sexta-feira, outubro 26, 2018

Na rua Direita



Aquele cidadão de Vila Real era um reacionário, um verdadeiro atraso de vida. Estávamos no século passado, depois de abril. A cidade, muito graças à massa crítica proporcionada pela migração qualificada oriunda da África pós-colonial, tinha ali criado um Instituto Politécnico. Mas Vila Real queria mais, queria ter uma universidade. Alguns consideravam um exagero, outros achavam bem. Estes últimos tinham razão: é assim que hoje existe a excelente UTAD.

Num daqueles passeios, em andamento lento, que alguns cavalheiros da cidade, em grupo, costumavam fazer pela Rua Direita, num percurso que ia da União Artística (no inverno, apenas da Esquina da Gomes) ao Cabo da Bila, um deles estugou o passo, a certa altura, e afirmou, solene: “Tenho muitas dúvidas de que seja possível haver por cá uma universidade. Mas não será por falta de professores!”.

Os parceiros da tertúlia andante estranharam aquela última certeza. Então havia em Vila Real professores suficientes? Ele, apontando para a ourivesaria do Sílvio Teixeira, ali em frente, esclareceu: “Dos professores encarrega-se ali o Sílvio!”

Para os caminhantes, subitamente estacados, o mistério adensava-se. O Sílvio, que se via através da montra por detrás do balcão, de barriga descaída, era uma figura curiosa da cidade, bonacheirão e “blagueur”, praticamente o único escriba de uma folha aperiódica, impressa a azul, quase clandestina, chamada “Jornal do Norte”. Mas que podia o Sílvio fazer para gerar professores para a nóvel universidade?

O nosso homem, sobranceiro, sorriu e explicou: “Mas então o Sílvio não é proprietário de uma fábrica de material para oculistas, que fica lá atrás da estação?“ Os outros assentiram. Sim, era verdade, mas que tinha uma coisa a ver com a outra? Generoso, ele concluiu: “Ora essa! Assim, “lentes” já temos!”

A frase ficou nos anais. Diz-se que tão altas foram as gargalhadas então ecoadas pelas paredes da rua que o Luis “Chinês”, não obstante ouvir mal, assomou alarmado à porta, por entre as camisolas e os cachecóis, o meu amigo Eduardo, “Cara-de-Reco”, como saudavelmente gozava quando lho chamavam, saiu disparado de detrás dos livros e blocos, com o farto bigode a espiolhar, o Simões enfermeiro ter-se-á picado na agulha de uma injeção que tinha em curso numa nádega que polia à mão, o Lima encadernador veio à varanda, tresandando a colas, movido por um barulho que achou próximo das confusões da Legião Estrangeira, por onde andara em bons e menos etílicos tempos, e há mesmo quem jure que, no páteo traseiro da tasca do Agostinho, um qualquer calaceiro crónico, de “balde de três” à ilharga, assarapantado com o ruído, falhou uma malha que apontava na “sapa” metálica, numa aposta a bolos-de-bacalhau que até ali estava a ganhar sem espinhas, a qual acabou, imaginem!, por ir parar à rua do Rossio, onde logo apontou ao chapéu pessoano que seguia, como sempre, na cabeça do Honório, logo num dia em que ele ia atrasado para a Escola Normal. Constou-me tudo isto ou, como se diz em Vila Real, “digo eu, “num” sei!”

Sem os “lentes” do Sílvio Teixeira mas depois com outros a sério, a Universidade lá está, desde há muito, para orgulho da cidade.

6 comentários:

Anónimo disse...

Lido com muito gosto.

Despacho:

O nosso escriba é, às vezes, nelhor de ler nos relatos literários do que nos relatos políticos.

Muito deferido.

Anónimo disse...

Mais credível, certamente
João Vieira
Para o anónimo das 13h

Anónimo disse...

Grande Poeta...

Abaciente disse...

Obrigado Dr. por recordar e me fazer lembrar muitas das figuras tipicas que no meu tempo deram vida à nossa "Filha de D. Dinis" (Vila Real). Foi Pena que nessa altura não passa-se por perto o saudoso "Bertelo", benfiquista de gema (quatro costados) ou a tão famosa "Bichoqueira" e a conversa teria certamente outra riqueza oral. Um abraço.

dor em baixa disse...

Se me permite: novel não leva acento, é uma palavra aguda, como papel, por exemplo.

Anónimo disse...

Excelente texto!

Para quem conheceu Vila Real, era mesmo assim! Estamos perante um hiper realismo!

Acrescento apenas que os "lentes" existiam mesmo.
Tenho a certeza que se referiam aos "doutorados" políticos que arranjaram umas cátedras na UTAD. Para eles e "amigos/as".

Mas no geral tenho notícia que a UTAD foi bem dotada de Professores!

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