Não quero parecer que mantenho alguma particular sanha contra o senhor presidente da República, mas também não quero que se diga que, por um qualquer tipo de piedade, que estou certo que os seus eventuais prosélitos seguramente recusariam, ele entrou já numa espécie de inimputabilidade política. Ora o professor Cavaco Silva, ao tomar decisões que a todos nos afetam, expõe-se naturalmente à avaliação crítica dos cidadãos. E enquanto andar por Belém e essas decisões me desagradarem, aqui direi o que penso sobre elas.
O presidente da República, na noite de ontem, não infringiu nenhum preceito constitucional ao ter solicitado ao primeiro-ministro cessante, e presidente do partido mais votado nas eleições, para avaliar da possibilidade de encontrar uma solução de governabilidade (a palavra entrou na moda) que possa limitar aquilo que ele considera serem as desvantagens de um governo minoritário. Não indigitou nenhum primeiro ministro, pelo que não incumpriu o preceito constitucional que obriga à audição prévia dos partidos.
Contudo, já alimento sérias dúvidas sobre se o senhor presidente não feriu abertamente o espírito constitucional ao ter, liminarmente, eliminado o Bloco de Esquerda e o PCP dos potenciais integrantes de um futuro executivo. A condicionalidade que estabeleceu sobre a necessidade de adesão a certas políticas e a compromissos nacionais na ordem externa, para além de lançar aos olhos exteriores um alarmismo que me parece só ele vislumbra dentro do país (diplomatas estrangeiros telefonaram-me nas últimas horas para tentar perceber que "riscos" se prefiguravam no nosso horizonte), ter-se-ia poupado se o chefe de Estado se tivesse limitado a afirmar que era exigível que os partidos integrantes de um qualquer governo cumprissem... a Constituição da República.
Esse é o único limite de observância imposto às forças democráticas, escolhidas pelo eleitorado com uma legitimidade simétrica à sua. O resto são opções políticas, admito que umas mais sensatas do que outras, mas só isso. Imagino, contudo, que o senhor presidente não tivesse querido reforçar o apelo pelo respeito pela Constituição, porque isso poderia ser lido como uma provocação à maioria cessante, que, nos últimos quatro anos, a tentou violar por diversas vezes, perante o seu cúmplice silêncio.
É importante que se diga que o senhor presidente pediu ao dr. Passos Coelho uma tarefa impossível. Nem o PSD/CDS (acho que devemos começar a referir assim esta nova formação partidária) está disponível para propor aos socialistas de que tanto mal disseram uma entrada no (seu futuro) governo, nem é sensato pensar que António Costa poderia algum dia vir a obter um mandato interno, num compromisso a prazo de uma legislatura, que desse ao novo governo da coligação a possibilidade de executar um conjunto de políticas que vão num sentido exatamente contrário daquilo que defendeu durante a campanha. Felizmente, o PS não é o Syriza, não dá o dito por não dito, ao virar da esquina.
O senhor presidente sabe que está a tentar "sangrar-se em saúde", como se diz na minha terra: quer ficar na história destes seus mandatos pouco notáveis como alguém que tentou tudo para o "consenso", nunca tendo explicado que esse conceito significava necessariamente a sujeição de um partido às políticas de outros.
Tentou isso com António José Seguro e falhou - e todos sabemos hoje que Passos Coelho esteve então na primeira linha da oposição a esse "teatro de consenso", porque isso significava eleições antecipadas. Também nessa altura, o PS não podia, sem o risco de implosão, aceitar esse "consenso". Experimenta agora algo da mesma natureza com António Costa e vai voltar a falhar porque, repito, nem Passos Coelho quer, nem António Costa pode. O senhor presidente sabe isto "de ginjeira", como também se diz, mas quer "ficar bem no retrato" e, de caminho, colocar o ónus político no PS.
O que se vai passar, muito provavelmente, será o cumprimento escrupuloso daquilo que António Costa, sabiamente, disse na noite de domingo, e que aqui repito: "Não inviabilizamos governos sem termos um governo para viabilizar".
O PS perdeu estas eleições: estava e vai continuar na oposição, embora agora numa posição mais forte do que aquela que tinha, não obstante a iniludível derrota que teve. Só regressará ao governo através de eleições, não por acordos contranatura à sua direita, nem por alianças impossíveis com o Bloco de Esquerda ou com o PCP. Não porque esta última opção seja "proibida" pela Constituição ou pelo senhor presidente, mas porque isso está fora da ordem natural das coisas para uma formação política com uma história de responsabilidade que fala por si, no quadro europeu e internacional. O senhor presidente, que conhece o PS, sabe bem que as coisas são assim. Mas "faz de conta" que não sabe.
O PS perdeu estas eleições: estava e vai continuar na oposição, embora agora numa posição mais forte do que aquela que tinha, não obstante a iniludível derrota que teve. Só regressará ao governo através de eleições, não por acordos contranatura à sua direita, nem por alianças impossíveis com o Bloco de Esquerda ou com o PCP. Não porque esta última opção seja "proibida" pela Constituição ou pelo senhor presidente, mas porque isso está fora da ordem natural das coisas para uma formação política com uma história de responsabilidade que fala por si, no quadro europeu e internacional. O senhor presidente, que conhece o PS, sabe bem que as coisas são assim. Mas "faz de conta" que não sabe.