quarta-feira, abril 12, 2017

Morrer na cama

O seu nome não interessa para aqui. Era um grande (imenso) amigo da minha família, lá por Vila Real. Oposicionista declarado ao Estado Novo, assinara as famosas listas do MUD e, por virtude disso, teve problemas sérios na sua carreira de funcionário público. Era uma pessoa muito divertida, alegre, de cuja simpática companhia, em muitas noites lá em casa, ao tempo da minha juventude, me recordo sempre.

Salazar era o seu ódio de estimação. Detestava o ditador com todas as suas forças. A "situação" estragara-lhe a vida, perseguira-o e ele, claro, não perdoava. Na sua linguagem superlativa e colorida de oposicionista radical - não era comunista, era apenas "do reviralho" - apodava o "botas" de Santa Comba de tudo quanto eram nomes depreciativos.

Um dia de Verão de 1968, surgiu-nos visivelmente feliz: "Já sabem a novidade?! Dizem que o "botas" está com os pés para a cova! Caiu, ao que parece".

A tragédia pessoal do ditador, naquele instante, não permitia, humanamente, que comungássemos abertamente da sua satisfação, se bem que, quer eu quer o meu pai, sentíssemos que uma era de esperança podia abrir-se a partir dela.

Mas o nosso amigo, nessa noite, estava imparável. E continuou: "Mas, cá no fundo, estou triste!". Ao ouvir isto, invadiu-nos um sentimento de estranheza. Seria algum remorso pelo gozo que o acidente de Salazar lhe dava?, pensei eu. Qual quê! Não era nada disso! "É que o bandido vai morrer na cama! Devia ter levado com uma bomba, com um tiro, por todo o mal que fez a tanta gente, pelas prisões, pelas torturas, pela miséria a que condenou este país! Mas não, lá está ele no hospital, rodeado daquela canalha política, cheio de médicos à volta. E vai acabar por morrer na cama! É uma grande injustiça!" Rimo-nos muito deste extremismo, com muita verdade pelo meio, que exorcizava uma vida de revolta.

Salazar ainda demoraria mais de um ano a morrer, mas não tenho nota de como esse amigo reagiu, na circunstância. Apenas sei que a alegria com que, anos mais tarde, recebeu o 25 de abril iria ser rapidamente ultrapassada. Por questões no âmbito profissional, entrou em conflito com estruturas sindicais ou de trabalhadores e teve pesados dissabores. De feroz oposicionista passou a ser, em poucos meses, um afirmado direitista, embora, creio, sem a menor atividade partidária. A esquerda transformar-se-ia na sua "bête noire" e o seu espírito azedou muito, com o avançar da idade. De muito divertido passou a sardónico, sarcástico e ácido: a sua intolerância mudara de sinal. Progressivamente, deixou de aparecer lá por casa, e, embora sem um mínimo de acrimónia no relacionamento pessoal, afastou-se bastante. Os meus pais sentiram e lamentaram isso.

Um dia, ao tempo em que eu estava num governo socialista, cruzei-o num restaurante: "Então agora andas metido com esses gajos!" Ele tinha suficiente confiança comigo, a quem conhecia desde criança, para me dizer isso naquele tom. Eu não tive coragem, pela diferença de idades e pelo respeito que lhe devia, para lhe responder o que me apetecia. Sem exceção, toda a minha família que ele conhecia desapareceu entretanto. Ele também mudou há muito de cidade. Nunca mais o vi e, confesso, tenho alguma pena. Afinal, em comum, tivémos alguns anos de forte amizade e muita estima. E isso não é pouco. A ser vivo, o que duvido, será já muito idoso.

7 comentários:

Anónimo disse...

Nao ha maiores desilusoes que as grandes ilusoes, passe a repeticao.

Anónimo disse...

Contava-se que no tempo de Salazar, havia um sujeito que chegava de manhã à Brasileira, pedia um café e o Diário de Notícias, olhava para a primeira página e deitava o jornal fora. Um dia o empregado não resistiu e perguntou porque fazia aquilo. Respondeu que só lia cronologia. O criado observou que essa vinha nas paginas interiores e o sujeito respondeu: "a que eu quero não "
Fernando Neves

Anónimo disse...

Não seria o "Diário da Manhã" em vez do "Diário de Notícias"?...É que eu vi fazer o mesmo, lá na Brasileira, a um poeta bem conhecido que morreu novo, e foi com o famigerado "Diário da Manhã"...

Anónimo disse...

Natalie que vive em Roubaix foi à procura do fotógrafo que fez fotos dos portugueses em França, mas sem esperança, já tinha sido há muito tempo, não podia estar vivo. Mas está, Gérard bloncourt tem 90 anos, de saúde e recomenda se. Talvez se passe o mesmo.

Anónimo disse...

E não será necrologia?

carlos cardoso disse...

"De feroz oposicionista passou a ser, em poucos meses, um afirmado direitista"
Com esta afirmação o Senhor Embaixador parece esquecer-se que havia afirmados direitistas que eram ferozes oposicionistas. Não eram decerto a maioria mas eram bastante mais que casos isolados, nomeadamente nos círculos empresariais. Muitos defensores da economia liberal (direitistas, portanto) estavam convencidos, na minha opinião com razão, que a política proteccionista de Salazar mais não fazia que manter o país na miséria. Eram portanto oposicionistas.

Isabel Seixas disse...

Sabe às vezes penso que nesse reducionismo ocasional do estar de momento perdemos a essência, o separatismo filosófico ideológico perde-se do olha para o que eu faço.

Tenho tido excelentes vivências de humanismo com pessoas a quem só tinham ensinado a votar na setinha ó pra cima e que de facto fazem as obras das linhas orientadoras da Catarina Martins e do jerônimo de Sousa.

Agora morrer na cama dá menos trabalho e despesa e devia ter desconto.

Poder é isto...

Na 4ª feira, em "A Arte da Guerra", o podcast semanal que desde há quatro anos faço no Jornal Económico com o jornalista António F...