozes independentes a olhar para a situação política angolana, que não são nem seguidistas do regime nem estão conquistados pela bondade das oposições.

segunda-feira, agosto 28, 2017

Dez anos depois

Passam hoje dez anos sobre a data do falecimento do meu pai. Quis estar em Vila Real neste dia. Sinto uma imensa serenidade ao lembrar a morte, aos 97 anos, de um homem que teve um casamento muito feliz, de mais de meio século, uma carreira profissional plenamente realizada, uma vida quase sem maleitas, em que fez grandes amigos sem criar um único inimigo, em que viajou por quase todos os lugares que quis conhecer, sem grande fortuna mas também sem problemas financeiros. Quantos me leem, pela presença frequente do meu pai em histórias que por aqui conto, já devem ter percebido a importância que ele teve na minha vida, uma vida em que tantas vezes discutimos sem nos zangarmos, em que confrontámos temperamentos que eram muito diferentes. Às vezes, ao citá-lo tanto, temo estar a cometer uma grande injustiça para com a memória da minha mãe, que desapareceu uns anos antes dele, a quem devo muito do que sou como pessoa, nos valores e até na atitude perante a vida, que muito mais se aproximava da minha. Este não é, contudo, um post nostálgico: não tenho ilusões, tenho plena consciência de que os meus pais não poderiam estar hoje comigo, em condições de eu os poder fruir. Pode parecer estranho, mas é uma grande alegria o sentimento que hoje sinto por ter tido o privilégio, como seu filho único que fui, de os ter tido como pais e de poder recordá-los assim, de uma forma serena e feliz. Para sempre.

domingo, agosto 27, 2017

Vila Real - um outro Verão quente


Corria o Verão Quente de 1975. Ao final de um desses dias, uma manifestação católica, creio que em favor da liberdade religiosa, organizada por grupos de cidadãos, mas com apoio aberto de partidos como o CDS e o PPD, iria ter lugar nas ruas de Vila Real. Noutras cidades nortenhas, este tipo de iniciativas, que se sabia estarem infiltradas pelo ELP e pelo MDLP, tinham acabado por dar origem à destruição das sedes do PCP e do MDP-CDE, nalguns casos provocando feridos e até mortos. A cidade estava, assim, sob alguma tensão.

Passei pela livraria "Setentrião" e Otílio de Figueiredo, médico prestigiado e figura grada da antiga oposição democrática à ditadura, agora próximo do MDP-CDE, revelou-me a sua preocupação: "O meu amigo, que é militar, é que poderia tentar alguma coisa junto do Regimento de Infantaria 13". Eu estava de férias em Vila Real, prestes a ser desmobilizado e a entrar para o MNE, em cujo concurso de admissão tinha sido aprovado. Na "tropa", trabalhava então ainda no SDCI, uma estrutura "esquerdista" que tratava da "intelligence" do Conselho da Revolução. A minha legitimidade institucional para intervir era nula, mas a irresponsabilidade foi superior à prudência.

Comecei por visitar os três partidos da esquerda. No PS, encontrei uma grande serenidade. Estando na linha da frente do combate anti-comunista, os socialistas, embora não formalmente envolvidos na manifestação, nada temiam do seu desenrolar. O MDP-CDE, que ocupava a casa que fora da União Nacional, perto da avenida central da cidade, era uma estrutura muito vulnerável. Detetei essa fragilidade na conversa com seus responsáveis. Fria serenidade dominava o ambiente no "centro de trabalho" do PCP, na estreita rua da Misericórdia. As pessoas com quem por lá falei, caras novas para mim, revelavam determinação e vontade de resistir a qualquer assalto. À saída, numa confissão cúmplice ou de bravata, um deles disse-me: "Temos por aí umas caçadeiras de canos cortados, para o que der e vier!"

À tarde, desloquei-me ao quartel. Falei com o tenente-coronel Barros Adão, creio que então segundo-comandante, mas que chefiava a unidade. Conhecia-o da cidade, tinha uma boa relação com os meus pais, mas foi um pouco relutante em conceder-me o encontro. De facto, eu não me "enxergava": ali estava eu, apenas alferes, a querer ser interlocutor de um oficial superior e a tentar "forçar-lhe a mão". Mas eu devia pensar que, para grandes males, grandes remédios. 

Adão não participara no 25 de abril, mas tinha sido "cooptado", pertencendo agora à ala militar conservadora. Era um homem de bem, com uma missão complicada. Fiz-lhe ver, dizendo ter sobre isso informações "seguras" de Lisboa (o que era falso!), que a probabilidade de virmos a ter atos de violência nessa noite era muito elevada, pelo que se justificava, na minha opinião, que fossem colocadas algumas forças militares nas ruas, pelo menos para proteger as sedes do PCP e do MDP-CDS. Não foi nada aberto à minha ideia, dizendo que era à PSP que competia essa segurança e que, não tendo recebido instruções superiores, nada faria no sentido daquilo que eu propunha. Sugeri-lhe então, em alternativa, que, à hora da manifestação, reforçasse os piquetes da Polícia Militar que, regularmente, se passeavam pela cidade, o que sempre funcionaria como um subliminar fator de dissuasão. Sem entusiasmo, disse que ia pensar nisso. A certo ponto, para seu visível desagrado, conclui dizendo-lhe que, depois daquela minha diligência, se acaso viessem a ocorrer incidentes graves, que uma presença militar nas ruas seguramente evitaria, ele seria, de certo modo, co-responsabilizado pelo que eventualmente viesse a acontecer.  E, num ambiente gélido, despedi-me dele e de um capitão que, silencioso, o acompanhava. Chegado a casa  dos meus pais, telefonei a um quadro superior do MFA, em Lisboa, recomendando um telefonema imediato ao tenente-coronel Adão. Nunca soube se foi feito.

Para o que importa, a manifestação realizou-se sem incidentes (lembro-me da figura de Jorge Sá Borges, e talvez Vasco Graça Moura, nas primeiras linhas), a Polícia Militar foi visível pela cidade, as sedes dos partidos não foram atacadas e as tais caçadeiras do PCP, a existirem de facto, permaneceram guardadas. Quando os manifestantes entraram na avenida Carvalho Araújo, eu estava encostado à parede do antigo Hotel Tocaio e ouvi de alguns acusações de "seu comuna!" e outras "meiguices" assim. Eu não era "comuna", mas hoje percebo melhor o sentimento de quem me dirigia o epíteto. Tudo acabou em bem.

Bela pancada!

Francisco Vale, que dirige e editora Relógio de Água, e Guilherme Valente, que orienta a Gradiva, envolveram-se numa polémica nas páginas do "Diário de Notícias". Faço um "disclaimer" pessoal: sou amigo de Vale e tive, há duas décadas, um contencioso com Valente. Mas, além do respeito que ambos me merecem, não quero opinar nesta questão.

Quero apenas dizer que fico muito satisfeito pelo facto de ver as polémicas regressarem às páginas dos jornais. Somos um país em que há uma forte tradição desses duelos em letra de forma, em especial na área da cultura, e sinto imensa falta delas. 

Ainda há dias, com uns amigos, recordava a virulência de um confronto, nos anos 70, nas páginas do "Diário de Lisboa", entre o jornalista e crítico Mário Castrim e o jornalista e escritor Artur Portela Filho. Já não sei a razão da polémica, mas recordo-me de um texto "assassino" (no "bom" sentido...) de Portela ao crítico, que envolvia as escadas do Teatro Vilaret e a tradicional bengala do crítico. E, claro, a inolvidável resposta deste último, num artigo que tinha o título, para mim até hoje insuperado em genialidade: "Ó Artur! Ó Portela! Ó Filho!"

Regressem as polémicas na imprensa! Precisamos de "bela pancada"! Isto está sem graça nenhuma!

A pasta "vermelha"


Na realidade, a pasta não era vermelha. Era preta, de couro fraco. Mas, no fundo, era "vermelha". Eu já explico.

Há escassas horas, ao sair de um jantar no Gerês, passei em frente ao edifício da GNR e veio-me à memória um episódio por ali ocorrido, há cerca de três décadas.

Estava de férias na região. Numa manhã, fazia o percurso de carro do Gerês para Vilar da Veiga quando, à minha frente, na estrada, vi caída uma pasta. Ainda pensei tratar-se de um "truque" qualquer, mas não era nada disso. A pasta devia ter saltado de uma moto ou motorizada. Eu estava cheio de pressa, não me era possível retornar ao Gerês, onde sabia que havia um posto da GNR, mas achei que tinha obrigação de guardar a pasta. Logo que pude, telefonei à GNR do Gerês, disse estar de posse da pasta e informei que, daí a umas quatro ou cinco horas, depositaria por lá o objeto.

O guarda com quem falei perguntou-me se a pasta tinha alguma coisa, se havia nela algum nome que pudesse ser referenciado. Foi então que, pela primeira vez, a abri. Devo confessar que fiquei surpreendido. Eram documentos do Partido Comunista Português, com listas de nomes por localidade e alguns textos e documentos. Decididamente, eu devia ter encontrado a pasta de algum "controleiro" couminista da região. Não referi isso ao guarda, limitando-me a indicar o nome de uma pessoa que, num documento, me pareceu ser o do dono da pasta. E fui à minha vida.

Essa vida não se processou como eu esperava e fez com que, em lugar de quatro ou cinco horas, eu tivesse demorado quase o dobro do tempo que havia previsto para entregar a pasta no posto da GNR. Só o fiz já depois do jantar.

O que eu não esperava era o ambiente hostil que me aguardava. Quando compareci com a pasta, o guarda que me atendeu quase que me insultou: "Então o senhor não tem vergonha de só agora devolver a pasta! Esteve aí um homem horas à sua espera! A pasta tem documentação da mais alta importância! Isto não fica assim! Vou chamar o meu chefe e vá-se preparando para mostrar os seus documentos!" E, sem me dar tempo para reagir, saiu, disparado, para dentro, à cata do seu graduado. 

Que estranho! Que diabo de cumplicidade teriam os GNR com o "pc" descuidado? Eu, que estava convencido de que, qual escuteiro, estava a praticar "a minha boa ação do dia", que tinha perdido o meu tempo e andado quilómetros para entregar a pasta encontrada, ia agora passar a "réu" pelo meu atraso? Era o que mais faltava! 

Pensei meio segundo. Mal o guarda virou as costas, deixei a pasta sobre o balcão e zarpei para fora do edifício. Entrei no meu carro, onde tinha ficado, à minha espera um diplomata espanhol amigo. Disse: "Vamos embora já! Temos de nos apressar!" Olhei para trás e, à porta da GNR, afloravam já duas figuras fardadas, claramente no meu encalço. Quando, com o carro em aceleração rápida, sintetizei ao amigo espanhol o que me ocorrera no posto da GNR, e tendo ele já sabido vagamente do conteúdo da pasta, deu uma gargalhada e concluiu: "Hombre! La derecha portuguesa está vengada! Ahora vas a saber lo que es ser perseguido por los rojos!"

sábado, agosto 26, 2017

Dom Pedro


Há dias, ao passar pelo Mindelo, marco da luta liberal-absolutista no século XIX, recordei-me que, precisamente na véspera, falara com amigos brasileiros sobre a mútua imagem de dom Pedro - o dom Pedro I do Brasil e o dom Pedro IV de Portugal. E na nossa diferença de perspetivas sobre a figura.

Bastou-me viver uns anos no Brasil para perceber que o modo como o autor do "grito do Ipiranga" é por lá visto contrasta, em muito, com a imagem que ele iria deixar na memória portuguesa. 

Por cá, talvez influenciados pelo dramatismo da guerra civil e pela seriedade dos retratos pintados, dom Pedro surge-nos como uma figura serena, mobilizada por ética liberal, disposto a tudo para consagrar a prevalência de uma nova ordem constitucional sobre o "antigo regime", representado este pela boçalidade política do seu irmão. 

Para o Brasil, dom Pedro é, pelo contrário, uma personalidade frenética, inconstante, furioso na sua devassidão romântica, politicamente ciclotímico, um quase agitador. Há excelente bibliografia sobre o primeiro imperador brasileiro que, sem exceção (creio), sublinha esse seu caráter.

Esta dualidade foi, para mim, algo surpreendente e muito curiosa nos seus pormenores. De certo modo, ela mostra que as figuras marcantes deixam perceções que radicam sempre no papel diferenciado desempenhado, face ao destino particular dos povos, pelos condutores de turno do comboio da História de cada um. 

Não tive coragem de contar aos meus amigos brasileiros, que tinha levado a ver as festas da Senhora da Agonia, a anedota que correu em Portugal, nos meios que se empenhavam em caçoar sobre Américo Tomás, ao tempo em que o presidente português fez uma celebrada viagem oficial ao Brasil, em 1972, para oferecer aos brasileiros os restos mortais de dom Pedro. A acidez crítica da "vox populi" atribuía a Tomás, como é sabido, uma baixa qualidade intelectual, muito por via da imagem que o velho almirante projetava no inenarrável património de discursos públicos que nos deixou. Nesta cruel apreciação, ficou então famoso o imaginário diálogo entre Gertrudes Tomás e o marido: "Américo, por que razão nós, em Portugal, dizemos dom Pedro IV e os brasileiros chamam dom Pedro I?". O almirante, a quem a lenda pública atribuía (um tanto injustamente, ao que se sabe) a tal simplicidade mental, teria respondido: "Ó mulher, é fácil. São os fusos horários diferentes..."

sexta-feira, agosto 25, 2017

Agora, Angola


A propósito de um artigo no “The New York Times”, que há dias sublinhava o facto de capitais angolanos serem hoje muito relevantes na economia portuguesa, vi por aí algumas indignações, de sentidos opostos: dos que entendiam ser tão legítimo como qualquer outro esse investimento, independentemente da origem do capital, e de quantos se escandalizavam com a condicionalidade e a dependência que esses influxos financeiros estariam a provocar na livre vontade de Portugal. 

De há muito que o tema Angola faz parte da política interna portuguesa. De um lado, estão os hagiógrafos lusos do regime angolano, os defensores da exemplaridade absoluta do modelo politico dominante nas últimas quatro décadas, os que, no final, jurarão que estas eleições em Angola, foram, como diria o outro, “tão livres como na livre Inglaterra”. Do outro, estão os tremendistas, os viúvos de Savimbi (esse conhecido “farol” da democracia), os acusadores dos desmandos da corrupção, do patrimonialismo, os que, ainda as urnas não tinham aberto, já denunciavam a falsidade do sufrágio que aí vinha.

Somos um país que, por virtude da sua constante fragilidade económica e consequente dependência externa, tem sempre uma parte importante de si e dos seus presa ao exterior. Isso faz com que Angola, com a naturalidade de comportamento de qualquer poder financeiro, tenha encontrado por cá ajudantes à representação dos respetivos interesses. No outro lado do espetro, se já não temos “pieds noirs”, temos no entanto por aí uma massa residual de enraivecidos da descolonização, com um tropismo anti-angolano que lhes embota a racionalidade. E, claro, também temos alguns neo-colonialistas de esquerda, sempre prontos a dar lições. 

Angola é um país com uma democracia mais do que imperfeita, se comparada com a Suíça ou a Noruega, mas é um “benchmark” político, se pensarmos na Guiné-Equatorial ou na República Centro-Africana. Por lá, os “maus” estão no poder e os “bons” na oposição? Essa visão maniqueísta pode sossegar consciências mas não ajuda a resolver os problemas, tanto mais que embate na realidade dos equilíbrios politicos de facto. Estar sempre a tentar colocar o Rossio no seio da Mutamba, a levantar o dedo para “ensinar” política, é um gesto revelador, à esquerda e à direita, de que Portugal ainda tem de fazer um longo caminho para se “descolonizar”.

Esperemos que, depois destas eleições, possamos vir a encontrar um novo, mais sereno e mais maduro terreno para um diálogo político entre Angola e Portugal, que respeite as instituições e salvaguarde os interesses legítimos, de parte a parte, tentando colocar as acrimónias do passado recente entre parêntesis. Já se perdeu demasiado tempo nas relações entre Portugal e Angola.

(Artigo publicado hoje no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, agosto 24, 2017

O primeiro dia da paz em Angola


Passaram mais de 15 anos sobre esse dia de fevereiro de 2002. Recordo-me que estava fora da Missão portuguesa junto da ONU, que então chefiava, quando recebi uma chamada telefónica do adido de imprensa da Missão portuguesa junto da ONU, Sebastião Coelho, a dar-me conta do anúncio da morte de Jonas Savimbi, lider da Unita. 

Savimbi, com um pequeno grupo de fiéis, andava refugiado, nos últimos meses, cada vez mais isolado, na selva profunda angolana, perseguido pelas FAPLA, as forças armadas angolanas. Caíra, por fim, numa emboscada.

Convém lembrar que, por esses tempos, a UNITA era alvo de um forte processo de isolamento no seio da comunidade internacional, por ser considerada a principal responsável pelo rompimento da ordem constitucional, por ter optado pelo recurso à rebelião armada, abandonando unilateralmente a via política. 

No âmbito das Nações Unidas, uma "troika" de observadores do "processo de paz" - constituída pelos Estados Unidos, pela Rússia e por Portugal - seguia com atenção a aplicação de sanções àquele movimento político. 

Portugal detinha, por essa época, a presidência rotativa da "troika". Semanas antes, como presidente em exercício da "troika", eu reunira num almoço de trabalho na nossa residência o embaixador americano na ONU, John Negroponte (que viria a ser "administrador" do Iraque, depois da invasão americana) e o embaixador russo, Sergey Lavrov (atual MNE russo), a que também esteve presente o representante especial do Secretário-geral, o nigeriano Ibrahimi Gambari, que dirigia o escritório especial para a fiscalizar as sanções à UNITA. Uma vez mais, fizéramos o ponto da situação sobre a evolução da situação político-militar no terreno, tendo concluído pela crescente fragilidade da UNITA. Porém, era óbvio que a "bandeira" da organização manter-se-ia levantada enquanto Sabimbi a sustentasse.

Washington, sob administração George W. Bush, não colocara em causa o empenhamento americano nas sanções à UNITA, votadas na ONU e herdadas do tempo de Bill Clinton, embora não tivesse prescindido da manutenção de contactos com o movimento, nomeadamente através de Jardo Muekalia, "delegado" da Unita residente na capital americana. 

Muekalia havia-me contactado, pelo telefone, uns tempos antes. Pretendia encontrar-se comigo para discutir o tratamento do tema UNITA na ONU. Recusei esse encontro, que, a ser conhecido, poderia afetar a nossa imagem de neutralidade e de apego à legalidade multilateralmente aceite, perante o processo interno angolano. É que o nosso país tinha algumas entidades privadas acusadas de não cumprirem as sanções decretadas contra a UNITA e já me estava a ser difícil conciliar as nossas obrigações na "troika" com a ocorrência desses episódios. 

Ainda nessa noite, falei a Gambari. Estava um pouco "no ar", porque a morte de Savimbi mudava tudo. Perguntou-me se pensava convocar a "troika" e consultar sobre isso Kofi Annan. Disse-lhe que me parecia prudente deixar "assentar o pó", mas que falaria entretanto com Annan. Pareceu-me perpassar-lhe na voz a preocupação de que, perante a iminente desaparição da UNITA, enquanto força armada, a sua função como coordenador das sanções iria rapidamente desaparecer. 

Na manhã seguinte, Ismael Martins, embaixador angolano, também me perguntou o que eu pensava fazer a seguir. Ele não tinha ainda instruções de Luanda. Eu também não as tinha de Lisboa, mas disse-lhe que dispunha de autonomia para agir da forma que melhor entendesse quanto à mobilização da "troika". Lavrov, com quem falei nessa tarde, foi de opinião de que seria melhor "aguardar para ver". Também tinha sido contactado pelo colega angolano, que ambos sentimos compreensivelmente eufórico. Perguntei-lhe se falara com Negroponte. Irónico, comentou que alguns americanos em Washington precisavam de tempo para "fazer o luto"...

Aquele foi o primeiro dia depois de Savimbi, de certo modo o primeiro dia da paz em Angola, o início do fim da guerra civil no país.

terça-feira, agosto 22, 2017

A onça e os seus amigos


Ontem, segundo uma imagem que circula pela net, uma onça entrou nas instalações do Palácio do Itamaraty, o ministério das Relações Exteriores do Brasil. 

Conhecendo o humor e a ironia dos meus amigos brasileiros, posso imaginar as graças que o acontecimento não irá provocar na sede da diplomacia daquele país, em torno do termo "amigo da onça".

Quase toda a gente sabe o que é um "amigo da onça". É o sinónimo de falso amigo.

O que menos gente sabe é que o conceito foi popularizado por "cartoons" na revista "O Cruzeiro", assinado pelo humorista Péricles, representando uma figura de cavalheiro, de cabelo tão untuoso como o seu caráter, de bigodinho (muito Brasil anos 50), impecavelmente vestido, que se dedicava a provocar embaraços aos "amigos".

Usei o termo por muitos anos, antes de lhe conhecer a origem. E nunca ninguém mo tinha explicado, até que, um dia, José Alencar, vice-presidente do Brasil, um querido amigo que já se foi, me contou a história. Ei-la.

Dois amigos conversavam. Um deles perguntou: "O que é que tu fazias se um dia te aparecesse uma onça à frente?". O outro respondeu: "Dava-lhe um tiro, claro!". "Mas imagina que, nesse momento, estavas sem espingarda?". A resposta foi: "Agarrava uma cadeira, para me defender!. O outro não desarmava: "E se não tivesses uma cadeira?". O outro tentou o possível: "Sei lá! Subia a uma árvore ou a um telhado...". "Pois! Mas se não houvesse árvore ou casa para subir?". Irritado, o amigo redarguiu: "Ó homem! Olha lá! Mas tu és meu amigo ou amigo da onça?!". 

Dignidade


Segurança

Às vezes, pergunto-me se as pessoas têm um mínimo de sentido de responsabilidade sobre os riscos do mundo em que vivem.

O que se está a passar em torno das medidas de segurança que estão a ser prudentemente tomadas, como preventivas para possíveis atos terroristas, é de uma estupidez que raia a inconsciência criminosa.

O mínimo de bom-senso recomendaria uma total discrição sobre este tema, que se prende com a segurança do país e dos seus cidadãos, o que em todo o mundo civilizado é um sempre tratado como um "não-assunto".

Mas cá não: um bando de inconscientes publica, na comunicação e nas redes sociais, abundantes fotografias dos obstáculos montados, compraz-se em gozar com as suas presumíveis fragilidades, utiliza mesmo o assunto como arma de arremesso político. 

Só posso desejar que, se e quando uma dessas tragédias eventualmente, nos vier bater à porta, familiares ou amigos desses "brincalhões" não venham a andar por perto.

Insuspeitos

Um dos métodos de atuação mais curiosos no debate político consiste em citar algo que foi dito por alguém com quem, por regra, se não concorda, que é "do outro lado", mas que, por uma vez, disse algo que "dá jeito" ao argumentário de quem opina. 

Atribui-se então a essa pessoa o epíteto de "insuspeito" - "até o insuspeito Fulano de Tal disse...". Porém, o "insuspeito" perde de imediato esse estatuto quando o que diz deixa de agradar.

O mundo é bizarro.

segunda-feira, agosto 21, 2017

As mulheres de Viana

Foto de Antero de Alda

Ontem, ao passar por algumas quelhas de Viana do Castelo, fugindo ao calor, vi frases feministas sujando o branco das paredes, com aquela "coragem" com que o anonimato impune permite a alguns (neste caso, devem ser algumas) estragar a limpeza da propriedade dos outros. E achei estranho. Por ser em Viana.

É que estávamos nas Festas da Senhora da Agonia. E as Festas são da mulher. A romaria é feita em torno da mulher, dos seus trajes, da sua música - as vozes femininas predominam em absoluto, nos cantos folclóricos vianeses ou vianenses (com alguma "doutrina" a dividir-se no uso do adjetivo).

A etnografia em torno dos trajes dedica muito pouco espaço e atenção aos homens, como ficou bem patente na Festa do Traje e no Cortejo - ambos agora renovados na linguagem, no ritmo e nas prioridades reveladas. É que, tirando o colorido de algumas faixas, o homem de Viana que acompanha as lavradeiras "distingue-se" apenas imensa simplicidade da roupa que veste (a exceção é o bordado das camisas típicas - este ano ganhei uma, belíssima, que ostentei com grande orgulho num dos dias).

Por isso, repito, a festa é das mulheres, elas é que são as donas da romaria. Para quê encher as paredes de Viana de sisudos apelos feministas?

domingo, agosto 20, 2017

As botas do bombeiro


Foi um ritual de anos. O meu pai tinha descoberto que, na praça principal de Caminha, havia um sapateiro excecional. Não fixei o nome do artesão, mas constava que, em todo o Alto Minho, ninguém fazia botas como ele. 

Assim, desde que entrei para a escola primária e até meados do tempo de liceu, aí de dois em dois anos, nas férias de verão em Viana, dava-se uma saltada a Caminha para encomendar para mim umas botas "de pneu de avião", que haveriam de me ajudar a atravessar os frígidos invernos transmontanos. Éramos conduzidos à loja, invariavelmente, pelo senhor Valença, um senhor franzino e baixo, de chapéu, amigo caminhense do meu pai, que lhe ficara dos tempos em que chefiara a agência da Caixa Geral de Depósitos na vila. Feita a encomenda, as botas chegariam pelo correio a tempo do início das aulas (nesse tempo sem surpresas, as aulas iniciavam-se invariavelmente no dia útil mais próximo de 1 de outubro). Era, aliás, de regra as boras serem ensebadas antes de usadas, creio que para tornar a pele mais flexível e para impedir a infiltração de humidade.

Na minha primeira visita à loja, aí com seis anos, fiquei impressionado com um reluzente capacete de bombeiro, colocado no topo de uma estante no fundo da loja. Era uma peça dourada, imponente. O dono da casa era, com toda a certeza, um "soldado da paz", como os bombeirps eram então designados na linguagem simpática da imprensa.

Ora os bombeiros, lá por Vila Real, onde eu vivia, faziam parte da nossa mitologia. A cidade estava dividida entre duas corporações de bombeiros voluntários: os da "Cruz Verde", chamados os "bombeiros de cima", e os da "Cruz Branca", os "bombeiros de baixo". Escrevi "dividida" porque, nesse tempo, cada vilarealense tinha uma ligação afetiva a uma das duas corporações. Eu era dos "de cima"!

Na minha cabeça de criança, esse maniqueísmo bombeiral estava bem enraizado. Não me devia passar pela cabeça que o modelo dual de Vila Real se não reproduzisse em toda a parte. Por isso, depois de tomadas as medidas do meu pé e escolhidas as necessárias especificações para as primeiras botas, à saída, perguntei ao meu pai: "Aquele senhor, cá em Caminha, é dos bombeiros de cima ou dos de baixo?"

sábado, agosto 19, 2017

O caminho para França

O meu pai, por um "vício" de educação cuja origem nunca percebi bem, era um "maníaco" da língua francesa. Desde a sua infância, em Viana do Castelo, dedicou-se ao culto e estudo aprofundado do francês. 

Tinha uma bela coleção de gramáticas, dicionários e manuais, que herdei, era um "colecionador" de expressões idiomáticas e, desde a minha entrada para o liceu, foi de uma extrema exigência comigo em matéria de correção da pronúncia e ortografia - o que me valeu ter sempre boas notas a francês no liceu, embora ele próprio qualificasse o meu conhecimento da língua apenas com um "pas mal" (no que estava, confesso, bem certo). 

Durante mais de vinte anos, sem com isso ganhar um tostão, em Vila Real, o meu pai dedicou-se a dar explicações a filhos de familiares e amigos - creio que sempre com imenso prazer. Era um francófilo como poucos, num país que, infelizmente, deixou de os ter.

Divertido, ele repetia às vezes a história de um seu amigo vianense, menos dotado para a língua de Molière e Macron, mas que, não obstante, sempre se empenhava em ajudar os turistas franceses que, nos tempos de férias, atravessavam a cidade.

Com orgulho, esse amigo contava: "Ali, ao pé do Hotel Aliança, quando eles querem ir para Espanha, em direção a França, eu indico-lhes: "sempr'en frent" e eles nunca se enganam na estrada para a fronteira".

sexta-feira, agosto 18, 2017

O onomástica vianense


Cheguei há pouco a Viana do Castelo, para a "romaria das romarias", as Festas da Senhora da Agonia.

Quando era miúdo, intrigava-me muito uma placa de um consultório médico na Avenida dos Combatentes da Grande Guerra, lá por Viana.

O nome era Dr. Abeldizindo Pinto da Cunha. Abeldizindo? 

"E queres saber o resto do nome desse senhor?", perguntou-me o meu pai. Era Abeldizindo António Filrozeno Osvalindo Ferreira Pinto da Cunha. Achei o nome fantástico! 

Mas o meu pai tinha mais novidades. O Dr. Abeldizindo era apenas um dos oito filhos de um sargento do Exército, Albino Cândido, cujos nomes seguiam um perfil onomástico idêntico.

Um dos irmãos, também médico, chamava-se Albidalino Almerindo Dulcínio Artur FPC. Outro, oficial do Exército, era Aldorindo Alexis Filinto Ilídio FPC. Havia também um engenheiro civil, Albicindo Aldino Olgarindo FPC. Finalmente, no campo masculino, teria havido também um Alcídio Adalberto FPC. As irmãs, com exceção de Eudília Deolentina FPC, tinham nomes mais "serenos", como Maria Zita Ernestina ou Clotilde.

O mistério permanece: o que teria levado os pais destes filhos a optarem por nomes tão curiosos? Alguém de Viana saberá?

(*) Durante as Festas de 2016, contei por aqui sete histórias de Viana. Nos dias das Festas de 2017, aqui deixarei mais algumas

O provedor


Não vale a pena iludirmo-nos: a questão dos incêndios florestais é muito séria. Tanto pelos imensos danos materiais provocados como pelo descrédito induzido na imagem do Estado.

Por muito que alguns, na esfera política, possam não querer aceitar, é uma evidência que está criada, na sociedade portuguesa, a ideia de que a administração do Estado é hoje impotente para gerir, com aceitável eficácia, esta situação, limitando-se a reagir, perante os factos com que se vê confrontada, numa penosa e quase patética navegação à vista. 

O executivo faz o que pode: tenta utilizar da melhor forma os meios ao seu dispor, mas já terá percebido que, a repetirem-se, no futuro, conjugações climatéricas negativas, o que não parece improvável, a tragédia vai reeditar-se. No meio de tudo isto, a fé na eficácia tempestiva das alterações legislativas acaba por ser uma atitude quase ridícula. Não que o "pacote florestal" não seja necessário, mas é mais do que óbvio que a sua completa implementação vai demorar um imenso tempo que o país não tem. E, até lá, é preciso agir com medidas urgentes e excecionais, a montante de uma nova crise, com as autarquias e com o governo central na primeira linha da prevenção, aproveitando o que a declaração de calamidade pública agora facilita.

A mais miserável dimensão desta história é a sua exploração político-partidária. Será que alguém, minimamente honesto, acredita que, se acaso a direita estivesse no poder, a Proteção Civil teria sido mais eficaz, o Siresp teria funcionado melhor, outro modelo de responsabilização funcional e pessoal teria levado a resultados diferentes? 

Sejamos claros: PS ou PSD/CDS (PCP ou BE quase não contam aqui) são as duas faces da mesma moeda - onde se misturam o aparelhismo e o compadrio político, a instrumentalização partidária dos bombeiros, uma maior ou menor complacência face às negociatas em torno do material de combate aos incêndios. Ter a esquerda ou a direita no poder, nesta questão dos incêndios é, como dizem os franceses, "bonnet blanc/blanc bonnet". É absolutamente indiferente. Toda a gente sabe isto, de António Costa a Passos Coelho, embora todos façam de conta que não.

Contudo, os incêndios deste ano não foram iguais aos outros. Na dimensão, nas tragédias, no trauma coletivo que provocaram. O Estado, e a confiança no Estado, não saem intocados disto. É aqui que, inevitavelmente, entra o papel do chefe desse Estado, pelo crédito afetivo que hoje o responsabiliza perante o país. No tradicional Inverno do nosso esquecimento que aí vem, compete-lhe ser o provedor do sentimento nacional de urgência e desespero e não permitir que a espuma dos dias seguintes abafe a necessidade de atuar. Já. 

(Artigo hoje publicado no "Jornal de Notícias")

O futuro