sábado, abril 22, 2017

Pão e circo

É preciso dizer as coisas bem alto, as vezes que forem necessárias: são as televisões, todas elas, os principais culpados - repito, culpados - pelo ambiente de violência acéfala que hoje atravessa o futebol português.

Horas e horas a encharcar-nos com comentários clubistas, com declarações extremadas, com o alimentar de polémicas sobre lances, não revelando o menor sentido de responsabilidade na hierarquização das notícias - tudo isto mostra um mundo televisivo onde o jornalismo é hoje comandado da sala de contabilidade.

O mais irónico é que essas mesmas televisões, que acicatam os confrontos pela criação de um ambiente explosivo ao menor rastilho, são depois os aproveitadores, oportunistas e compulsivos, dos efeitos da violência, das agressões, das proclamações inflamadas, dos desejos de vingança.

O crime compensa?

sexta-feira, abril 21, 2017

Em perspetiva


O mundo entretem-se, por estes dias, a listar as reversões com que Trump confirma a natureza errática da sua política externa, agora entregue, ao que tudo indica, aos militares e àqueles que fabricam aquilo com que estes exercem a sua atividade. Há, porém uma “promessa” que Trump parece determinado a cumprir, em absoluto: pôr de lado qualquer consideração pelas instituições multilaterais, como a ONU, e assumir em pleno que a força é o fator da sua legitimidade, como decorre da arrogância jingoísta com que brinca com o fogo da segurança de todos nós.

Assim, em contagem decrescente para a próxima bomba do império de Mar-a-Lago, dedicamo-nos também a olhar o açambarcamento do poder por Erdogan, que desenha na Turquia, dia após dia, uma evidente “democratura” (ditadura travestida de ditadura), à qual ninguém parece saber como reagir.

Finalmente, as eleições francesa de domingo, mesmo que não conduzam Le Pen ao Eliseu, trazem-nos a trágica perspetiva da extrema-direita poder vir a condicionar fortemente  o futuro de um país sem o qual - diga-se isto com grande clareza - a Europa comunitária deixará de existir como a conhecemos, a curto prazo.

Distraído com estes cenários, o mundo parece estar a esquecer, contudo, a gravidade daquilo que se passa no Brasil.

Ora os últimos dias, nesse lado do Atlântico, trouxeram por ali ao de cima - como nomes, números e datas - aquilo que era um verdadeiro "segredo de Polichinelo": que, desde há décadas, a vida partidária e muitas das grandes figuras do Estado brasileiro eram financiadas ilegalmente pelas grandes empresas. A denúncia titulada pelos principais responsáveis da Odebrecht, a maior construtura do país, abrange quase toda a classe política - de presidentes da República a autarcas, passando por ministros, governadores e deputados. Estamos perante um escândalo de consequências por ora inimagináveis para o futuro do sistema político do país. A menos que o processo venha a ser travado através daquilo que no Brasil se designa sugestivamente por um "acordão", não fica muito claro como é que vai ser possível desatar este nó cego. Alguns pensam mesmo que, perante o descrédito acrescido que estas novas revelações trazem para a classe política, o ambiente começa a estar propício para a emergência de alguém, surgido de fora do sistema, que possa visar a eleição presidencial de 2018, tal como aconteceu no caso de Trump. Como amigo do Brasil (e da sua democracia) preocupa-me que algumas pessoas sensatas que por lá conheço se sintam cada vez mais tentadas a colocar também nos trilhos do futuro poder político algumas figuras militares, tidas como parte da solução. As tragédias podem ter várias roupagens, mas as tragédias fardadas costumam ser mais dolorosas.

quinta-feira, abril 20, 2017

Avenida da Liberdade


O terrorismo já votou. O "quanto pior melhor", que é típico das agendas radicais, já deixou a sua marca de sangue nos Campos Elísios. É preciso resistir à chantagem da cobardia agressora. Se acaso eu estivesse hoje em Paris - e estarei lá para a semana - iria passear naquela que, no dia de hoje, tem de ser a nossa Avenida da Liberdade comum.

Viver fora


Hoje, aqui em Bogotá, lembrei-me de que tenho dois amigos, ambos diplomatas, um português e outro brasileiro, que assentaram arraiais de vida aqui pela Colômbia. Sempre que por aqui venho, tenho os dias tão ocupados que nunca tive tempo para lhes dar um abraço.

Foi a propósito disto que dei comigo a pensar se acaso teria sido capaz, se a ocasião se tivesse proporcionado, de ter ficado a residir numa das várias cidades estrangeiras onde vivi. 

É claro que reconheço que tudo dependeria muito do enquadramento, em especial de ordem material, em que essa estabilização da vida se fizesse. Mas, por melhores que fossem essas condições, confesso não me estou a ver a passar o resto da minha vida numa cidade estrangeira, onde eu também forçosamente me sentiria sempre como tal. É que uma coisa é ser-se diplomata, com esse estatuto e a precariedade cómoda da estada, outra coisa é ser-se um cidadão estrangeiro comum, mesmo que ex-diplomata, a viver para sempre numa sociedade estrangeira.

O que é que eu faria hoje por Oslo, onde teria de ter uma fortuna para aí conseguir viver? Que conhecimentos por lá teria entretanto cultivado? E a falta de sol? Não estou a ver-me por ali.

Os meus amigos angolanos desculpar-me-ão se eu não elaborar sobre as razões por que não me apeteceria nunca viver na Luanda dos nossos dias, talvez as mesmas que levam a que a grande maioria deles viva hoje ... em Portugal. 

Londres é uma cidade ótima para se viver (bem)? Isso é uma evidência e sempre vi a capital britânica como o local estrangeiro onde me sentiria melhor (com ou sem Brexit). Porém, tenho a sensação de que, mesmo que tivesse uma casa em Hampstead (como o meu amigo Hélder de Macedo), ia sentir-me sempre algo isolado. E talvez infeliz.

Depois viria Nova Iorque, talvez a cidade do mundo onde me senti menos estrangeiro, porque ela própria é feita de gentes de várias origens, sob uma lógica comportamental muito simples. Mas acaso gostaria de viver por lá? Talvez em Downtown Manhattan ou no Upper West Side. Mas dar-me-ia bem, naquela babel individualista, sem a vida profissional intensa que por lá tive? Não me parece.

Viena? Nunca por nunca me senti confortável numa cidade onde não falo a língua, fechada sobre si mesma e, agora cada vez mais, sobre o mundo. 

Com uma casa agradável no Lago Sul, é muito fácil viver-se em Brasília (onde, com orgulho, sou um dos poucos estrangeiros com o título de cidadão honorário). Mas teria de me ter saído a lotaria (coisa complicada para quem nunca comprou um bilhete, nunca jogou no Totoloto ou no Euromilhões e não aposta na bolsa) para poder ter uma vida boa na capital brasileira, tão boa que permitisse viajar... para Portugal, como fazem regularmente os meus (muitos) amigos brasilienses. 

Resta Paris e, nesse caso, não tenho a menor dúvida: gosto de passar por lá, almoçar ou jantar com amigos, comprar livros, ver exposições ou espetáculos, "mais c'est tout!" Viver em Paris, para sempre, foi uma ideia que nunca se me colocou.

Não, não viveria nunca, em definitivo, no estrangeiro. Gosto da terra onde nasci, a única da qual posso dizer "cobras e lagartos", coisa que faz parte desta nossa maneira cruel de olharmos para nós próprios, sem termos o sentimento culposo de estar a trair a hospitalidade com que somos acolhidos. Portugal é a "questão que eu tenho comigo mesmo", como disse o O'Neill, mas é onde, sem a menor dúvida, me sinto bem. Ou, para ser mais preciso, onde me sinto melhor.

quarta-feira, abril 19, 2017

Parsons


Um dia de 1989, numa visita ao Brasil, fomos com o José Stichini Vilela a Tiradentes, no Estado de Minas Gerais. Ficámos instalados no Solar da Ponte, da Anna Maria e do John Parsons, seus amigos, um delicioso hotel "de charme" que, à época, era praticamente o único endereço recomendável da região.

A Anna Maria e o John não eram uns proprietários quaisquer. Eram pessoas muito interessantes, intelectualmente ricas, com um "savoir faire" que dava ao local um requinte que se manteve ao longo dos anos e das diversas vezes que por lá passámos. 

Nos anos 70, ambos tinham decidido trocar Londres por Tiradentes, pequena cidade por que se apaixonaram e onde criaram o Solar da Ponte. Não viviam no Solar, habitavam na parte alta da cidade, numa bela casa onde jantámos por mais de uma vez, em conversas infindas, nas quais revíamos os nossos amigos comuns - e tantos eram, desde a Sofia e do António Pinto da França aos expoentes culturais de Ouro Preto, Ângelo Oswaldo e Guiomar de Grammond, passando pela Tânia e pelo Eros Grau, juiz do Supremo Tribunal, vizinhos do Solar. E alguns outros, porque pertencíamos à "raça" de gostar de fazer amigos.

O John, engenheiro e industrial inglês, tinha-se dedicado à preservação de Tiradentes, "went native" pela localidade, para a qual olhava com um carinho muito próprio. Lembro-me de belas noites quentes em que nos foi mostrar peças da paisagem urbana, que descrevia com carinho, naquele seu insuperável sotaque.

A Anna Maria, uma mulher brilhante e inteligente, era historiadora, viamo-la sempre cheia de projetos, estava ligada à Universidade de Ouro Preto, mas não só. Era uma mulher com a força da natureza e uma alma de entusiasmo, que combinava bem com a serenidade imaginativa do John.

Quem se hospedou no Solar nunca mais terá esquecido daquele sereno chá das cinco (crianças com menos de oito anos não eram ali admitidas, sorry!), servido na ampla sala de cima, um hábito seguramente trazido pela influência britânica do John. 

O John morreu, há pouco mais de um ano. A Ana Maria, que sabíamos doente, acaba de desaparecer, dizem-me agora. 

Espero que o Solar da Ponte permaneça ali por Tiradentes, memória desse casal luminoso, a lembrar o restaurante local, o "Tragaluz", onde, na última ocasião em que estivémos juntos, convidámos a Anna e o John para jantar.

Ócio forçado

Quase dez horas num avião são, para mim, um desafio bem revelador. Desde logo, configura uma desilusão comigo mesmo: não leio as várias revistas que comprei no aeroporto, fiquei muito aquém no consumo da pilha de jornais que trouxe, o livro que tinha para acabar continua quase como o comecei, uma notas para um texto que contava fazer ficaram para a próxima. Depois, foi a tragédia das vitualhas: comecei por abrir um saboroso parêntesis num projeto de redução de exageros culinários que (embora sem grande convicção) trazia esquiçado, porque o menu era magnífico, havia uns alcoóis imperdíveis e só se vive uma vez (e desconfio que esta é a última). Seguiram-se os filmes: sem paciência para coisas deprimentes, idem para comédias idiotas, dei comigo a saltitar entre coisas de forte ação, tiros e carros espatifados, desde que sem sangue - até porque, nesse domínio, já tinha lido o "Correio da Manhã" à saída de Lisboa. Enfim, concluo, se acaso fosse dado a frustrações, teria de sair deprimido por não ter "acertado uma" no meu esforçado planeamento. Como não sou, acabo por gozar comigo mesmo e com a minha recorrente ingenuidade. É que amanhã, quando regressar à Europa, sei que vou fazer exatamente o mesmo, tendo, claro, o mesmo resultado. Não aprendo, ou melhor, vou aprendendo a aceitar-me como sou.

terça-feira, abril 18, 2017

O passado é uma coisa muito séria

Nós, os portugueses, temos uma relação muito curiosa com o passado. País "com História a mais", vimo-la apropriada de forma despudorada pela ditadura, que a utilizou como pretenso fator da unidade nacional que pretendeu forjar em seu reforço, adubando o nosso orgulho nesses tempos da busca das Índias e dos Brasis, espalhando, na passada, "a fé e o império".
O Estado Novo, ao construir a sua narrativa sobre a "gesta" lusitana por mares e terras nunca dantes navegados ou pouco pisados, instilou-nos, parece que para sempre, a ideia mirífica de que o colonialismo português era "menos mau do que o dos outros", de que, ainda hoje, somos "menos racistas" do que as gentes dos restantes países, de que a miscigenação feita foi a prova provada da nossa tolerância, bondade e moderação enquanto povo. A teoria do "bom selvagem" foi, entre nós, substituída pelo mito do "bom civilizador".
No Portugal depois de abril, logo que exorcizadas politicamente as guerras coloniais através da independência das colónias, foi-se instalando subliminarmente, embora já em democracia, uma surpreendente leitura benévola do colonialismo lusitano. Há que perceber por que é que isso foi feito: tratou-se de uma espécie de compromisso para a reconciliação nacional, entre os que, agora já forçadamente por cá, tinham sofrido com o termo do período colonial e os anti-colonialistas, vitoriosos históricos. Essa leitura de compromisso, concessão destes últimos, conviveu sempre mal com exegeses mais rigorosas do normativo que Portugal impôs, ao longo dos anos, na sua dominação colonial, e que nos não deixam muito bem na fotografia (leia-se a obra de alguém como Charles Boxer para se ter uma ideia melhor disto). E, sejamos honestos, nos últimos anos temos assistido ao país (repito, democrático) a dar-se como que absolvido de todo esse passado, procurando esquecer os seus recortes sombrios, desde que a relação com os novos Estados saídos das zonas colonizadas se "normalizasse". Sem ironia: como se o MPLA e a Frelimo fossem os "legítimos representantes" dos escravos acarretados à molhada pelos negreiros para o Brasil.
Não sou um grande fã das "desculpas" históricas, dos arrependimentos no tempo presente por atos no passado, cometidos em contextos diferentes, à luz de valores da época. Mas há alguns limites para esse "relativismo". A escravatura, as desumanidades decorrentes de se não considerarem os negros como pessoas, da mesma maneira que mais tarde os crimes nazis, não podem nunca ser absolvidos através de uma contextualização benévola. Posso assim perceber o que Mário Soares disse sobre o tratamento dado aos judeus ou o discurso do Vel d'Hiv de Jacques Chirac, sobre o miserável colaboracionismo francês durante a ocupação nazi. E não posso senão saudar o que Emmanuel Macron, para surpresa de muitos, disse sobre o colonialismo francês na Argélia.
É nossa obrigação olhar para a frente, falar para as novas gerações, às quais é importante criar "alertas" éticos e humanistas, induzir noções concretas daquilo que fez avançar a História (como as descobertas), mas igualmente das tragédias que isso implicou (como a escravatura). A melhor defesa para tentar garantir Portugal como um espaço de tolerância, de aceitação da diferença, resistente aos cantos das sereiras populistas e radicais é falar do passado colonial abertamente: da genialidade do Infante ou da coragem de Gil Eanes no Bojador, mas também dos massacres de Wiriamu, da Baixa do Cassange ou de Batepá.
Fernanda Câncio, num excelente artigo no DN de ontem (que pode ser lido aqui), intitulado "Fomos sempre tão amigos dos pretinhos", põe o dedo no lugar da ferida onde ela dói mais. Fá-lo a propósito de uma deslocação do presidente da República a Gorée, no Senegal, um dos lugares mais emblemáticos da barbárie escravocrata. E do que ele por lá disse, que escandalizou muita gente, por alguma ligeireza na abordagem que então fez.
A jornalista tem toda a razão e ao presidente da minha República, cujo comportamento neste primeiro ano de mandato globalmente tenho vindo a saudar (com tanta ou mais autoridade quanto não votei nele), não consigo admitir que, ao enveredar por um tema com esta delicadeza, o tenha feito num registo impressionista que não está à altura do homem culto e sabedor que (felizmente) hoje temos em Belém. E que, como pessoa, é indiscutivelmente um homem sensível e humano.
Há uns anos, quando vivia em Paris, ouvi Nicolas Sarkozy fazer, em Dakar, um discurso vergonhoso sobre a realidade africana e o modo como a França (dele) a olhava. Lembro-me de ter então pensado que, se um qualquer dirigente do meu país ousasse um dia dizer aquelas coisas (Sarkozy pronunciaria, anos mais tarde, em Grenoble, infâmias de idêntico jaez, dessa vez a propósito dos estrangeiros e dos franceses "diferentes", na sua mimetização à extrema-direita), eu me sentiria profundamente envergonhado. Não foi nada disso que Marcelo Rebelo de Sousa disse, convenhamos. Muito longe. E, por essa razão, ao contrário de Fernanda Câncio, não fiquei envergonhado. Mas o chefe do Estado de um país talvez "com História a mais", tem de ser muito mais cuidadoso quando olha, no retrovisor, o nosso percurso coletivo. É que o passado é uma coisa muito séria.

segunda-feira, abril 17, 2017

Vacinas

Lá porque há uns anormais que decidem não mandar as crianças à escola, isso não significa que a sociedade, através do Estado, que representa os nossos interesses comuns, não criminalize os progenitores que o não permitem.

O caráter voluntário de certas vacinas, que se justificava num passado em que subsistiam dúvidas quanto à respetiva eficácia, deve ser questionado nos dias de hoje, quando há uma evidência esmagadora sobre a vantagem desse procedimento. Trata-se de defender a saúde pública e, em especial, o interesse das crianças, que são seres humanos com um corpo de direitos próprio, que não são "propriedade" dos pais e, em especial, não podem ser vítimas dos preconceitos destes. Isto tanto é válido para as vacinas como o é para a questão das transfusões de sangue, no caso das "testemunhas de Jeová".

Confesso que não tenho a menor tolerância para este "liberalismo" pateta no domínio da saúde, que põe manifestamente em risco a vida das crianças, como toda a ciência tende a concordar.

"Saudades nossas"


No Natal passado, escrevinhei umas pequenas memórias familiares, em torno de uma velhas tias que fazem para sempre parte do meu mundo afetivo. Editei-as numa pequena publicação, que dediquei à minha família. Hoje, deixo esse texto à eventual leitura dos visitantes deste blogue. Se quiserem dispensar um quarto de hora do vosso tempo, elas aqui ficam.

domingo, abril 16, 2017

Peregrino de primeira classe


(A minha querida amiga Leonor Xavier publicou em livro os testemunhos de sete dezenas de pessoas, subordinados ao título comum "Peregrinações". Porque a dimensão espiritual não fazia, de todo, o meu género, optei por relatar a minha "peregrinação" pessoal pelas principais cidades onde a vida profissional me levou - um pouco ao jeito daquilo que, há uns anos, a própria Leonor fez sobre as casas por onde viveu. Deixo aqui esse texto, agradecendo à mulher-coragem que é a Leonor este seu convite.)

A minha peregrinação, Leonor, não é “interior”, como a do Alçada, nem “ad loca infecta”, como a do Sena.

Um dia, por um acaso da vida, tornei-me peregrino “de primeira classe”. Descia uma rua, encontrei um amigo engravatado, perguntei-lhe o que fazia, disse-me que era diplomata e de haver um concurso próximo para essa carreira. Fiz o exame, fui aceite e comecei a andar pelo mundo. Não fui à aventura, fui com segurança, como peregrino público, pago pelos nossos impostos, para esse mundo que alguns patetas acham “do croquete”, até se verem numa alhada em terras alheias ou na necessidade de terem uma ajuda para um negócio encravado.

Essa minha peregrinação começou na Noruega, com frio e bacalhau, onde fiz o tirocínio para viver no estrangeiro – eu que sempre tinha achado que o estrangeiro era apenas um lugar para férias. Aprendi por ali o bê-à-bá da diplomacia, porque só fora do nosso país isso é possível. O peregrino começava a sua jornada.

Anos depois, as Necessidades entenderam dever dar-me uma experiência radical. E daquela “righteousness” de vida, sem um papel pelo chão e a 90 km/hora nas autoestradas, fui parar a uma Angola caótica, em guerra, sem uma loja aberta, recolher obrigatório noturno, por meses num hotel sofrível em que havia arroz com peixe frito ao almoço e peixe frito com arroz ao jantar. E não é que me diverti imenso! Pudera, com o António Pinto da França como chefe e o Zé Stichini Vilela como colega, os meses passavam depressa, com o Mussulo e a Barra do Kuanza para atenuar as neuras, que nunca foram muitas.

Regressei, depois, a Lisboa. Portugal iniciava a sua aventura europeia e eu entrei nela desde o primeiro dia. Era um mundo novo. Íamos a Bruxelas como quem ia a Meca. Sabíamos que parte do nosso futuro estava por ali, embora, à época, não sonhássemos quanto a nossa vida coletiva ia depender dessa Europa. Viajei muito pelo mundo, por esses tempos: por todos os continentes (mesmo todos!). Peregrinava em nome e em representação do país, estudando, de caminho, o modo como nos viam lá por fora.

Um dia, porque as peregrinações diplomáticas não podem parar, fui parar à Corte de St. James. Foi um privilégio poder viver no país mais idiossincrático do mundo, que tem de si mesmo uma ideia tão elevada que, às vezes, roça o caricato – e eles sabem! Londres é, foi, uma das mais belas cidades do mundo para viver.

Até um dia. Lisboa de novo. É assim a vida. Fui para o governo. Outra vez as coisas da Europa como destino. E o peregrino, agora tomado de empréstimo pela política, continuou a andar. Muito, talvez demasiado, até se cansar. Aeroportos sobre aeroportos, quartos de hotel como residência precária, falso turismo muito urbano e sempre “à vol d’oiseau”. Fiquei vacinado. Uhf!

Depois, a peregrinação fez-me assentar vida, levou-me para Nova Iorque. Trabalho, mesmo muito trabalho, vida muito diferente, exigente, tensa. Mas com imensa graça, desafiante, naquela cidade que, para nós, é a porta da América e, para os americanos, já “cheira” a Europa. Por lá, nesse tempo, ali ao meu lado, caíram as Twin Towers. Vi mudar a América, pressenti claramente que qualquer coisa de essencial ia acontecer pelo mundo. E assim seria.

Viena foi o destino seguinte da peregrinação. Mas a “música” por lá era outra, o trabalho também, a gestão dos despojos politicos da Guerra Fria. De lá parti várias vezes, em peregrinação acessória, pelas terras fascinantes do Cáucaso e da Ásia Central. E da Ásia mais distante, e do Médio Oriente e de alguma África. E, uma vez mais, viajei imenso, aprendendo bastante – e aprender, aprendi eu, é a melhor coisa da vida.

Depois, Leonor, você sabe: foi o Brasil, uma espécie de descoberta de nós mesmos noutros tempos, uma peregrinação através das viagens que outros, antes, já haviam feito por nós. No Brasil, aprendi que não há nada de mais distante e distinto do que aquilo que temos a tentação de ver como muito próximo. O Brasil foi o deslumbre, a graça de uma existência sorridente, alegre, uma ilusão consentida.

E, finalmente, o meu sonho geracional fez-se. A peregrinação teve Paris como penúltimo porto. O Paris que eu sonhara na juventude, com um pai francófilo e francófono, ali estava, com uma comunidade portuguesa que também peregrinara pela corda da vida, de Champigny à atualidade próspera de muitos. Eram as livrarias, as brasseries, os passeios a beira-Sena ou pela França profunda. Belos tempos.

Um dia, com naturalidade, chega-se ao fim dessa peregrinação privilegiada, de “primeira classe”. Lisboa, o país, onde tudo começou, é onde tudo vai acabar, serenamente, com a família, os amigos, as tertúlias, a boa mesa, as leituras e as escritas. É o olhar para trás que verdadeiramente nos faz ter consciência da peregrinação feita, onde se recorta uma vida onde a sorte, que deu trabalho, nos dá a felicidade possível. Nem mais nem menos. 

sábado, abril 15, 2017

O governo das mulheres...


Foi o meu amigo Elísio Neves - figura a quem Vila Real deve imenso, pelo seu culto de memória das coisas da cidade "e do seu termo", como antes se dizia - quem ontem me ofereceu um pequeno livro que recolhe crónicas de Manuel Cardona. 

Trata-se de uma personalidade referencial do ensino secundário em Vila Real, naquele tempo em que os professores tinham "um nome" e o acesso ao liceu, onde era uma figura marcante de pedagogo, era um bem escasso e para muito poucos. Não cheguei a tê-lo como professor, mas recordo-me bem de o ver assomar à varanda da sua casa, frente ao Barracão, quando, todos os 1° de dezembro, fazíamos a ronda de saudação aos antigos professores.

O motivo da sua "chamada" a este blogue é simples. A Câmara Municipal de Vila Real e o Grémio Literário Vila-Realense editaram recentemente, organizada por Elísio Neves, uma recolha de Crónicas de Manuel Cardona, cuja obra de poeta, cronista e homem de teatro já fora tratada por António Manuel Pires Cabral numa iniciativa anterior do Grémio.

Ao ler no pequeno volume uma carta dirigida à futura mulher, escrita durante período convulso da primeira e grande revolta contra a ditadura militar, o 3 a 7 de fevereiro de 1927, deparei com este delicioso texto, em que se combinam a ironia e uma afetividade elegante, numa espécie de exorcismo lírico do ambiente de forte tensão que então se vivia. Apreciem:

"Os homens não se entendem. Os governos masculinos, mesmo fardados - e estava nestes o último reduto da nossa fé -, arrostam também os seus perigos e vivem horas de intranquilidade e de sobressalto. O que resta, então? Bem o sabes -, e eis a razão do envio destas linhas.

Um governo de mulheres, de mulheres bonitas -, é bom de ver... Nada de violências inúteis, nem de canhões: - vocês próprias terão o cuidado de fazer a seleção...

E só então a paz, a tranquila e santa paz harmoniosa, voltará aos nossos lares! À continência sucede o madrigal; às grades das prisões, a cadeia enternecida de uns braços de mulher... E a já velha frase: - "isto é descer, Marquesa?"  -, será substituída por esta outra, mais deliciosa: "isto é subir, rapazes!"

sexta-feira, abril 14, 2017

Abrantes à vista?


A política externa das principais potências não costuma trazer grandes surpresas. O peso dos interesses, estratégicos ou outros, que define o rumo dos países na ordem internacional raramente é abalado de forma radical. Episódios de conjuntura podem determinar correções de percurso, mas o essencial permanece, numa lógica de “ciclos longos”.

A subida ao poder de Donald Trump indiciou, numa leitura imediata, uma possível rutura com o quadro tradicional da ação externa dos Estados Unidos. Um punhado de bravatas, que roçavam a irresponsabilidade, haviam sido adiantadas durante a campanha e, com naturalidade, os aliados dos EUA preocuparam-se. 

A América não é um país qualquer, é a maior potência mundial, sendo, desde há décadas, o principal “produtor de segurança” para quantos se revêm na ordem demo-liberal ocidental. Ao falar da Rússia e da NATO como começou por falar, Trump fez disparar o “alerta vermelho” nos aliados que tinham Washington como uma constante segura nesse domínio. Mas, por si próprios, pouco podiam fazer, restando-lhes esperar que o peso da realidade e os “checks-and-balances” da democracia americana funcionassem.

Trump construiu uma administração “business oriented”, ou seja, determinada nas suas opções pelos negócios e interesses económicos. Levou para a Casa Branca a agenda simplista de que os EUA vinham de décadas de ingenuidade no plano externo e que era importante corrigir essa “injustiça”, que impactava no orçamento de Washington e nas contas externas do país, deixando-o à mercê de outros. Desconfiado do mundo dos tratados multilaterais, Trump optou pelo confronto bilateral musculado – com o México, com a Alemanha (isto é, a Europa que conta), com a China, etc. Em poucas semanas, terá feito, contudo, um curso intensivo de realismo. 

Há um mundo de dificuldades na política que não se compadece com a ligeireza impressionista do voluntarismo arrogante. E há muitos interesses a ter em conta.

A Rússia terá sido, porventura, a maior lição. Por razões que só o tempo explicará, Trump alimentou a ilusão de que o país derrotado e humilhado pelos EUA, no termo da Guerra Fria, ia poder converter-se num dócil aliado, quiçá passível de ser subcontratado para tarefas de interesse comum, em áreas onde os americanos pretendessem “desengajar” militarmente no futuro. 

Em algumas semanas, os poderes fáticos - militares, económicos e outros – dentro dos EUA encarregaram-se de baralhar os cenários de reversão estratégica do nóvel presidente. E aí está Trump em rota de colisão com Moscovo, com a NATO a deixar de ser obsoleta para passar a indispensável. 

Nem tudo estará exatamente como dantes, mas, neste domínio, o quartel-general já estará a regressar a Abrantes.

quinta-feira, abril 13, 2017

Claques



Não fico minimamente surpreendido com a notícia de que a claque do Porto cantou aos benfiquistas, num jogo de uma modalidade qualquer, um refrão a desejar que fosse o clube da Luz a estar no acidente que matou a equipa do Chapecoense.

Sendo essas trupes dominadas por energúmenos fanáticos, não raras vezes tendo por ali gente ligada ao mundo do crime e ao radicalismo político, acobardados no anonimato ululante e alarve das bancadas (vejam-se, de perto, imagens dessa gente, para se ficar com uma melhor ideia da natureza do pessoal que por ali anda), só mesmo os ingénuos se podem espantar.

Mas o que já me surpreende um pouco mais é a "lata" - e isto é um "understatement", para não ser desagradável - com que alguns comentadores, nos "media" e nas redes sociais, a "armar ao sério", tentam atenuar o escândalo, lembrando a escassez de virtudes das outras claques, num triste "whataboutism" desculpabilizante: "Ai disseram isso?! E então os outros que, naquele outro dia, fizeram e aconteceram?..."

É uma evidência que as claques do Sporting, do Benfica, bem como algumas mais, estão ao mesmíssimo nível rasteiro da do Porto, como se vê todas as semanas pelo seu comportamento e pelos incidentes que protagonizam. Todos pagamos essa javardice coletiva, através do custeio de todo o policiamento que excede as responsabilidades do mundo do futebol, bem como pelo exemplo que dão ao país. Os palermas de Torremolinos são, no fundo, as "jotas" dessa "escola".

As claques clubistas devem ser medidas, aliás, exatamente pela mesma rasa que deve ser utilizada para a consideração devida às "distintas" figuras do respetivo dirigismo "desportivo" - como Pinto da Costa, Vieira ou Bruno de Carvalho -, os quais, ao seu nível, se lhes equiparam, no atiçamento regular das suas turbas, com a vergonhosa cumplicidade com a comunicação social, que lhes magnifica e promove a arrogância pesporrente.

Estão todos bem uns para os outros. Por isso, melhor fariam os respetivos adeptos comentadores se optassem por usar critérios éticos e morais de apreciação deste comportamento das claques, não poluídos por banais fanatismos clubistas. Mas esta é uma esperança vã, como já se verá pelos comentários...

Política "à la française"



De há uns anos para cá, em especial com a intensidade contemporânea dos fluxos de informação, muitos nos sentimos envolvidos nos processos eleitorais dos principais países do mundo. Se a isso somarmos as nossas naturais preferências ideológicas, acabamos por ter nesses sufrágios os nossos favoritos, declarados ou não.

Na política francesa, que sigo com bastante pormenor desde os anos 60, soube sempre "o que queria". Nunca hesitei. Cheguei a ir de propósito a França só para "ver eleições". E, este ano, lá irei de novo, entre as duas voltas. Repetindo Benjamin Franklin: "tout homme a deux patries: la sienne et puis la France".

Nas eleições presidenciais francesas que aí vêm, e pela primeira vez, não tenho o "meu" candidato. O que me interessa é que um determinado candidato perca, e que qualquer um - qualquer um! - dos outros ganhe. Ou melhor, intimamente, "torcerei" pelo candidato que tiver, à partida, mais condições de vencer aquele que eu quero ver derrotado.

É uma sensação estranha, mas muito verdadeira.

Acesso à carreira diplomática





quarta-feira, abril 12, 2017

Morrer na cama

O seu nome não interessa para aqui. Era um grande (imenso) amigo da minha família, lá por Vila Real. Oposicionista declarado ao Estado Novo, assinara as famosas listas do MUD e, por virtude disso, teve problemas sérios na sua carreira de funcionário público. Era uma pessoa muito divertida, alegre, de cuja simpática companhia, em muitas noites lá em casa, ao tempo da minha juventude, me recordo sempre.

Salazar era o seu ódio de estimação. Detestava o ditador com todas as suas forças. A "situação" estragara-lhe a vida, perseguira-o e ele, claro, não perdoava. Na sua linguagem superlativa e colorida de oposicionista radical - não era comunista, era apenas "do reviralho" - apodava o "botas" de Santa Comba de tudo quanto eram nomes depreciativos.

Um dia de Verão de 1968, surgiu-nos visivelmente feliz: "Já sabem a novidade?! Dizem que o "botas" está com os pés para a cova! Caiu, ao que parece".

A tragédia pessoal do ditador, naquele instante, não permitia, humanamente, que comungássemos abertamente da sua satisfação, se bem que, quer eu quer o meu pai, sentíssemos que uma era de esperança podia abrir-se a partir dela.

Mas o nosso amigo, nessa noite, estava imparável. E continuou: "Mas, cá no fundo, estou triste!". Ao ouvir isto, invadiu-nos um sentimento de estranheza. Seria algum remorso pelo gozo que o acidente de Salazar lhe dava?, pensei eu. Qual quê! Não era nada disso! "É que o bandido vai morrer na cama! Devia ter levado com uma bomba, com um tiro, por todo o mal que fez a tanta gente, pelas prisões, pelas torturas, pela miséria a que condenou este país! Mas não, lá está ele no hospital, rodeado daquela canalha política, cheio de médicos à volta. E vai acabar por morrer na cama! É uma grande injustiça!" Rimo-nos muito deste extremismo, com muita verdade pelo meio, que exorcizava uma vida de revolta.

Salazar ainda demoraria mais de um ano a morrer, mas não tenho nota de como esse amigo reagiu, na circunstância. Apenas sei que a alegria com que, anos mais tarde, recebeu o 25 de abril iria ser rapidamente ultrapassada. Por questões no âmbito profissional, entrou em conflito com estruturas sindicais ou de trabalhadores e teve pesados dissabores. De feroz oposicionista passou a ser, em poucos meses, um afirmado direitista, embora, creio, sem a menor atividade partidária. A esquerda transformar-se-ia na sua "bête noire" e o seu espírito azedou muito, com o avançar da idade. De muito divertido passou a sardónico, sarcástico e ácido: a sua intolerância mudara de sinal. Progressivamente, deixou de aparecer lá por casa, e, embora sem um mínimo de acrimónia no relacionamento pessoal, afastou-se bastante. Os meus pais sentiram e lamentaram isso.

Um dia, ao tempo em que eu estava num governo socialista, cruzei-o num restaurante: "Então agora andas metido com esses gajos!" Ele tinha suficiente confiança comigo, a quem conhecia desde criança, para me dizer isso naquele tom. Eu não tive coragem, pela diferença de idades e pelo respeito que lhe devia, para lhe responder o que me apetecia. Sem exceção, toda a minha família que ele conhecia desapareceu entretanto. Ele também mudou há muito de cidade. Nunca mais o vi e, confesso, tenho alguma pena. Afinal, em comum, tivémos alguns anos de forte amizade e muita estima. E isso não é pouco. A ser vivo, o que duvido, será já muito idoso.

terça-feira, abril 11, 2017

O lado onde se está

O Conselho de Finanças Públicas fez uma descoberta: a consolidação das contas públicas em 2016 foi quase toda feita do lado da despesa. E afirma isto em tom crítico.

Não resisto a imaginar o que o venerando CFP diria se a consolidação tivesse sido feita do lado da receita.

Tudo depende do lado onde se está, não é?

O pingo de solda


Na minha infância, o meu pai contava uma história que, na minha família, ficou conhecida como "o pingo de solda".

Uma senhora queixara-se à polícia de que dois trabalhadores, que tinham ido fazer um trabalho elétrico a sua casa, se tinham envolvido numa acesa disputa, com agressões e insultos mútuos, diante dos seus filhos muito jovens. A cena fora tão violenta e a linguagem tão desbragada e vernácula que a senhora entendeu por bem chamar a polícia. (Estamos a falar de outros tempos, em que estas coisas escandalizavam). E os operários foram levados para a esquadra.

Lá chegados, os visados estiveram muito longe de confirmar a versão da senhora. E um deles explicou, cândido: "As coisas não se passaram assim. O que ocorreu é que o meu colega, o Alberto, que estava no alto de uma escada que eu segurava, soldava uns fios. Inadvertidamente, sem a menor intenção, deixou escapar da máquina com que trabalhava um pingo de solda, incandescente, que me caiu no pescoço. Confesso que isso me incomodou um pouco! Daí que eu tivesse exclamado: "Ó Alberto! Vê lá se, para a outra vez, tens mais cuidado! Nada mais!" "

O grau de plausibilidade da cena era mais do que evidente...

Tenho-me lembrado muito da história do "pingo de solda" ao ouvir as angélicas descrições sobre os desacatos produzidos por estudantes portugueses em hotéis no sul de Espanha. E também me vem à memória uma frase que, na minha terra, se usava para este tipo de energúmenos: "Quem te atasse um arado!"

A zurrapa


Ontem, durante uma palestra que proferi no Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, referi um episódio diplomático ocorrido há duas décadas.
Por essa altura, defrontavam-nos com o facto da África do Sul produzir uma espécie de "vinho do Porto", que comercializava para os países vizinhos. No quadro da União Europeia, Portugal procurava proteger aquela sua denominação de origem e fazer pressão para que os sul-africanos descontinuassem a designação de "Porto" associada a esse vinho, conformando-se às regras internacionais. Por tática negocial, a Comissão Europeia propunha um "phasing-out" progressivo, com um certo calendário. Eu defendia uma aceleração desse periodo, que entendia mais consonante com os interesses dos nossos produtores e exportadores. Um dia, a questão subiu ao Conselho de Assuntos Gerais, como então se chamava a reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros. Portugal estava nela representada por Jaime Gama, acompanhado por mim. Expliquei ao ministro a política que, sobre o assunto, tinha vindo a seguir nos meses anteriores, no tratamento do assunto.
Sem pôr em causa essa orientação, mas talvez pela importância conjuntural de algum outro dossiê bilateral nosso com a RAS que eu desconhecia, observei que Jaime Gama se mostrava algo contemporizador face à posição sul-africana de calendário, com o qual, aliás, a Comissão concordava e que eu teimava em contestar.
Foi então que lhe ouvi este singular argumento: "Não é de todo mau que os sul-africanos e os seus vizinhos se habituem a beber essa "zurrapa", como você lhe chama. É que isso indu-los, a preços baixos, ao consumo de vinhos generosos, o que não deixa de ser um bom princípio. Assim, quando um dia vierem a ter o ensejo de provar o verdadeiro Vinho do Porto, eles logo perceberão a imensa diferença de qualidade com aquilo a que se tinham habituado, aceitando talvez pagar o verdadeiro Porto a outro preço...".
não me recordo como o assunto terminou, nem sei do eventual sucesso da pressão comunitária no quadro da Organização Mundial do Comércio, mas o argumento de Gama não deixava de ter algum sentido. E graça.

segunda-feira, abril 10, 2017

Ex-embaixador? Antigo embaixador?

A partir do momento em que, por concurso público, ingressa na sua carreira, um diplomata passa por sucessivas categorias, desde que, para tal, tenha tempo mínimo de serviço em cada uma e lhe sejam reconhecidas condições de ascensão: adido de embaixada, secretário de embaixada, conselheiro de embaixada, ministro plenipotenciário e, finalmente, embaixador. Como é óbvio, nem todos os diplomatas ascendem até ao topo da carreira.

Quando um diplomata chega à categoria de ministro plenipotenciário, a penúltima da hierarquia da carreira, fica qualificado para poder chefiar uma embaixada. Se isso acontecer, fá-lo-á "com credenciais de embaixador". Nesse caso, é-lhe atribuído o título de "embaixador em X", sendo o X a capital ou o país onde está acreditado. 

A tradição e a gentileza diplomáticas mandam a que, no âmbito interno do MNE, quem alguma vez tenha exercido essas funções passe a ser tratado no futuro por "embaixador", independentemente das funções que vier a exercer. Mas não é a esses casos que pretendo referir-me.

Por escolha ministerial, alguns ministros plenipotenciários, desde que possuam determinada antiguidade nessa categoria, podem ser promovidos à mais elevada categoria da carreira - a de embaixador.

Para distinguir estes embaixadores daqueles que apenas têm "credenciais de embaixador", havia a tradição de designar os primeiros por "embaixadores de número" (no Reino Unido por "full rank ambassadors" e em França por "Ambassadeurs de France"). O "número" queria significar que o quadro destes embaixadores é muito restrito, apenas com cerca de 30 lugares (varia ligeiramente com as saídas do quadro para a chefia de lugares junto das Organizações Internacionais). 

Pode entender-se a confusão que por vezes ocorre, pelo facto de alguns ligarem a designação de embaixador à chefia de uma missão diplomática, partindo-se do princípio de que, saindo do posto, o diplomata que aí exercia funções como embaixador deixaria de ter direito a essa designação. Isso é verdade para os ministros plenipotenciários que exerceram essas funções "com credenciais de embaixador", mas não o é para os que entretanto ascenderam ao grupo de embaixadores "de número".

Vale a pena lembrar que houve diplomatas que chegaram ao topo da carreira diplomática sem nunca terem chefiado uma embaixada. Um exemplo? Franco Nogueira, que nunca ninguém deixou de tratar como embaixador, designação a que tinha pleno direito, não obstante o posto mais elevado que exerceu no estrangeiro ter sido o de cônsul-geral.

A regra para olhar estes casos é muito simples: um embaixador tem um estatuto exatamente similar ao de um general ou de um almirante. E, que eu saiba, ninguém se lembra de chamar a estes últimos "ex-generais" ou "ex-almirantes", quando se aposentam ou passam à reserva. A um diplomata que já não esteja no ativo pode, em rigor, chamar-se "embaixador aposentado" ou "embaixador jubilado" (são coisas diferentes uma da outra), do mesmo modo que também se pode designar um "general na reserva".

No meu caso pessoal, tendo passado a integrar a categoria de embaixador "de número" desde 2001, tendo depois ocupado e ultrapassado os três escalões progressivos dentro da categoria, de três anos cada um, sinto-me no pleno direito de protestar sempre que alguém me designa por "ex-embaixador" ou "antigo embaixador".

Porque esta questão se coloca, na maioria das vezes, por simples desconhecimento dos factos, aqui os deixo explicados, da forma mais simples possível, "à toutes fins utiles".

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...