quarta-feira, novembro 07, 2018

Autobiografia


Correspondendo a um desafio de José Carlos de Vasconcelos, escrevo na edição do “JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias” que hoje foi publicada, uma “autobiografia”.

O convite do diretor do JL tinha anos, mas eu vinha a adiar recorrentemente a ousadia de corresponder-lhe, porque estas aventuras, pelo lado narcísico que forçosamente acarretam, fazem-nos correr riscos de vaidade e, claro, de ridículo. O saldo aí fica, com um abraço ao José Carlos, pela sua simpática persistência.

Pode ler o texto completo aqui.

Tiro aos pombos


Têm ouvido falar do tiro aos pombos? Eu não. É uma prática que morreu de morte natural. Por que será que isso aconteceu? Porque “o mundo pula e avança”...

Pensem nisto!

Uma vergonha


Tancos é uma vergonha. Começa por sê-lo para as Forças Armadas, cujas chefias não foram capazes de assumir as suas responsabilidades. A hierarquia de turno não soube tomar a decisão óbvia - demitir-se –, face a uma flagrante incompetência de gestão, não percebendo que assim colocou em causa a honra e o prestígio, nos planos interno e externo, das nossas Forças Armadas. Estas já provaram que são bem mais capazes do que a imagem que esta sua chefia conjuntural agora projetou. A coreografia disciplinar evidenciada após a revelação do assalto já tinha mostrado uma aliança entre o pior corporativismo e a inépcia, perante a gargalhada e o sorriso amarelo de um país que tem a sua “tropa” em bem melhor conta. O que depois se veio a saber sobre as moscambilhas da Polícia Judiciária Militar excede tudo quanto, de ridículo, se supunha plausível. Ora se as chefias militares não estavam, como era evidente, à altura da situação, o poder político teria feito melhor em tê-las “ajudado”, a tempo e horas, afastando quantos, ao menos por omissão, se revelaram abaixo dos mínimos exigíveis. O poder político - presidente e governo - deveriam ter sabido medir melhor a fronteira que existe entre o “tratar com pinças” os militares, atitude que faz parte da nossa cultura de gestão política no quadro do compromisso constitucional, e o custo público de uma longa e penosa hesitação, que acabou por ter o preço de um ministro da Defesa e que agora coloca o comandante-supremo numa escusada atitude defensiva. Mas este caso é, essencialmente, uma tragédia para a imagem do nosso sistema de justiça. Passa pela cabeça de alguém que um sistema judicial minimamente eficaz esteja, há bem mais de um ano, sem conseguir deslindar por completo uma historieta com meia dúzia de personagens, devidamente identificadas e cujas responsabilidades na tramóia são hoje bastante claras? Aquilo que temos vindo a assistir é um queimar de tempo, que uma comunicação social ávida de lama aproveita para esgravatar com ardor, que começa mesmo a adubar algumas ridículas teorias da conspiração, passe o pleonasmo, dando do funcionamento das instituições uma imagem de opereta. Será preciso ir buscar a “Fox Crime” para pôr tudo isto – mas rapidamente! – em pratos limpos, chamando os bois pelos nomes e atribuindo responsabilidades, doa a quem doer? Ou será que alguém está a apostar em que a comissão parlamentar se prolongue, com desgaste, pelo ano eleitoral - sendo esta agora a quota de “conspiração”a que também tenho direito?

segunda-feira, novembro 05, 2018

Saudades


Não costumo colocar fotografias minhas por aqui. Há pouco, porém, a “net” trouxe-me esta imagem, creio que tirada no Conselho Europeu de Santa Maria da Feira, em junho de 2000, com Joaquim Pina Moura, um excelente amigo que há muito não vejo. Apeteceu-me publicá-la.

sexta-feira, novembro 02, 2018

Minho


Um destino emergente


Algum Brasil sempre detestou o qualificativo de "país do futuro". E com razão. É um pouco como aqueles letreiros que, por graça, antigamente surgiam em algumas lojas: "Hoje não se fia, amanhã sim". Embora a esperança esteja sempre associada ao dia seguinte, é evidente que não ter uma ambição forte no presente acaba por desresponsabilizar as gerações que o gerem e condenar o país a um destino pouco distante da banalidade. Mas a verdade é que confiar num futuro redentor tem sido, de há muito, a aposta nacional brasileira. E o mundo sempre ironizou um pouco com isso.

O Brasil é um país cujo potencial - o tal futuro - ninguém coloca em causa, mas cuja plena exploração permanece recorrentemente adiada. Numa dimensão quase continental, com imensos e diversificados recursos naturais, dispondo uma curva demográfica favorável, o país deu, nas últimas décadas, saltos fortíssimos na qualificação dos recursos humanos, longe, porém, daquilo que necessitaria para se aproximar das economias e sociedades mais desenvolvidas. Além disso, esses avanços não se deram de modo uniforme. Conseguiram recuperar, pontualmente, algumas situações mais gravosas e, no extremo oposto, criaram “ilhas” de excelência que por lá, significativamente, são designadas como “de primeiro mundo” - em especial na economia, mas também na ciência, no sistema educativo, na saúde, etc. Porque há um imenso Brasil que ficou para trás nessa corrida, a diversidade brasileira continua a traduzir-se em elevados contrastes sociais, com tensões muito fortes que se transmitem negativamente na cultura de convivência cívica.

O atraso brasileiro tem ainda componentes estruturais. O país padece de uma grande debilidade em matéria de infra-estruturas, fruto de erros estratégicos que levaram a ciclos de desinvestimento, conducentes a situações hoje muito difíceis de recuperar. Isso leva a que algumas políticas públicas se ressintam, em permanência, dessas limitações - de que os transportes, as comunicações, a saúde, a educação e a segurança são exemplos gritantes.

Como é óbvio, a estrutura política reflete, condiciona e interage, em permanência, com essa realidade económico-social. O Brasil apostou num modelo constitucional federal similar ao americano, numa tentativa de consagrar, por via institucional, a acomodação entre uma representação estadual de interesses, que em muitos casos ali reflete uma cultura dos tempos do “coronelismo”, com um modelo de gestão central tradicional. Poderá dizer-se que, no essencial, o sistema tem funcionado, sobrevivendo mesmo a ciclos políticos muito contrastantes entre si. Porém, essa aparente resiliência dá sinais de resultar num forte imobilismo na cultura cívica, com vícios muito arraigados que só recentemente têm vindo a merecer atenção e sanção pública. O artificialismo da vida partidária brasileira, que permanece muito dependente de uma obsessiva fulanização, que continua a ser a imagem de marca da sua vida política, teve nas recentes eleições uma expressão notória, com uma fragmentação a nível da representação partidária que pode vir a contribuir para possíveis impasses institucionais.

No plano internacional, o Brasil vive, de há muito, com o sonho de poder ascender a patamares de afirmação institucional mais elevados. A entrada para membro permanente do Conselho de Segurança da ONU é o principal desses objetivos, o que justificou, num passado recente, um esforço de expressão diplomática, em particular junto dos países “do Sul”. A essa finalidade correspondeu também o forte investimento que o país fez no reforço do G20, apostando numa perca de força do G8, aquando da crise financeira.

O mundo, entretanto, mudou. O ciclo de afirmação multilateral está, pelo menos, congelado, nos tempos mais próximos. Além disso, a menos que uma surpresa, que poucos são tentados a prever, venha a acontecer, a nova liderança brasileira vai acarretar para o país um custo reputacional que, uma vez mais, funcionará a contraciclo do legítimo desiderato nacional brasileiro de apressar o futuro.

Da série "Já não é o que era..." - O prédio de Aveiro


quinta-feira, novembro 01, 2018

Da série "Já não é o que era...". O hotel


“Já não é o que era!”


A frase é quase sempre dita num tom entre o nostálgico e o sobranceiro - sobre restaurantes, lojas ou hotéis, que o tempo marcou e cujo serviço terá decaído, o que também é ajudado pelo facto dos nossos padrões de referência também se terem alterado. É que, entretanto, surgiram coisas novas, não houve por ali capacidade de adaptação, os locais e os serviços deixaram-se ficar para trás, sem consciência de que era necessário manter uma constante renovação. Algumas vezes, um certo charme decadente ajudou à sobrevivência digna. Algum pessoal, vindo do passado, pode ter sido um fator simpático de fidelização. Mas essa não é a regra e, as mais das vezes, paira por esses locais um ar de cansaço e desânimo. À saída, a realidade torna-nos cruéis e não perdoamos: “já não é o que era!”

Será, com certeza, um efeito colateral da idade, mas acho alguma graça em revisitar esses locais. Como hoje, deliberadamente, vou fazer. É o meu “circuito do já não é o que era”.

quarta-feira, outubro 31, 2018

Presidente Bolsonaro


Em 1973, um político português cujo nome não vem para o caso, num registo discursivo tido por adequado para quem estava então no exílio, causticou um dia, por escrito, a ditadura militar brasileira.

Veio o 25 de Abril e o político viu-se com responsabilidades no Portugal democrático. Quando se decidiu juntar, numa publicação, alguns dos seus textos do passado, olhou essa referência e, com sentido de prudência, elidiu-a. É que os mesmos generais que, desde 1964, perseguiam, prendiam e mandavam assassinar cidadãos brasileiros eram, afinal, os interlocutores da nova democracia portuguesa, isto é, do governo a que ele pertencia.

Lembrei-me deste episódio ao ver por aí alguns "heróis" a reclamar das nossas autoridades uma "atitude", em face da eleição de Jair Bolsonaro. Li mesmo remoques pelo facto do presidente da República e do primeiro-ministro terem enviado mensagens congratulatórias àquele que será o seu novo contraparte, simultaneamente como chefe de Estado e chefe de governo. Posso perceber que não se goste do novo líder brasileiro (eu também não gosto), mas há que aprender que a boa gestão das questões de Estado não se compadece com humores políticos de conjuntura. E que, comparada com a sinistra ditadura com que a nossa democracia conviveu serenamente por mais de uma década, a legitimidade de Bolsonaro foi assegurada por dezenas de milhões de brasileiros.

Jair Bolsonaro é a figura que, nos próximos quatro anos, presidirá a um governo com o qual teremos de lidar, independentemente da nossa opinião sobre ele. Dirigirá um Brasil onde vivem e trabalham larguíssimos milhares de cidadãos portugueses ou lusodescendentes, cujos direitos e interesses queremos ver respeitados, o que só poderá ser feito num quadro de serena interlocução com as autoridades desse país. O Brasil é, além disso, destino de importantes fluxos de exportações nacionais, por lá há imensas empresas de capital português e ambos os Estados, para além de uma História comum que é um património não despiciendo, partilham hoje importantes ações no quadro da CPLP, bem como na promoção da língua que, tirado o sotaque, passa por ser a mesma.

Este é um momento feliz para Portugal? Sê-lo-á para alguns "bolsonarozinhos" da paróquia, a afiar o dente para uma esperada repressão contra aquilo que, pelo mundo, se habituaram a odiar. Para gente com princípios, a vitória de Bolsonaro só pode ser um tempo triste. Para o Estado português, que a todos representa, tem de ser "business as usual".

terça-feira, outubro 30, 2018

O mistério da capela


Até 1953, existiu, no "promontório" do Pioledo, em Vila Real, a capela de Santo António. 

Santo António continua a ser o padroeiro da cidade.

A capela, que se sabe ter sido erigida por subscrição popular, era de meados do século XVI, tendo, desde então, sido sujeita a várias reformas. Não seria uma obra prima da arquitetura religiosa, mas tinha a sua graça, como a imagem mostra.

Sabe-se que um dia, em 1953, a capela foi derrubada, ao que consta, com o pretexto do seu estado de degradação. As suas pedras terão tido destinos vários. As telas e retábulos foram, ao que parece, para o seminário diocesano.

A desaparição da capela de Santo António sempre me intrigou, desde criança. Conhecia-lhe a imagem e o local e recordo-me de, ao longo dos anos, ter inquirido várias pessoas sobre o assunto. Ninguém sabia de nada! A razão por detrás da decisão de destruição da capela era um mistério. Se, como alguns aventam, havia intenção de a reconstruir noutro local da cidade, então talvez tivesse sido mais barato melhorá-la...

Constato que houve sempre, em Vila Real, uma espécie de tabu em torno da desaparição da capela seiscentista do Pioledo. Posso estar errado, mas sempre tive a sensação de que a destruição da capela foi um ato municipal, de que ninguém queria falar, para evitar "macular" a imagem da figura que tomou a infeliz - e autoritária - decisão. Um "grilo" canta-me isto, mas não posso provar.

Alguém saberá alguma coisa sobre isto? Fica esta fotografia, aa autoria de José Aguilar (pai).

Brasil e Portugal


segunda-feira, outubro 29, 2018

Ilídio


Em abril, publiquei por aqui uma nota sobre um velho amigo que reencontrei num almoço em Coimbra. A doença marcava-o já visivelmente. Escrevi então isto:

"Ontem, encontrei o Ilídio. Demos conta de que já nos não víamos vai para quatro décadas. Nesse tempo de liceu, ele era uma figura imensa, um bom “gigante”, que sempre revejo embrulhado na capa preta, arruando pelos Primeiros de Dezembro.

O Ilídio era uma fator de ligação entre todos nós, tinha uma grande paciência para os mais novos, em que eu me incluía. Tinha também uma graça infinda, a que a sua figura física ajudava, e disso dava testemunho nos “saraus” estudantis desse primeiro dia do último mês do ano. Para a história académica de Vila Real, ficaram para sempre os seus mano-a-mano com o Zé Amaral, diálogos que, estou certo, o eterno encenador dessas sessões, o Achilles, não conseguia controlar nem disciplinar.

Grande Ilídio! Combinámos encontro para o próximo Primeiro de Dezembro. Etapa a etapa se faz a caminhada, companheiro, por mais dura que ela às vezes vá sendo. Até lá, caro Ilídio!"

Acabo de saber que o Ilídio morreu. Afinal, não nos veremos no 1º de dezembro.

Presidente Bolsonaro


Marcelo Rebelo de Sousa, como manda a regra, enviou as felicitações ao seu homólogo e futuro presidente do Brasil. Porque Jair Bolsonaro será, simultaneamente, chefe de Estado e chefe do governo, António Costa mandou-lhe igualmente uma nota.

Ambos os textos são irrepreensíveis, fruto de uma diplomacia experiente e sabedora da medida das coisas.

Eu, que já saí das "lides" há uns anos, dei-me ao exercício de escrevinhar aquela que poderia ser uma mensagem "alternativa" por parte do nosso presidente, embora reconheça que a sua extensão é menos conforme com as práticas protocolares habituais.

Ela aqui fica, por mera curiosidade:

Senhor Presidente eleito Jair Bolsonaro
Excelência

A inequívoca expressão democrática da vontade do povo brasileiro determinou, no passado domingo, a eleição de Vossa Excelência para a presidência da República Federativa do Brasil. Começo por felicitá-lo por isso, em nome de Portugal.

Os nossos países mantêm entre si, vai para dois séculos, uma relação muito particular, fruto de intensos períodos comuns na História e da partilha de uma Língua universal que nos liga a outros povos, criando, nos dias de hoje, uma Comunidade de culturas e de valores que, estou certo, é desejo de todos podermos continuar a desenvolver e afirmar em conjunto.

Em ciclos políticos de sinais por vezes muito diferentes, e não raramente contrastantes, em ambos os lados do Atlântico, a sabedoria e o pragmatismo acabaram por decantar um bom-senso que ajudou a manter e reforçar o nosso relacionamento, por sobre as ocasionais divergências de opinião dos dirigentes. É que o destino nos condenou, com felicidade, a desenhar uma constante convivência humana, recentemente feita mesmo de diásporas cruzadas.

Nesta hora, em nome do povo português, desejo expressar a Vossa Excelência os votos muito sinceros de que o futuro do Brasil, durante o seu mandato, possa estar à altura das expetativas legítimas que determinaram a sua escolha para a suprema magistratura brasileira - em liberdade, tolerância, paz e progresso, honrando as virtudes democráticas da Constituição brasileira de 1988.

O Brasil pode ter a certeza de que contará sempre com a empenhada vontade de Portugal para continuar a desenvolver os laços bilaterais existentes e com ele continuar a trabalhar, na ordem internacional, nomeadamente no quadro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, para a construção de uma sociedade global respeitadora do património de valores civilizacionais que são hoje comuns aos Estados e povos que têm a Democracia como referente identitário e a Liberdade como princípio inalienável na regulação cívica da vida das suas sociedades.

Com os meus respeitosos cumprimentos

Marcelo Rebelo de Sousa

Presidente da República Portuguesa

domingo, outubro 28, 2018

Cai na real, pá!


Um dia, tive de explicar a uma alta figura de Estado portuguesa que havia uma assimetria inescapável entre o modo como alguns portugueses olhavam o Brasil e a notória indiferença com que muitos milhões de brasileiros - cujos avós vieram de Aleppo ou da Pomerânia, e não de Freixo de Espada à Cinta ou de Almodovar - reagiam quando o nome de Portugal vinha à conversa. Para aqueles, Portugal é frequentemente o país em que, com estranho sotaque, “também se fala português”, de onde um dia chegou “seu Cabral”, o país que lhes levou o ouro, trouxe os escravos e deixou os vícios, e que, depois, produziu um patusco rei “fujão” que gostava de pernas de galinha, cujo filho devasso deu no Ipiranga o grito da sua independência, antes de se recolher de vez à tal “terrinha”, de onde ainda haviam de chegar carradas de “manueis” e “joaquins”, que eram em geral padeiros e tinham um jeito estranho de entender o que se lhes contava. Goste-se ou não, Portugal ainda é mais ou menos assim para muitos brasileiros.

Portugal, por seu turno, nunca se “descolonizou” totalmente do Brasil. Historicamente, olhou a grande colónia feita país como uma “jangada de pedra” a afastar-se de si, mas caiu na ilusão de pensar que por ali ficava uma espécie de “filho”, levando à conta da rebeldia adolescente deste alguma lusofobia recorrente. Foi assim que, depois, se espantou com a distância sobranceira com que, muitas vezes, este resistiu ao abraço afetivo, a cordialidade seca com que ia aceitando o gongorismo retórico criado em torno de uma comunidade de língua que era portuguesa e que, por alguma razão, não era brasileira. Por muito tempo, os portugueses acharam que percebiam o Brasil, porque simplificaram que o Brasil era uma espécie de Portugal otimista e descomplexado, com vida fácil e alguma dose de loucura saudável no posto de comando. E foram olhando aquela terra do outro lado, sempre com curiosidade, às vezes com interesse, outras com preconceito.

Nestas eleições, ao que se vê por aí, os portugueses também “votam”. A maioria parece que detesta Bolsonaro, pelo inegável primarismo, quase caricatural, da figura. E dando razão à “síndroma Gorbachev” - quando o exterior gosta mais de um líder do que os nativos - muitos conservam ainda uma imagem positiva da obra de Lula, um presidente que, além disso, deixou a ideia de ter sido simpático para Portugal, ao contrário de Dilma, vista como uma espécie de mestre-escola de esgar cínico. No Portugal que se interessa pelo Brasil – mesmo o que percebeu a tragédia da insegurança, o efeito Venezuela, o cansaço da corrupção -, muitos ainda não entendem por que razão o país se afastou afetivamente de Lula, mostrando agora vontade de se entregar nas mãos de um demagogo populista. Isso talvez aconteça porque, lá no fundo, alguns acham que o patrimonialismo é um vício endémico do sistema público brasileiro e que condenar Lula por tê-lo adubado mais não é do que um exagero com forte viés político.

O Brasil que hoje existe no Brasil parece assim já muito distante do Brasil que alguns portugueses alimentaram no seu imaginário. Só que as coisas são o que são e os portugueses ouvem, cada vez mais, os seus amigos brasileiros - os que estão tristes e os que estão contentes - dizer-lhes: “Cai na real, pá!”.

sábado, outubro 27, 2018

O serviço


O nosso homem vinha a guiar desde Porto, na estrada antiga para Vila Real, onde era taxista. Tinha ido levar uns emigrantes a Pedras Rubras, ainda antes do aeroporto ser crismado por uma tragédia. Nesse tempo, mesmo há muito tempo, a viagem era longa, pesada, com os carros de então e o imenso Marão, de estrada curvosa pelo meio, a não ajudarem. E, por falar em curvosa, foi antes de Penafiel que a viu, à beira da estrada. Belíssima, com o sorriso e tudo o resto generoso. Encostou, auscultou o tarifário e o negócio estabeleceu-se por mútuo acordo, sem delongas. Por indicação experiente dela, um pinhal ali perto, com estrada de terra batida, seria o terreno certo para estacionar o carro, cujo amplo banco de trás tinha todas as condições para a conclusão feliz da operação. Nesse tempo, em que os telemóveis eram uns matacões incómodos e caros, ele orgulhava-se de possuir, no “carro de praça”, um rádio ligado à sua casa. Decidiu por ele avisar “a patroa”, lá em Vila Real, de que não estivesse em cuidado, que ia chegar um pouco mais tarde. É que, “por sorte”, tinha-lhe aparecido um outro “serviço”...

Está por esclarecer que patilha do aparelho de rádio terá sido acionada. Fosse ela qual fosse, a verdade é que essa ligação permitiu à esposa do nosso motorista ouvir, em direto e “a cores”, o que se passou naquele carro durante o “serviço“ excecional que tinha surgido na estrada do Porto. A ofendida cônjuge revelou-se uma mulher de armas: quando ele assomou à porta de casa, perto de Vila Real, estava já ela de caçadeira em punho, embora, felizmente, só tenha conseguido disparar um “Ah! Bandido!”, seguido de outros epítetos que este espaço para famílias não pode acolher, porque o filho de ambos lhe travou, no último instante, a sua conjuntural propensão para a viuvez. Depois, sabe-se lá como, tudo acabou por acalmar. Até hoje, ao que parece.

“Shôtôr, que gosto em vê-lo! Vai um cafezinho?”, disse-me ele, há uns anos, com o seu sempre largo sorriso, por detrás do balcão por onde, num fim de tarde, o encontrei lá por Vila Real. Eu, malandro, não resisti, até porque era pura verdade: “Vai, sim senhor! Cheguei agora do Porto e estou cansado, a precisar de um café. Embora a estrada agora já não seja tão cansativa como era, não acha?”. “Sim, sim! Nada que se pareça!” E, já sem me olhar, tirou a bica.

sexta-feira, outubro 26, 2018

Na rua Direita



Aquele cidadão de Vila Real era um reacionário, um verdadeiro atraso de vida. Estávamos no século passado, depois de abril. A cidade, muito graças à massa crítica proporcionada pela migração qualificada oriunda da África pós-colonial, tinha ali criado um Instituto Politécnico. Mas Vila Real queria mais, queria ter uma universidade. Alguns consideravam um exagero, outros achavam bem. Estes últimos tinham razão: é assim que hoje existe a excelente UTAD.

Num daqueles passeios, em andamento lento, que alguns cavalheiros da cidade, em grupo, costumavam fazer pela Rua Direita, num percurso que ia da União Artística (no inverno, apenas da Esquina da Gomes) ao Cabo da Bila, um deles estugou o passo, a certa altura, e afirmou, solene: “Tenho muitas dúvidas de que seja possível haver por cá uma universidade. Mas não será por falta de professores!”.

Os parceiros da tertúlia andante estranharam aquela última certeza. Então havia em Vila Real professores suficientes? Ele, apontando para a ourivesaria do Sílvio Teixeira, ali em frente, esclareceu: “Dos professores encarrega-se ali o Sílvio!”

Para os caminhantes, subitamente estacados, o mistério adensava-se. O Sílvio, que se via através da montra por detrás do balcão, de barriga descaída, era uma figura curiosa da cidade, bonacheirão e “blagueur”, praticamente o único escriba de uma folha aperiódica, impressa a azul, quase clandestina, chamada “Jornal do Norte”. Mas que podia o Sílvio fazer para gerar professores para a nóvel universidade?

O nosso homem, sobranceiro, sorriu e explicou: “Mas então o Sílvio não é proprietário de uma fábrica de material para oculistas, que fica lá atrás da estação?“ Os outros assentiram. Sim, era verdade, mas que tinha uma coisa a ver com a outra? Generoso, ele concluiu: “Ora essa! Assim, “lentes” já temos!”

A frase ficou nos anais. Diz-se que tão altas foram as gargalhadas então ecoadas pelas paredes da rua que o Luis “Chinês”, não obstante ouvir mal, assomou alarmado à porta, por entre as camisolas e os cachecóis, o meu amigo Eduardo, “Cara-de-Reco”, como saudavelmente gozava quando lho chamavam, saiu disparado de detrás dos livros e blocos, com o farto bigode a espiolhar, o Simões enfermeiro ter-se-á picado na agulha de uma injeção que tinha em curso numa nádega que polia à mão, o Lima encadernador veio à varanda, tresandando a colas, movido por um barulho que achou próximo das confusões da Legião Estrangeira, por onde andara em bons e menos etílicos tempos, e há mesmo quem jure que, no páteo traseiro da tasca do Agostinho, um qualquer calaceiro crónico, de “balde de três” à ilharga, assarapantado com o ruído, falhou uma malha que apontava na “sapa” metálica, numa aposta a bolos-de-bacalhau que até ali estava a ganhar sem espinhas, a qual acabou, imaginem!, por ir parar à rua do Rossio, onde logo apontou ao chapéu pessoano que seguia, como sempre, na cabeça do Honório, logo num dia em que ele ia atrasado para a Escola Normal. Constou-me tudo isto ou, como se diz em Vila Real, “digo eu, “num” sei!”

Sem os “lentes” do Sílvio Teixeira mas depois com outros a sério, a Universidade lá está, desde há muito, para orgulho da cidade.

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...