segunda-feira, setembro 08, 2014

Caros Antónios...

Caros Antónios

Sei que, com grande probabilidade, não irão ler estas linhas porque, a esta hora, deverão estar a afinar, com os vossos estrategas de campanha, as frases com que cada um espera "arrasar" o outro, nos três debates televisivos que aí vêm. Mas será talvez por isso mesmo que me sinto na obrigação de vos escrever.

Entrámos um dia no mesmo governo, vai para duas décadas, levados pelo carisma do António Guterres, ao som do Vangelis. À nossa frente, tínhamos o objetivo de dar a volta a um país cansado de bem mais de uma década de cavaquismo. Foram tempos entusiasmantes, em que, juntos, fizemos muitas coisas de que ainda hoje me orgulho e de que, creio, o país beneficiou. Tenho o gosto de dizer que, passado todo este tempo, cimentei, com cada um de vocês, uma boa amizade, que é também de grande e sincero respeito por aquilo que, cada um a seu modo, fez por Portugal. É apenas nesta qualidade que vos escrevo - a de um "compagnon de route", em definitivo afastado da ação política, mas que não abdica de se interessar pela causa cívica.

A vida colocou-vos agora em rota de colisão democrática pela liderança do PS. Devo dizer que me sinto feliz por poder constatar que, cada um de vocês à sua maneira, representa um PS com uma elevada consciência ética. Convosco, os portugueses sabem que estão a tratar com gente de bem, porque vocês fazem parte, em termos de honestidade e de serviço à comunidade, do melhor que o partido tem para apresentar. E essa é, desde logo, a primeira vitória deste tempo socialista que agora vos tem como protagonistas principais.

A campanha que travam era praticamente inevitável. É "chover no molhado" discutir agora se o processo das "primárias" era a maneira mais correta de testar a legitimidade da atual liderança. O António José Seguro entendeu que a vitória em duas eleições, antecedida da consagração num congresso em que abriu espaço aos que o contestavam, lhe conferia a legitimidade que lhe permitia continuar na liderança e consolidar a posição maioritária do PS. O António Costa considerou que não se podia furtar a ser a voz de muitos que se sentiam insatisfeitos, não apenas com a forma da atual liderança, mas principalmente com os resultados que o PS, enquanto oposição, ia obtendo, que viam como prenúncio de um forte risco para as hipóteses socialistas numas futuras eleições legislativas. Nunca me senti muito acompanhado quando exprimi, desde a primeira hora, que a solução das "primárias" era aquela que, muito provavelmente, permitia testar quem tinha razão, mesmo com o desgaste que esta longa campanha necessariamente representaria. 

Reduzir agora ao mínimo esse desgaste ainda está nas vossas mãos. Quero com isto dizer que os debates que aí vêm seriam, se vocês assim o quisessem, um momento de transformar aquilo que todos temem que venha a ser uma lamentável "guerra" fratricida num tempo de assestar baterias naquele que é o adversário comum, não apenas do PS, mas do próprio país em geral - uma ex-maioria a quem os portugueses deram há pouco tempo o mais arrasador voto de desconfiança de que há memória na nossa história democrática.

É mais do que claro que os militantes e os simpatizantes socialistas já sabem muito bem em quem vão votar, no dia 28 de setembro. Por isso, será uma pura perda de tempo da vossa parte estar agora a tentar "esclarecê-los" sobre qual de vocês tem o "direito" a liderar o PS ou pode ser mais eficaz na chefia futura, não apenas do partido como de um eventual governo socialista. Em especial, será tristemente auto-flagelatório se acaso optarem por "deitar sal nas feridas", com acrimónias de cariz pessoal, que só vos diminuirão aos olhos dos portugueses. E que diminuirão também a imagem do PS, por arrasto.

O que muitos gostaríamos - excluo, naturamente, dessa vontade os "talibans" e as "taliboas" de ambos os lados, que enxameiam de acidez "segurista" ou "costista" as redes sociais, as colunas de jornais e as televisões - era ver-vos concentrados na explicação serena da melhor forma de afirmar uma gestão credível para o país, como alternativa futura ao lamentável estado em que a governação que por aí anda deixou Portugal. Essa era a palavra que os portugueses esperariam de duas pessoas politicamente responsáveis, não uma "fulanização" do debate, transformada num fastidioso "eu-é-que-já-cá-estava" contra o "eu-é-que-sou-melhor-do-que-tu". Querem dar-nos uma alegria? Surpreendam-nos!

Estou esperançado de que isso assim aconteça? Aqui entre nós, meus caros, não estou. Mas até ao lavar dos cestos são as vindimas, e como o tempo delas está aí...

Com um forte e solidário abraço do

Francisco

À conversa na (esquina* da) Gomes (8)

- É muito bom fazer parte de um país que deixa uma marca na História dos outros.
- Ai agora deu-te para o patriotismo?!
- Lembrei-me disso ontem à noite.
- A propósito de quê?
- Da Albânia. Nunca mais os albaneses vão esquecer Portugal. Passamos a ser imensamente falados por lá.
- Tens razão. Tudo tem o seu lado bom.

* A "Gomes" fecha às 2ªs feiras

A "Pompeia" do Neves

A "Pompeia" foi, durante muitos anos, um dos mais elegantes cafés e "salões de chá" de Vila Real. Tinha duas entradas, uma pela rua António de Azevedo e outra pela avenida Carvalho Araújo, a artéria nobre da cidade. Rivalizava com a "Gomes" em termos da qualidade da frequência, tocada pela elegância que lhe advinha de uma zona recolhida, com uns frescos clássicos (por onde andarão?) ao longo de uma parede, conhecida como "a zona do chá". Era poiso de profissionais liberais e de outras figuras gradas da cidade, com as senhoras a surgirem em grupos a meio da tarde, rivalizando com núcleos sociais idênticos, que se acolhiam na parte "alta" da "Gomes".

Foi na "Pompeia" que teve lugar uma célebre cena protagonizada pelo histriónico médico, dr. Sampaio e Melo, conhecido pela sua figura como o "valete de paus". Um dia, ao chegar junto do grupo de amigos com que tradicionalmente por ali se reunia, lançou, com o seu conhecido vozeirão, uma frase que ficou no anais: "Meus senhores, quero comunicar-lhes que acabo de dormir com a mulher de um dos presentes". Perante o pesado silêncio que se seguiu, cofiando a forte bigodaça e antecipando uma gargalhada, esclareceu: "Não estejam preocupados! Foi com a minha!". Também uma célebre bofetada entre dois dos médicos mais conhecidos da cidade teve a "Pompeia" por cenário. Durante semanas, não se falou noutra coisa. 

Para mim, a "Pompeia" ficou sempre ligada ao meu amigo Albano Neves, que dela se tornou proprietário e que, mesmo depois de eu sair de Vila Real, continuei sempre a visitar. Se a "Gomes" era, desde a juventude, a minha "praia" depois de almoço, na "Pompeia" eu parava mais ao final da tarde e à noite, frequentador que era da zona "baixa" do café, perto da porta para a rua António de Azevedo, em frente ao "Bragança", onde me abastecia de imprensa. 

Longas conversas tive pela "Pompeia", com o Neves frequentemente a sair detrás do alto balcão (seria o balcão de facto alto ou a imagem que guardo era pelo facto do Neves ser baixo?) e a abancar connosco, o que não era muito comum nos hábitos dessa época. A minha familiaridade com a casa cimentou-se em noites de charlas intermináveis, em que o Neves fechava a porta ao público e, já sozinho na casa, com o pequeno grupo de amigos que por ali ficava, avançava ele próprio para a cozinha e preparava divinais omoletes com chouriço, regadas a vinho branco, programa com que alguns de nós, notívagos profissionais, iniciávamos longas madrugadas, nos verões desses anos 60 e 70, do século já passado.

O meu amigo Neves, um homem encorpado, de pescoço curto, algo curvado, sempre impecavelmente de fato-e-gravata, não era uma personalidade fácil para aqueles com quem não engraçava. Vi-o ter fúrias homéricas com ruidosos frequentadores dos bilhares do andar superior, onde havia um "snooker" que, estando longe de ser a minha predileção - eu "é" mais "bilhar livre"... -, me fazia perder algumas tardes em verões em férias. Mas o Neves era amigo do seu amigo e eu tinha-lhe caído nas graças, pelo que sempre fui um deles. Brincávamos muito por razões políticas, onde não coincidíamos nos gostos, mas nunca nos zangámos. 

A "Pompeia" mudou-se um dia para o Pioledo, na zona alta da cidade. Era fora de mão para mim e, julgo, para a maioria da sua clientela tradicional. Por isso, por lá já só passava para dar um abraço regular ao Neves. Tempos depois, o negócio foi trespassado para o António, também ele emigrado da "Gomes". E deixei, em definitivo, de lá ir.

Hoje, no lugar original da "Pompeia", há uma "Nova Pompeia", com uma geografia muito diferente e praticamente sem nada que lembre a casa antiga. Há tempos, num final de tarde, estive por lá com uns amigos, também a recordar as outras épocas. É ainda um lugar "ível" (como dizia o meu desaparecido amigo e locutor de rádio Alfredo Alvela, para qualificar os lugares onde se pode ir)? Claro que é, mas, sem o meu amigo Neves, já não é a mesma coisa.    

domingo, setembro 07, 2014

Nada a dizer

"E assim não houve mais este dia que para escrever seja".

(in "Carta de Pêro Vaz de Caminha")

sábado, setembro 06, 2014

À conversa na Gomes (7)

- Então já sei que vais jantar a Vidago!
- Estás muito bem informado! Mas estás enganado: não é só um jantar, é um casamento, no Palace Hotel. E vê-se bem que não és de cá: por aqui não dizemos "a Vidago", dizemos "ao Vidago"...
- Nunca me tinha apercebido disso...
- E por acaso sabes quantas janelas e portas tem o Palace Hotel? 365, tantas quantas os dias do ano.
- Outra novidade! 
- E vou dar-te ainda outra: o hotel era para ser inaugurado pelo rei dom Manuel, precisamente em 5 de outubro de 1910. Nessa ocasião, deveria ter ocorrido um banquete com o rei em Vila Real. Sou o feliz proprietário do menu dessa frustrada receção.
- Curioso.
- O mais curioso é que o dono do hotel era o então primeiro-ministro, Teixeira de Sousa.
- Que grande conflito de interesses! 
- Era assim, à época. Hoje política e negócios estão bem separados, como sabes!
- Claro que sim! Tudo bem "separadinho"! Isso é que não é nenhuma novidade...

sexta-feira, setembro 05, 2014

"Face oculta"

A mão da Justiça foi pesada no caso "Face Oculta", à medida da importância atribuída pela magistratura à dimensão dos crimes que estavam em julgamento. Seria agora importante, precisamente para que a opinião pública viesse a ter plena confiança em todo o processo, que os naturais recursos fossem julgados com a maior celeridade, sem prejuízo dos direitos dos alegados implicados, os quais, no entanto, lembro que ainda devem ser considerados inocentes até à sentença final ter transitado em julgado*. A Justiça só é justa quando é rápida e atempada. Prolongar os processos no tempo é a melhor forma de criar sobre eles suspeições e desconfianças, com a ideia de que, com bons advogados, é possível adiar a execução das sentenças e criar incidentes processuais, que às vezes levam à própria prescrição dos crimes.

Uma das coisas que minam a confiança democrática em Portugal é a ideia, muito difundida pela imprensa e pela "voz da rua", de que "isto é tudo um bando de gatunos", que "eles são todos iguais", que "todos os políticos são uns corruptos". Não é verdade! Há políticos corruptos como há muitos políticos sérios, da mesma forma que há advogados desonestos e outros sérios, como há empresários desonestos e outros com uma folha de vida profissional impoluta. Meter tudo no mesmo saco é contribuir para criar a ideia de que "o país está a saque", que parece confortar os frequentadores e adjetivadores anónimos das caixas de comentários e que abre caminho depois ao "justicialismo" mais desbragado e populista. Para esses, só as condenações são justas mas, quase sempre, as absolvições ou as não pronúncias não são respeitadas como justas. Para esses demagogos, a Justiça só tem um sentido e não acontece quando acaso decide em linha oposta à perceção "da rua", que sempre acha que "não há fumo sem fogo".

Por isso, é bom perguntar: quanto tempo mais teremos de esperar para ver, de uma vez por todas, encerrados casos como o BPN e o BPP? E quanto demorará o caso BES a ser julgado?

Venham ou não a confirmar-se as sentenças do "Face Oculta", agora pronunciadas em primeira instância, a classe política  - toda ela! - deveria fazer um exame de consciência sobre se a questão da corrupção e do tráfico de influências, até ao "jeitinho" e às "cunhas" que por aí abundam, não deveriam obedecer a uma moldura legal mais exigente. Nesta matéria, nem seria necessário inovar muito: bastaria procurar os bons exemplos estrangeiros. Ganharia imenso a imagem de Portugal. Seria bom, por exemplo, que os candidatos presidenciais trouxessem estes temas para a agenda política, "espicaçando" os partidos a agir no parlamento.

A haver um "acordo de regime" prioritário entre os partidos, ele deveria começar precisamente pelo sistema de Justiça, em que é evidente que as pessoas hoje colocam muito pouco confiança, às vezes menos pelas decisões tomadas e mais pela falta delas a tempo. Além disso, no plano económico, a ineficácia da Justiça ainda hoje é considerada, pelos investidores estrangeiros, como um dos grandes óbices ao seu interesse por Portugal. 

Presidenciais brasileiras


A morte do candidato Eduardo Campos alterou radicalmente o panorama das próximas eleições presidenciais brasileiras. Campos nunca deixara de ser o terceiro preferido nas sondagens, com Aécio Neves a grande distância, como o principal competir da atual presidente, Dilma Roussef.

Com a desaparição de Campos, Marina Silva, que era a candidata à vice-presidência da sua lista, assumiu a liderança e, de um dia para o outro, a sua cotação eleitoral "disparou", colando-se a Roussef nas intenções de voto. Por seu turno, o anterior "challenger" de Roussef, Aécio Neves, "despencou" (como dizem os brasileiros) nas análises de opinião e ficou para o terceiro lugar (antes ocupado por Campos). Marina Silva parece agora ser a mais séria ameaça à reeleição de Dilma Roussef. Ontem, um amigo brasileiro dizia-me que a última graça que por lá corre é a de que o avião em que Campos teve o acidente mortal caiu, afinal, "na cabeça" de Aécio Neves...

Marina Silva é uma figura atípica, de origens populares, muito marcada por um discurso religioso, bastante moralista nas questões de costumes, tudo complementado com um radicalismo em matéria ambiental que, noutros tempos, a tornou a grande inimiga do "agronegócio" e do desenvolvimento energético, área onde se confrontou com Roussef. Ministra do Ambiente de Lula, viria a ser afastada precisamente pela sua inflexibilidade. Há minutos, publicou no Twitter esta mensagem: “@marinaecologia: Hoje o dia ta corrido, vários compromissos e ainda tô costurando minha roupa de fibra de bananeira que usarei pra fazer campanha mais tarde.” Creio que diz muito de um estilo, não acham?

O Brasil não deixa de nos surpreender!

MNE - promoções & confusões

A revista "Sábado" relata esta semana mais uma "trapalhada" relativa a promoções dentro do MNE, objeto de contestação judicial. Em causa está a promoção de um grupo de funcionários à categoria de "embaixador", parte dos quais já estão aposentados, outros que ocuparam ou ocupam postos da maior importância no quadro externo do MNE, alguns deles do melhor que a "casa" possui hoje nos seus quadros. 

Acho absolutamente normal que um funcionário que se sinta ilegitimente preterido em qualquer promoção interponha um recurso. Esse direito foi ganho com a democracia e ninguém o pode contestar. Acho, porém, estranho que a lei não esteja formatada de molde a que os atos de promoção se façam com uma drástica redução das ambiguidades que fazem proliferar estes casos, embora saiba que é impossível garantir em absoluto que, em processos em que intervêm fatores de discricionariedade e subjetividade pessoal, não possam ocorrer problemas. Mas o que me causa mais estranheza, desde há décadas, é a aparente incapacidade do MNE de criar, no seu seio, uma "massa crítica" jurídica como solidez suficiente para tratar deste tipo de questões com rapidez e competência.

(  Para quem não saiba, vale a pena deixar aqui uma explicação sobre o conceito de "embaixador". No caso português, a maioria dos funcionários que chefiam missões diplomáticas no estrangeiro possui "credenciais de embaixador", isto é, tem na carreira a categoria de "ministro plenipotenciário", a qual já permite que possam dirigir uma embaixada, se o poder político assim o entender. São "embaixadores de Portugal em...", mas não são ainda "embaixadores" na plena aceção do termo, aquilo que os britânicos designam por "full rank ambassadors" ou os franceses qualificam como "ambassadeurs de France". Entre nós, no passado, designavam-se por "embaixadores de número", porque há um número limitado de lugares (hoje, cerca de 30) a que, por escolha e decisão do poder político, alguns dos "ministros plenipotenciários" podem ascender. Trata-se da categoria mais elevada da carreira e que vai sendo preenchida à medida que se abrirem vagas - as quais, normalmente, ocorrem pela saída de colegas do serviço ativo (a chamada "passagem à disponibilidade"). Mas a tradição manda que quem alguma vez exerceu as elevadas funções de "embaixador" passe, a partir desse momento, a ser para sempre referido na "casa" como "embaixador", sem distinção de ser ou não ser "de número". Noto que, com exceção deste último "degrau", todas as promoções, a partir da entrada do funcionário na carreira, são decididas pelo Conselho Diplomático, salvo no caso da ascensão a "Conselheiro de embaixada" onde, com maior frequência, se recorre a um júri examinador. Noto que o Conselho também é responsável pelas colocações no estrangeiro, salvo para as chefias efetivas de missões diplomáticas, que são decididas pelo poder político. O Conselho Diplomático é um órgão integrado pela hierarquia não política do MNE e por representantes eleitos de cada categoria. Têm sido frequentes, ao longo dos anos, as contestações às promoções decididas pelo Conselho. Embora tenha dele feito parte no passado, como membro eleito, devo confessar que há muito que deixei de acompanhar estas coisas com atenção, mas tenho a sensação que esta é a primeira vez que uma contestação acontece em casos de promoção à categoria de "embaixador".  )

Na minha carreira, também tive um incidente com uma promoção. 

Creio que em fins de 1986, para minha relativa surpresa, estava eu um dia de passagem em Bruxelas, como funcionário da então direção-geral das Comunidades europeias, recebi de Lisboa a boa novidade de que o Conselho do Ministério (na altura ainda se não chamava "Conselho Diplomático") havia decidido a minha promoção a "conselheiro de embaixada" (eu era então "primeiro-secretário"), juntamente com outros três colegas. Numa carreira que, nos dias de hoje, vive estas questões "a ferro e fogo", numa elevada competição, pode parecer estranho que as coisas tenham sido vistas por mim de forma tão ligeira. Mas foi assim mesmo: sabia que havia quatro vagas, mas tinha optado por não "dar uma palavra" a ninguém (hoje, as "regras" são outras, eu sei!) e "surgi" promovido (iria acontecer-me exatamente a mesma coisa, de novo sem eu ter "mexido uma palha", em 1994, na minha promoção a "ministro plenipotenciário", por muito que isso possa hoje parecer quase incrível. E, dessa vez, só soube da novidade dois dias depois, numa conversa casual com um colega. Ninguém me avisara...). Era inegavelmente muito interessante chegar a "conselheiro" apenas com cerca de 11 anos de carreira e fiquei tão satisfeito que me recordo de ter esportulado um belo jantar no "Ogenblik" a um grupo de amigos, para celebrar o facto.

Mal eu sabia que tinha sido um "falso alarme". As vagas que iríamos preencher foram consideradas inexistentes pelo Tribunal de Contas, que não aceitou a promoção à categoria superior dos colegas que até então as ocupavam. Uma "rixa" administrativa entre Sousa Franco, presidente do TC, e Deus Pinheiro, então MNE, fez o processo andar para trás e eu, e os outros, fomos "despromovidos". O assunto voltou a ser tratado, de novo, em 1988 e, em face de uma nova e idêntica decisão do Conselho, foi-me comunicado, uma vez mais, que tinha ascendido a "conselheiro". Dessa vez, escaldado que estava com a experiência anterior, não "deitei foguetes antes da festa", isto é, da posse. E fiz bem: é que, de novo, o Tribunal de Contas voltou a contestar a decisão do ministro. Passaram mais dois anos e, já estava eu colocado em Londres, quando, em agosto de 1990, tomei finalmente posse do lugar de "conselheiro de embaixada". Perdi quase quatro anos nessa categoria, ou melhor, como nunca tive tenho vocação para me queixar (e, realmente, no que toca estritamente à gestão da carreira, nunca tive razões para isso), apenas "não ganhei" esses anos. 

Nota especial sobre este post: a abordagem destes assuntos de promoções na carreira diplomática origina, cpm frequência, ao surgimento de comentários anónimos, acusatórios e personalizados, sobre situações passadas ou presentes, com insinuações sobre irregularidades ou favoritismos. Assim, desde já advirto que, excecionalmente, desta vez só aceitarei publicar aqui comentários devidamente assinados. A menos que esses comentários me digam pessoalmente respeito, caso em que terei todo o gosto de a eles responder, mesmo a anónimos.

quinta-feira, setembro 04, 2014

Comissão europeia

Apenas umas notas breves, na véspera de se conhecer a composição da nova Comissão Europeia:
  • Como esperado, os "grandes" países obtêm pastas influentes, salvo aqueles que já tenham sido prendados com outros lugares. Nada de novo.
  • Não obstante o comportamento de Cameron na escolha de Juncker, e a confirmar-se a obtenção da pasta da Energia pelo comissário britânico, fica patente a força do Reino Unido.
  • Moscovici deve conseguir a importante pasta da Economia para um nome francês. Ele próprio revelou, numa entrevista, que o assunto mereceu uma séria objeção de Berlim, que foi ultrapassada. Afinal, Berlim pode "vetar". Há uns mais iguais...
  • O "truque" finlandês de trocar o seu último comissário pelo primeiro-ministro, a poucos meses do fim da Comissão Barroso, que já aqui tinha sido exposto, vai compensar. Outra exigência de Berlim a que Juncker se verga. A ortodoxia na área financeira fica protegida.
  • Finalmente, "last but not least", o "nosso" Carlos Moedas. A confirmar-se que lhe é atribuída a pasta do Emprego e dos Assuntos Sociais, o governo português está de parabéns: é um excelente "portfolio". Se isso acontecer - e devo dizer que continuo com algumas dúvidas de que esse lugar seja mesmo para ele, mas espero sinceramente estar enganado - a oposição não terá a menor razão para reclamar. A assim ser, Carlos Moedas, que é um homem inteligente e qualificado, terá o ensejo de lidar com uma pasta que tem a seu cargo a correção de erros que a política do governo a que pertenceu nos últimos três anos provocou.

quarta-feira, setembro 03, 2014

Portugal no mundo

A cidade de Loulé, através da sua Câmara Municipal, tem vindo a comemorar, ao longo do ano, a data fundacional da República democrática em que vivemos, o dia 25 de abril de 1974.
 
Fui convidado pelo organizador de uma série de palestras alusivas ao tema - "Antes e depois. Para amanhã" -, o jornalista Carlos Albino, para falar sobre a nossa política externa. Decidi dar um título interrogativo àquilo que vou dizer: "Portugal ainda tem uma política externa?"
 
A conversa será no dia 19 de setembro, às 21 horas, no salão nobre dos Paços do Concelho, na praça da República, em Loulé.

Vila Real irónica

Ontem, ao gravar umas palavras para uma reportagem que a RTP vai passar, na manhã de dia 10, sobre Vila Real, sublinhei o caráter algo iconoclasta da população vilarealense, a saudável ironia, às vezes a roçar o cruel, que marca a maneira de ser das gentes de Vila Real. Mesmo em tempos em que brincar com as elites tinha os seus riscos, a cidade mantinha uma discurso rebelde e cáustico, feito de graçolas, que atingiam toda a gente, dos ricos e poderosos às figuras mais populares, numa enxurrada de humor interclassista que, para mim, foi sempre um dos encantos desta terra.

Ontem à noite, ao passar pela antiga casa daquele que foi de um dos maiores "capitalistas" da cidade, uma figura simpática e boémia, de quem guardo ainda uma imagem vaga, alguém referiu as condições da sua morte - que teve lugar durante o ato sexual com a sua amante, circunstância para a qual um meu amigo chileno criou um dia o genial neologismo de "follecimiento". A história ficou famosa, embora menos pelo escândalo da mancebia (nessa altura, por aqui, ter alguém "por conta" fora do casamento era quase indispensável ao estatuto social das pessoas "com posses"), mas pela relativa raridade da ocorrência.

A senhora em causa, uma mulher bonita e vistosa, de que me lembro bastante bem, porque morava junto à minha escola primária, era conhecida pelo nome de Baía. Toda a cidade ficou a conhecê-la melhor depois desse incidente, com as "línguas" locais a rapidamente encontrarem uma forma de subverter o caráter trágico do mesmo, através de uma graçola. Assim, quando falavam da morte do abastado proprietário, alguns acrescentavam: "coitado, morreu no Brasil!" Perante a surpresa do interlocutor, que não tinha ouvido falar de que o passamento tivesse tido lugar tão longe de Vila Real, o outro acrescentava: "É verdade, morreu na Baía"...

Deixo-lhes a imagem, de há minutos, do alvorecer da cidade

terça-feira, setembro 02, 2014

25 anos

Em 2014, deveríamos estar a celebrar a passagem de 25 anos sobre o fim do muro de Berlim, símbolo da Guerra Fria. Ora a verdade é que, pelo contrário, estamos a assistir à rápida reconstituição de um novo cenário de elevada tensão.

A Guerra Fria havia criado algumas “regras” na ordem internacional, numa leitura quase comum que ambos os lados iam aceitando daquilo que Ialta tinha desenhado. Fora desse indizível consenso, em várias zonas do mundo, onde conflituavam os poderes, continuaram-se a medir regularmente as forças, com avanços e recuos estratégicos que acabaram por evoluir de forma muito díspar.

O final da União Soviética mudou tudo isso e uma apressada revisão estratégica fez desaparecer quase todas as anteriores “regras”. Do lado ocidental, tudo foi visto como uma vitória, com maior ou menor exaltação. Do lado de Moscovo, nenhuma alegria foi partilhada e, pelo contrário, o fim do país foi sentido, pelos russos, como uma humilhação nacional.  

Aproveitando a janela de oportunidade criada pela fragilidade conjuntural de Moscovo, o Ocidente cuidou em alargar o seu modelo de segurança e de desenvolvimento a Estados do centro e leste do continente, na NATO e na União Europeia. Com os EUA como claro “backseat driver”, os europeus entenderam – e bem – que o acolhimento das novas democracias nesses “clubes” era, para além de um imperativo estratégico, um gesto de justiça histórica. Como forma de “compensação”, a Rússia seria cooptada para modelos de diálogo e cooperação cada vez mais integrados. Até na NATO, que mudaria de paradigma e que quase já só se preocupava com questões “out of area”. A UE deixou-se cair num diálogo economicista com Moscovo, descansada na miragem liberal de que já não pode haver guerras entre países onde se vendem Mac’Donalds.

A ressaca histórica russa gerou, entretanto, Vladimir Putin, que foi dando iniludíveis sinais da reconstituição de um modelo autoritário com que o Ocidente fingia poder ir convivendo. Do lado de cá, os traumas históricos bálticos e polacos, com uma cumplicidade errática de Berlim, foram influenciando a UE no sentido de “esticar a corda” com Moscovo. E viu-se então o espetáculo de Bruxelas a estimular, na Ucrânia, o derrube, por um golpe de Estado, de um presidente que havia sido democraticamente eleito, como forma a garantir em Kiev um governo favorável à relação privilegiada com o Ocidente.

A UE já havia sido complacente no modo inaceitável como as minorias russas foram tratadas nos Estados bálticos e, de forma irresponsável, nada cuidou em as tentar proteger na “nova” Ucrânia. O resultado está à vista: deu um pretexto nacionalista a Putin, para quem um tratado de Direito internacional é uma obra de ficção, e ao proteger sem limites nem moderação a tática prevalecente em Kiev, colocou-nos agora na soleira de uma guerra. Para regredirmos 25 anos, já só falta fazer ingressar a “Ucrânia de Kiev” na NATO.
Texto do artigo que hoje publico no "Diário Económico"

Uma história difícil

Há anos que hesito em contar esta história. Porque é complicada, porque a leitura que faço do episódio está longe de ser consensual e por todo um conjunto de razões que logo verão. E porque me marcou.

Foi há 20 anos. Eu fazia parte do júri de admissão de novos diplomatas, uma tarefa que levava muito a sério. O nosso objetivo era selecionar cerca de 15 pessoas, dentre mais de um milhar que tinham investido muitas horas da sua vida a trabalhar para ter essa oportunidade. Umas das provas fundamentais desse complexo concurso (desconheço como são as coisas hoje), depois dos exames escritos e antes das provas orais, era então a chamada "prova de apresentação" - uma conversa entre o candidato e quatro membros do júri, durante 20 a 30 minutos, com uma parte em francês ou inglês, na qual se procurava perceber da adequação do mesmo às funções a que concorria, quer na maneira de estar e de se exprimir, quer no seu nível geral de conhecimentos e na forma de os articular. Era uma prova reconhecidamente muito subjetiva, mas que eu considerava fundamental: por ela eu percebi sempre quando o candidato claramente "não servia", embora em alguns escassos casos me tivesse enganado no sentido inverso, isto é, dei a minha anuência à entrada de certas pessoas que o tempo veio a demonstrar não terem as qualificações que pareciam demonstrar, tornando-se menos bons profissionais.

A história de hoje tem um caráter muito particular. Nesse dia, um dos candidatos era anão. Nunca na minha vida me cruzei com um diplomata anão, embora admita que alguns possam existir, em carreiras estrangeiras. Tenho uma noção, empírica e muito discutível, mas que não vou discutir, de que um anão é uma pessoa cuja adequação ao exercício pleno das exigências que a vida diplomática acarreta seria muito difícil. A mim, as razões parecem-me óbvias, mas que sei que seria difícil defendê-las perante a brigada radical do "politicamente correto". O mesmo seria válido, aliás, para os portadores de algumas deficiências, sendo que um anão - também sei! - não é um deficiente.

Quando o candidato entrou na sala, devo dizer que senti que a todos nos atravessou alguma angústia. E se acaso ele tivesse uma qualidade intelectual excecional, se viesse a demonstrar uma "maîtrise" extraordinária, em todas as áreas do universo diplomático em que o interrogássemos? Se assim acontecesse, e apenas pelo facto de ser anão - condição física que, repito, eu assumo considerar não adequada ao exercício de funções diplomáticas -, iríamos eliminá-lo e recusar a sua passagem à prova oral de conhecimentos? Aquela era, aliás, a única prova do percuso do exame onde o facto de ser anão poderia ou deveria ser tido em conta. Por isso, a nossa responsabilidade era ainda maior. 

As quatro pessoas do júri não haviam trocado impressões prévias entre si, talvez por algum pudor na abordagem do tema. A conversa começou, no registo habitual. O homem, que já não era novo, fez uma prova que me recordo ter sido apenas sofrível, com algumas evidentes deficiências que, fosse qual fosse o candidato, o não recomendariam para ingressar na carreira. Vou dizer algo que sei ser polémico: considero que ainda bem que assim foi, porque, tivesse sido outra a sua prestação, as coisas teriam sido bem mais complexas para todos nós. O candidato foi eliminado e já não transitou para a prova oral. 

Lembrei-me disto há pouco, ao ver uma entrevista com o ator David Almeida, também anão, na SIC Radical. Há histórias, menos comuns, que, pelo seu caráter menos vulgar, nos ficam pela vida. Esta, para mim, foi uma delas.

segunda-feira, setembro 01, 2014

À conversa na (esquina da) "Gomes" (6)

- Isto da "Gomes" fechar às segundas é uma chatice!
- É a vida, como dizia aquele teu amigo, que já está aí ao voltar da esquina.
- Por falar em esquina, esta "esquina da Gomes" é, de facto, o "centro" de Vila Real.
- Já cá tem placa e tudo. Passou a lugar histórico!
- Lembras-te, no tempo de liceu, como ficávamos por aqui, nos domingos, a topar o pequename que saía da missa das seis?
- Num dia quente como hoje, é de "assa canas". Mas, no inverno, faz aqui um "chiasco" do camandro.
- E sabes a história, nesta mesma esquina, num dia gélido, com um governador civil e um ministro do Salazar?
- Não, não conheço essa!
- Iam ambos a entrar na "Gomes" e o governador, a armar ao típico, disse para o ministro: "Está um frio tipicamente transmontano!". Um tipo qualquer, de samarra, que estava encostado à esquina, olhou para eles e retorquiu: "Transmontano o c...! Está mas é um frio f...!"
- E como é que eles reagiram?
- Mandaram-no prender, imagina!
- Isso hoje já não podia acontecer.
- Não te fies muito no caráter democrático das novas autoridades.
- Não, não é isso! É que hoje já não há governadores civis...

Coisas da idade

O rapazelho que estava ao meu lado no balcão do bar daquele café de praia olhou para mim, afastando mesmo a cabeça para ganhar perspetiva, quando eu pedi um "Gordon's". A empregada mirou-me como se eu viesse de Marte e repetiu, quase atónita: "Gordon's?' Quer um Gordon's?!"

Pedir um gin, por via da moda em que a bebida entrou, transformou-se, nos últimos anos, numa operação de alta sabedoria e requinte, com uma multiplicidade de marcas, cheias ou não de sabores, mais ou menos exóticos. Há casas dedicadas exclusivamente a essa bebida que, segundo a lenda, conservou na vida muita e distinta gente, até muito tarde, desde logo a sua mais famosa consumidora diária, a raínha-mãe inglesa. Em determinadas condições de estado de espírito e temperatura, sou um consumidor episódico dessa bela bebida de fim da tarde, mas gosto de sentir o álcool, não quero o "gin & tonic" excessivamente diluído em águas mais ou menos adocicadas, com "especiarias" a armar ao moderno. E gosto de "Gordon's", pronto! Embora reconheça que um "Bombay", um "Hendrick's", um "Tanqueray" ou o americano "Leopold's" são excelente gins - e, repito, estou muito longe de ser especialista na matéria. Se quiserem falar de "whiskies" ou "vodkas" (também dos sem "cheirinhos") já é outra história...

A miúda do bar, perplexa mas complacente, lá descortinou uma garrafa de "Gordon's" escondida na miríade de marcas que enchiam as prateleiras. Deduzi que o último consumidor do que eu pedia deveria ser do tempo do "arroz de quinze". 

Sem espanto, vejo-a ir buscar um daqueles copos redondos, tipo bola de andebol, e preparar-se para o atulhar de gelo, e nele colocar uma gotas do meu "Gordon's", sob um mar de água tónica, como agora aprendem a fazer estilosamente, no sonho para imitarem o Tom Cruise no "Cocktail". Não resisti à provocação: "Não, não! O "Gordon's" não se serve nesses copos. Quero um copo alto". A jovem aceitou, com alguma relutância, os meus cabelos brancos como argumento de autoridade, mas continuava a não esconder a sua perplexidade. De certa forma, partilhava, pelo curto olhar trocado, uma surda cumplicidade etária com o puto ao meu lado no balcão, que continuava a sorrir de soslaio.

Como a medida do gin no copo alto lhe era menos familar, a miúda esperou que eu lhe dissesse quando deveria parar de encher. Propositadamente, deixei-a "subir" o líquido no copo, de forma exagerada. Quando lhe disse o "assim!", já esgaseada pela escassez do espaço que sobrava para duas pequenas pedras de gelo e um pouco de água tónica, concluí: "Sabe? O "Gordon's" é um gin especial. Serve-se sempre assim, em doses para homem..." Não dei a confiança ao puto de ver a cara que terá feito.

domingo, agosto 31, 2014

À conversa na "Gomes" (5)

- Não te vi o dia todo. Onde é que te meteste?
- Fui a Bornes, ver a procissão.
- Não te sabia homem de fé...
- Eu cá é mais fezadas. E hoje tinha uma...
- Que era?...
- ... sair de Carnide com os três pontos.
- Bom, bom. Começam as provocações... Já uma vez te disse que o estádio não é em Carnide!
- Em Benfica é que não é! 
- E que achaste do resultado?
- O Sporting merecia ganhar. Mas aceita-se o empate.
- Ainda há muito campeonato pela frente.
- Quero dizer-te que vocês têm um grande guarda-redes. Guardem-no bem...
- Deixa-te de brincadeiras! O Artur?!
- Tem graça! Julguei que se chamava Roberto...

Nós e a guerra que anda por aí

O meu amigo JP Garcia "desafia-me" a escrever sobre o que se passa na Ucrânia. Que posso dizer que já não tenha aqui escrito, há semanas atrás? Nada do que está a passar-se me surpreende, desde a atitude russa à reação dita ocidental, com relevo para o esbracejar patético da Europa e o franzir de sobrolho do SG da NATO.

Se eu disser - como penso - que a UE está "a colher aquilo que plantou", ao ter apoiado o derrube de um presidente legitimamente eleito e ter estimulado uma "escolha" estratégica por Kiev que um mínimo de razoabilidade política assumiria sempre como inviável, sem cuidar minimamente do estatuto das minorias russas (como também faz dolosamente em alguns Estados bálticos), serei considerado um "agente ao serviço de Moscovo".

Se eu disser - como penso - que Putin mantém a tradicional estratégia de destabilização do "near abroad" ex- soviético, que passou já algumas "red lines" que justificam plenamente as sanções que a Rússia está a sofrer e que devem ser agravadas e que, com o seu comportamento dúplice, mostra que a Rússia deixou de ser um parceiro fiável e que é necessário rever rapidamente o conceito estratégico da NATO, para não deixar os acontecimentos correrem à vontade do seu autoritarismo, vou ser crismado de "agente do imperialismo americano".

Se eu disser  - como penso - que ainda não percebi bem o que pensa Portugal (na UE e na NATO) sobre tudo isto, salvo que me parece que segue uma linha de "Maria vai com as outras", mandando uns soldadinhos e um C-130 para que lhe não marquem falta, fugindo entre os pingos da chuva da política europeia e euroatlântica, esperando que não se lembrem muito de nós, são capazes de me chamar anti-patriótico e de estar a pôr em causa a nossa "tradicional política de alianças" - que é, as mais das vezes, uma mera coreografia seguidista, sem opinião nem rumo próprio, rogando aos céus que não nos peçam para fazer muito.

Nestas condições, para que vale a pena eu estar aqui a "chover no molhado"?

Piauí

A revista brasileira "Piauí" faz um excelente jornalismo. Grande no formato, com papel "pesado", grafismo atraente mas sóbrio, tem artigos longos mas muito substanciais, embora num estilo solto que leva a que a qualifiquem como "uma revista sem gravata". Assisti ao lançamento sa publicação, quando vivi no Brasil e fiquei fã. Às vezes, ainda compro alguns números. Acabo de saber que o de agosto é excelente.

Não resisto a contar uma graça que a "Piauí" (nome de um pequeno Estado do nordeste brasileiro) fez um dia. 

Depois da saída dos primeiros números da revista, o número de exemplares vendidos continuava baixo e, por algum tempo, temeu-se pela subsistência da publicação, cujo caráter heterodoxo é a sua imagem de marca. Um dia, o caos instalou-se no serviço de transportes aéreos do Brasil. Creio que foi uma greve dos controladores que desencadeou uma crise que praticamente paralisou o país por uns dias. No Brasil, com aquela dimensão, viajar de avião é a regra, dado que as distâncias terrestres são imensas e, além disso, em grande parte do território, as estradas, quando as há, estão longe de ser recomendáveis. Essa crise nos transportes ficou conhecida como o "apagão" aéreo (a palavra "apagão" nasceu numa crise energética que deixou sem eletricidade o país, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, e, a partir daí, o brasileiro passou a utilizar o termo para designar tudo o que "está parado").

No Brasil, todos os transportes aéreos são controlados pelos militares. Não perguntem porquê, mas essa é uma prática que vem do compromisso feito na transição da ditadura para a democracia. Daí que o ministro da Defesa seja nesse domínio a autoridade política mais elevada, também em matéria de transporte aéreo civil. À época, o cargo era desempenhado por um cavalheiro encantador, um grande democrata da Bahia, Waldir Pires, talvez o mais idoso membro do então governo Lula, com o qual eu tinha, aliás, uma magnífica relação pessoal. O ministro foi então pessoalmente acusado de inoperância na resolução da crise e, meses depois, na sequência de um desastre aéreo, foi obrigado a demitir-se.

Ora a "Piauí", no número editado imediatamente após o "apagão aéreo" inseriu um histórico e irónico editorial com o título "Obrigado, Waldir!" Porquê? O texto ligava a caótica gestão que o ministro teria feito da situação, obrigando as pessoas a esperar, às vezes por dias, nas salas de espera e no chão dos aeroportos, à exponencial subida no número de exemplares da "Piauí" vendidos. E explicava (si non è vero, è ben trovato): a "Piauí" é uma revista com longos artigos, que precisam de muito tempo para serem lidos. Ora, segundo o divertido texto, fora precisamente o facto das pessoas "terem mais tempo", isto é, estarem bloqueadas e sem nada para fazer nos aeroportos a razão do sucesso editorial desse mês. E, por essa razão, agradecia ao ministro do "apagão aéreo" a involuntária contribuição dada para o seu sucesso...

Não sei como anda o meu amigo Waldir Pires, nos seus 88 anos. Duvido, contudo, que leia a "Piauí"...

sábado, agosto 30, 2014

À conversa na "Gomes" (4)

- Às tantas, os polacos também vão dizer que o seu primeiro-ministro "fugiu", ao ir para presidente do Conselho europeu, como há dez anos aconteceu com o Durão Barroso.
- Não me parece, mas vamos aguardar. Mas a ida de Barroso para a Comissão Europeia foi uma coisa positiva.
- A sério?! Não estava à espera de te ouvir dizer isso...
- Sinceramente, acho que foi uma honra para o país que um português fosse convidado para um lugar daquela importância.
- E a maneira como ele desempenhou o lugar? Não conta?
- Isso é outra história... Mas ainda há mais uma razão para achar que ele devia ir para Bruxelas.
- Ah! sim? Qual é?
- É um pouco mais irónica. Foi vê-lo sair de primeiro-ministro. Confesso que não fiquei nada triste...
- Também te percebo...

O baile do Zé Macário

Há histórias cuja graça só consegue ser apreendida por quem conheceu as personagens reais que as protagonizaram. Explicar quem é o Zé Macário é uma redundância para muitos vilarealenses (eu sei que se escreve com dois "erres", mas por cá é assim, pronto!) do meu tempo, mas é uma necessidade para os muitos mais que nunca se cruzaram com essa figura quase mítica, tantos são os seus episódios curiosos, que marcaram o imaginário de algumas décadas da cidade. A família Macário (curiosamente há um Macário, de Vila Real, do conto "Singularidades de uma rapariga loura", de Eça de Queiroz) é bastante conhecida na cidade, quer na área comercial, quer na fotografia: o pai do Zé Macário era um fotógrafo habitual nos eventos citadinos, com especial destaque para o desporto. E a última atividade que conheci ao Zé foi precisamente a de fotógrafo, a par de ser um ás para o negócio imobiliário.

Creio que o Zé Macário deve ser basicamente da minha idade. Era uma figura aquilina, ligeiramente curvada para a frente, de passo rápido e olhar vivo. Sempre penteado a preceito, de risca ao lado, parecia-se muito com aquela imagem dos brasileiros dos anos 30, que o "amigo da onça" de Péricles consagrou, embora sem o bigode. Com uma lata estanhada, era um farrista emérito, disponível para aventuras de largo espetro, algumas incontáveis. Ao tempo da sua juventude - já não vejo o Zé há muito e dizem-me que vive hoje fora de Vila Real, depois de vários percursos afetivos - teve sempre um particular êxito com um certo tipo de pequenas, fruto de uma lábia bem ensaiada e de uns métodos requintados de engate em que se aprimorara. Vestia de forma galante, assenhorado, com uns históricos coletes que lhe davam um ar, simultaneamente, sério e divertido. Nunca fomos íntimos: eu sempre tive tendência em ironizar um pouco com ele e, imagino hoje, ele não devia "ir muito à bola" com a minha maneira de ser. Mas recordo-me de, não obstante algumas escassas tricas, sempre nos termos dado relativamente bem.

Guardo para sempre dele uma imagem com uma imensa bebedeira - uma "narça", como por cá se diz - que apanhou numa ceia da festa estudantil do 1º de dezembro, um rito alcoólico de iniciação por que todos passávamos. Ele estava sentado no chão, esbodegado, olhos vítreos, depois de muito tinto e alguma aguardente, quando um polícia se aproximou e, com ar complacente mas crítico, lhe atirou: "Você não tem vergonha de estar aí bêbado?" O Zé, entaramelando a voz, nessa noite do ano em que tudo nos era permitido, olhando enevoadamente o cívico, retorquiu-lhe: "E você não tem vergonha de estar aí polícia?"

Mas "este" Zé Macário era compatível com o afinado galã de bailes, ele que era um dançarino de primeira água, que cuidava em percorrer todas as damas disponíveis de uma sala, das mais girotas até aos estafermos inapresentáveis. O que ele gostava era de dançar! E corria, com critério, as melhores festas do distrito para aproveitar os bailaricos.

São aos montões as histórias divertidas que envolvem o Zé Macário, um homem que acabou por ter uma vida algo atribulada, com algumas tragédias pelo meio. Talvez por isso se torne interessante destacar o período mais divertido dessa sua existência agitada. 

Ontem, ao almoço, um amigo comum contou-me um episódio, ocorrido num baile no Casino das Pedras Salgadas, no final dos anos 60. Ele e o Zé tinham-se aperaltado a preceito para o evento. Desde a chegada ao baile, o Zé notara um sorriso prometedor, do outro lado da sala, de uma miúda bonitota, que trazia à ilharga uma mãe com ar austero. O Zé lançou-se numas danças com outras parceiras, mas foi mantendo olho na pequena, que sempre o mirava com ar convidativo. Curioso, decidiu tentar a sorte. Com aquele seu aspeto de quem "não parte um prato", educadérrimo, aproximou-se da mãe da rapariga e pediu, em termos irrepreensíveis, autorização para uma dança com a filha. A senhora anuiu, a pequena levantou-se da cadeira e foi então que o Zé notou que ela tinha um defeito numa perna e caminhava flagrantemente aos solavancos, numa coreografia que nos levara a crismar um conhecido professor de Matemática do liceu com o apodo de "chega-me isso", pela similitude da infelicidade ortopédica com o gesto de pedir algo para a frente.

Mas o Zé Macário não era rapaz para se deixar intimidar por uma surpresa, nem sequer daquele quilate. E, com imenso garbo, pôs-se a dançar com a pequena como se, também ele, sofresse dessa limitação no andar. Diz quem viu que, sem nunca se desmanchar, o Zé aguentou não uma mas três danças, sempre assumindo, mimeticamente, a mesma coreografia mancada, porventura adaptada habilmente à provável variação dos ritmos. No final da terceira dança, sempre de sorriso nos lábios, devolveu a pequena à mãe, agradeceu e beijou a mão da senhora, como era seu velho timbre, atravessou a sala para reencontrar o amigo com quem viera e, finalmente à vontade, de costas voltadas, desabafou: "Porra! Estou de rastos. Vamos embora!"

Grande Zé Macário! Onde estiveres, um forte abraço para ti.

sexta-feira, agosto 29, 2014

À conversa na "Gomes" (3)

- Não achei muita graça à desvalorização que fizeste ao nosso rio, lá no teu blogue.
- Não desvalorizei! Apenas disse que o Corgo tem pouca água no verão...
- Pois, pois! Mas sabias que foi Vila Real a primeira cidade do país a ter iluminação pública produzida por energia hidráulica? Em 1894! E já era o Corgo, claro!
- A água é que era outra! De facto, Vila Real é uma cidade pioneira. Também tivemos a primeira Casa do Chinês!
- A sério? Essa não sabia! 
- E bem cedo! Se bem me lembro, foi aí nos anos 60, se não mesmo antes!
- Tás a brincar! Não tenho ideia de que essas bugigangas já estivessem cá à venda nessa altura.
- Quais bugigangas? Tecidos, malhas e excelente roupa... Há anos que compro lá lenços.
- Mas onde?
- Na Rua Direita.
- Na Rua Direita?!
- Sim, a "Casa do Chinês", do senhor Luís Carvalho. Está lá há décadas!
- Vai à fava! Alinhas em mais uma fatia de bola de carne?
- Vamos a isso! E, já agora, pede dois finos bem tirados.

Uma confissão diplomática

Estávamos no início dos anos 90. Eu era diplomata em Londres. Uma das regras de ouro da condição diplomática - como, aliás, de qualquer outro serviço público - é não utilizar as funções que se ocupam em interesse próprio. Por isso, devo dizer que hesitei um pouco em usufruir do cargo que conjunturalmente exercia, como "encarregado de negócios" (o diplomata que exerce a chefia da embaixada, na ausência do embaixador), para lidar com aquele assunto. A questão, porém, não era estritamente pessoal. Em bom rigor, tinha mesmo uma dimensão nacional, quiçá patriótica. Dependia da perspetiva com que fosse encarada. Assim, arranjei coragem perante mim mesmo e decidi passar à ação, tanto mais que aquela era excelente oportunidade para tratar de um tema que há muitos anos me perturbava.

Preparei uma série de cartas, todas idênticas, com os timbres necessários da embaixada, identifiquei bem os destinatários a quem deveria dirigir-me no grande número de jornais, em Londres e em outros locais do Reino Unido, que pretendia influenciar e enviei-as. Nelas dava conta, ambiguamente em meu nome - cuidei em não dizer que o fazia por instruções do governo que representava -, do facto dessa publicação (tal como todas as outras), com uma insistência que se revelava maçadora e desagradável, identificar por sistema uma determinada instituição portuguesa por um nome que não correspondia à designação correta da mesma. Deixava em aberto a possibilidade desse flagrante erro ser produto de um hábito enraizado, eventualmente inspirado por entidades internacionais, mas pedia a melhor atenção do jornal para o problema, confiando no seu juízo prudente. Enviei, em anexo, documentação em apoio à tese defendida. Fiz o mesmo para a Reuters, para a BBC e para alguns outros canais, de televisão e rádio.

Pelo menos nesse tempo, os ingleses ainda levavam as embaixadas estrangeiras relativamente "a sério" e, talvez por isso ou talvez pela justeza objetiva da diligência, o "minister counsellor" que eu então era, revestido das funções de "deputy chief of mission", recebeu nas semanas seguintes várias respostas amáveis, umas mais positivas do que outras, quanto à promessa de irem ser tomadas medidas retificativas da tal reiterada prática que incomodava a embaixada, mas todas sempre muito compreensivas quanto à razoabilidade do meu pedido. E, de facto, pelo menos num bom punhado de casos, o assunto foi corrigido.

Mas que "diabo" de questão era essa?, perguntar-se-á legitimamente o leitor, nesta fase do texto. Pois bem, era o pedido para que as habituais referências a um tal "Sporting Lisbon" passassem a ser corrigidas pela utilização do nome correto da prestigiosa agremiação desportiva portuguesa - Sporting Clube de Portugal. Na minha missiva, antecipando a dificuldade da utilização do nome por extenso, eu sugeria mesmo a utilização de "Sporting Portugal" ou simplesmente de "Sporting". Creio que não havia ninguém de Braga ou da Covilhã, lá pela embaixada...

As coisas entretanto evoluíram. Julgo que por justa insistência das direções leoninas junto da UEFA, esta organização deixou de recorrer ao aberrante "Sporting Lisbon" e quase toda a imprensa internacional mudou de prática. Ontem, nas mãos de Casillas, na abertura do sorteio da "Champions", lá estava, bem à vista, o nome correto e completo do clube. As designações geograficamente mais redutoras, marcadas por nomes de localidades, foram na ocasião utilizadas para duas outras agremiações, cujo nome não vem ao caso referir.

Terá sido abuso de poder? Foi utilização indevida de uma posição? Será. Mas, mesmo que houvesse consequências disciplinares, já prescreveu. Ah! E fez-se justiça, que é o mais importante.

O sino do Viròmundo

Sou dum tempo em que as "explicações" faziam parte do quotidiano complementar do ensino do liceu, em Vila Real. A avaliar pelo número e frequência dos "explicadores" e explicandos, em vários domínios, devia ser uma profissão rentável.

Durante muitos anos, a grande e competente explicadora de Matemática da cidade era um senhora de feitio difícil, atingida por uma doença fisicamente incapacitante, que se deslocava com dificuldade. Sentava-se, por largas horas, numa sala com mesa retangular e uma janela para a rua. Chamava-se Maria de Lurdes, nós éramos supostos chamá-la de "senhora D. Maria de Lurdes" mas, desde cedo, a corruptela aceite soava a "Semelurdes". Os explicandos menos atentos eram chamados para o seu lado, lugares temíveis porque as repreensões orais eram complementadas com "reguadas" com um lápis com uma espécie de boquilha (nunca vi nada igual!), que nos acertava nos nós dos dedos, punindo as distrações ou comentários que lhe desagradavam. 

As explicações duravam uma hora e eram medidas pelos toques dos sinos da Sé, porque a "Semelurdes" não usava relógio. Entrava-se e saía-se às meias horas (em que o sino dava dois toques). Com uma disposição menos entusiasta pelo estudo, muitos ansiávamos bastante por esses dois toques do sino. Por isso, eram-nos indiferentes os restantes toques (três para os três quartos de hora, quatro toques para a hora certa, seguida de um bater dessa hora noutro sino, e, finalmente, um toque para o quarto de hora, depois da hora exata). O relógio da Sé, ali perto, funcionava então na perfeição. Havia, porém, momentos, creio que para missas e outros atos religiosos (sou pouco dado a essas questões) em que se assistia ao sineiro a subir à torre, dando depois fortes badaladas num dos sinos.

Eu tinha andado na escola primária com o sineiro, que tinha mais dois ou três anos do que eu e que era conhecido pelo nome de Viròmundo. Um dia, numa conversa de explicandos da "Semelurdes", no encontro prévio que sempre havia em frente à pastelaria "Gomes", e ao vermos o Viròmundo a rondar a torre da Sé, surgiu uma ideia: pedir ao Virómundo para, na altura do quarto de hora, dar mais uma badalada à mão, criando assim a ilusão sonora de que era meia-hora, o que poria fim à explicação desse dia um quarto de hora mais cedo. Como era eu que conhecia bem o Viròmundo, fui o encarregado da diligência. O sineiro mostrou-se, de início, avesso à ideia. Não queria arriscar o lugar, mas lá acabou por aceitar o "frete", a troco de "cinco coroas", talvez pensando, e bem, que não seria por essa badalada a mais que o padre Henrique o poria "com dono". E sempre empochava "vinte e cinco tostões" só por subir à torre. Era um bom negócio!

E lá fomos nós para a explicação da "Semelurdes", às duas badaladas das três e meia. O grupo que havia combinado a patranha (que não incluía uma ou duas colegas mais "certinhas") adiantou os seus próprios relógios um quarto de hora. A aula da explicação decorreu normalmente. Dez minutos passados sobre as badaladas da hora completa (que era habitual ninguém notar), um de nós (creio ter sido o João Leite Gomes, mas não estou seguro) lançou, aproveitando um momento de silêncio: "Como o tempo passa... já são quatro e vinte e cinco". A Julinha, uma colega "certinha", ripostou, olhando para o relógio: "Não são nada! São quatro e dez". Um coro saiu logo em protesto, mostrando os respetivos relógios, defendendo serem "quatro e vinte e cinco". O relógio da intrigada Julinha foi qualificado de "marca Roscoff" o que obrigou a "Semelurdes", um tanto hesitante pela noção impressiva do tempo, a arbitrar, para acabar com a conversa: "A mim parece-me não ter passado uma hora, mas logo veremos, com o toque das quatro e meia". 

E lá vieram, um minuto depois, as duas ansiadas badaladas das "quatro e meia", que, afinal, era a badalada das quatro e um quarto complementada com aquela que fora paga ao Viròmundo. Levantámo-nos das cadeiras, mais lestos e sorridentes do que era habitual, perante uma "Semelurdes" um tanto perplexa e uma Julinha desiludida pela qualidade do relógio que o pai lhe tinha comprado, nos anos, no Nascimento.

A "Semelurdes" deve então ter ficado muito surpreendida pelo facto dos explicandos seguintes terem chegado com um quarto de hora "de atraso". Imagina-se que devem ter sido objeto de um raspanete e que todos devem ter dado fortes garantias de que chegavam exatamente às quatro e meia. Na sessão de "explicação" seguinte, dois dias depois, quando entrámos na sala, conosco preparados para "ouvir das boas", ela surpreendeu-nos a todos ao não dizer uma palavra sobre o assunto. Nós que, a montante desse momento, havíamos feito pressão sobre a Julinha e as restantes "certinhas" para "estarem caladinhas". 

O assunto passou. Um dia, anos corridos, estava eu já na universidade, fui visitar e cumprimentar a "Semelurdes". E decidi revelar-lhe a patranha. Lembrava-se do episódio, alguém lhe tinha falado da história da cumplicidade do sineiro, mas era a primeira vez que dele tinha confirmação. Agora, pela palavra, "de confiança", de um dos "conspiradores"...

Eram bem simples esses tempos de Vila Real, nos nossos 14 ou 15 anos...

quinta-feira, agosto 28, 2014

À conversa na "Gomes" (2)

- É pá! Não percebo por que é que os "rails" de proteção do circuito não são retirados logo após as corridas! Dá um mau aspeto a Vila Real, é um sinal de desmazelo, esconde os prédios...
- Faz parte! Tu é que já não estás habituado. Andaste muito pela estranja... Cá, somos assim mesmo! Também ninguém tira os cartazes ou as faixas de estrada, a anunciar espetáculos ou festas que já passaram há muito.
- Então achas isso normal? E que a propaganda das europeias, bem depois das eleições, tenha ficado largas semanas por aí?
- E por que não? Também ainda podes encontrar, em algumas varandas, bandeiras nacionais a cair de podres, já rotas, do Euro 2004... E, no entanto, já perdemos muitos campeonatos depois disso!
- Ah! Bom! Se vais por aí... Em Lisboa, ainda há placas a dizer "Expo 98"!
- Tás a ver? Somos um país que custa desligar-se do passado, por isso vai-o deixando sobreviver. É uma espécie de cultura snobe da decadência, o desmazelo como doutrina coletiva de comportamento.
- E, já agora, o que é que tu achas da história dos canteiros da praça do Império, em Lisboa? A Câmara parece que quer fazer desaparecer de lá os escudos das antigas colónias.
- Ai eu, por mim, deixava-os ficar. Decadência por decadência, nada bate a CPLP...

Os ponteiros do Zé Foquita

Nesta cálida noite de Vila Real, lembrei-me do José Araújo, o Zé "Foquita", como a cidade lhe chamava, sei lá bem porquê. 

Um dei hei-de aqui falar um pouco mais do Zé, esse amigo, um pouco mais velho do que eu, que já se foi há um bom par de anos. O seu primeiro carro, que me lembre, era um "Mini", que comprou no regresso da tropa. Nele se passeava, ar grave e melena ao vento, pelas noites de Vila Real. O Zé não era uma pessoa fácil, irritava-se por dá-cá-aquela-palha, por isso tinha poucos mas fiéis amigos. Com orgulho, fui um deles. Foram décadas de conversas, intervaladas por longos meses e por universos pessoais cada vez mais distantes, mas próximos pelo passado comum. Sempre que nos encontrávamos, reatávamos a charla como se a última tivesse sido na véspera.

Na Vila Real da minha juventude, o "passeio dos tristes" automobilístico fazia-se pelo tradicional circuito, um percurso na periferia urbana, com 6.925 metros, como sempre aprendi, onde anualmente se faziam "as corridas" - uma "mania" da cidade introduzida ainda na primeira metade do século passado, que, aí por julho, lhe dava um ar cosmopolita e a colocava no mapa do desporto nacional. O circuito teve altos e baixos, tendo sido reativado - e bem - este ano, embora já com percurso diverso do tradicional.

A "volta ao circuito"  - onde nunca pensei acabar por vir morar, quando agora por aqui passo uns dias - iniciava-se pela "marginal". (Vila Real não parece mas tem um rio, "lá ao fundo", o Corgo, que se junta com o Cabril "atrás do cemitério" e que dá um ar da sua graça no inverno, e daí a "ousadia" de pretender ter uma "avenida marginal", que não tem esse nome, mas que conhecemos assim, os que a vimos nascer). Saía-se para o circuito pela garagem Loureiro, junto ao quartel velho, passavam-se as tascas do Necas e do Carrico, logo depois eram a casa do Salsa Verde e a "do brasileiro", seguia-se à borda da imensa quinta do Teixeirinha até ao cruzamento para o quartel novo e à garagem Renort.  Descia-se então à ponte da Timpeira (antecedida de duas curvas históricas), subia-se por Abambres, passando pela tasca da Maria do Carmo (hoje um simpático restaurante), atravessando a linha do comboio. Pouco depois, chegava-se à celebrada reta de Mateus (bem pequena, aliás), com a tasca do Coelho, antes de começar a descer, abordando as difíceis curvas de entrada e saída do Bairro dos Prazeres. Prosseguia-se o caminho estreito para a ponte metálica, passando antes entre a garagem do Antoninho do Talho e a casa do Granjo, para logo surgir a passagem de nível da estação ferroviária e o colégio. Ultrapassada a ponte e a subida pela tasca da Cardoa, chegava-se à difícil curva da Areias (pensão histórica da cidade) ou da Salsicharia, dependendo do ângulo e dos gostos. E, lá ao fundo, depois da entrada para o parque florestal e da garagem do Rosas, fechava-se "a volta ao circuito". Que estranho! Um circuito de garagens e tascas, deverá estar a pensar o leitor. E fui parco, creia, na menção das últimas...

Na minha vida, devo ter feito este percurso do circuito largas centenas de vezes, frequentemente à conversa, "nas calmas", ouvindo música, noutras ocasiões "a acelerar", em "picanços" noturnos, a que sobrevivi incólume, ao contrário de outros, menos felizes. É que era assim a vida nesta cidade pequena, algo abafada e monótona, no final dos anos 60 e início dos 70. 

Também com o meu amigo Zé "Foquita" fiz muitas dezenas "de circuitos", sempre devagar, conversando, ele fumando os muitos sonhos nunca realizados, eu "pintando-lhe" a vida do Porto e, depois, de Lisboa, onde entretanto passara a viver. Nesses tempos do petróleo a pataco, ainda os árabes andavam quietos e baratos, recordo-me de metermos "sete e quinhentos da normal", na bomba do Platas, em frente ao Tocaio, apenas para dar uma volta ao circuito. Mas, com ele, não me recordo de ter feito nunca o percurso no sentido que atrás descrevi. Fi-lo sempre na direção inversa. O Zé obstinava-se em percorrer o circuito "ao contrário dos ponteiros do relógio", ao reverso do das "corridas". Sempre. Porquê? Provavelmente porque, como dizia o meu pai de algumas pessoas teimosas, ele sempre "andava contra o vento". Nunca soube porque o fazia e também creio que nunca lhe perguntei. É melhor assim. Ter pequenos e desimportantes mistérios que nos ficam para a memória feliz da vida.

quarta-feira, agosto 27, 2014

À conversa na "Gomes" (1)

- Gostas mais dos covilhetes* frios ou quentes? 
- Depende. É como a vingança. 
- Essa agora!?
- Ó pá! É assim: se a afronta foi recente, é na hora, a quente, saído do forno. Se já passou há muito, serve-se frio e também sabe bem.
- Eu gosto do covilhete aquecido...
- Aquecido é que nunca: fica morno demais para o meu gosto. Ou oito ou oitenta!
- Nem te estou a conhecer! Costumas ser mais equilibrado. Hoje pareces irritadiço!
- Se calhar estou a precisar de férias...
- Mas tu não estás reformado?
- Nem sei bem! Às tantas, estou a precisar de ter férias desta reforma. Faz-me falta o dia-a-dia de Lisboa.

* o covilhete é um pastel de carne e massa folhada, especialidade de Vila Real. A pastelaria Gomes gaba-se de ter os melhores da cidade

Concurso de misses?

Olhando para as redes sociais - acho graça ao conceito: aqui há uns anos, "ter redes sociais" significava ter bons contactos no eixo Lapa-Linha ou Gomes da Costa-Foz - dou-me conta do desprezo que muitos votam ao debate de ideias concretas na contenda pela liderança do PS. 

(Quando falo de ideias concretas não me refiro a platitudes, como "ser contra esta austeridade que falhou ", "ser favorável a estímulos ao crescimento da economia", ter "políticas amigas do emprego",  "relançar políticas públicas sustentáveis", "afirmar uma voz ativa na Europa" e outras coisas deste estilo piedoso. Ideias é mostrar, no concreto, como é que os candidatos do PS a primeiro-ministro querem construir um orçamento alternativo para 2016. É isso que se lhes pede.)

De ambos os lados do cenário, perpassa cada vez mais a mensagem de que o importante é a personalidade dos competidores, a sua resiliência (o termo entrou no léxico político recente e já fede) perante as dificuldades, a imagem de competência e/ou firmeza e/ou determinação e/ou simpatia que projetam. Ah! e a confiança, que é assim a modos como uma fezada com prazo de validade indeterminado, isto é, até ao dia em que, confessando ou não, os políticos deixam de fazer aquilo que prometeram.

Conduzido o debate para este terreno fulanizado, os próceres e os próprios candidatos foram levados a pisá-lo, mesmo com algum despudor. António José Seguro foi o primeiro a fazê-lo, com acusações personalizadas que pareceram às vezes tocar questões de caráter. Não foi bonito de ser ver. António Costa resistiu mais, mas, nos últimos tempos, começou já a emitir alguns juízos sobre a figura do seu adversário, contestando a sua consistência política. Apesar de tudo tem sido mais contido. Quanto às "cortes" respetivas, então bem uma para a outra. Dizer que tudo isto era inevitável, numa campanha deste tipo, é apenas uma forma "self-deprecating" de insultar o PS. O PS, que foi e é um grande partido da História contemporânea portuguesa, é muito melhor que este "concurso de misses" que parece estar em curso. E convém lembrar que Costa e Seguro, como sói dizer-se no povo, "são do melhorzinho que por lá há", pelo que têm obrigação de estar à altura do desafio.

Os debates que aí vêm são assim uma oportunidade soberana para os candidatos à liderança do PS fazerem uma "desmontagem" criativa da ação do governo e, em cada passo, dizerem concretamente como tencionam corrigir o que foi mal feito. Isso nem parece muito difícil, perante os tão catastróficos resultados da ação governativa. Explicar que, no "novo oásis", as taxas de juro relevam exclusivamente da Europa (como os outros "ajustamentos" mostram à saciedade) e que os números do défice (ainda assim, muito maus) têm obrigatoriamente de ser comparados com a dívida mostruosa que este governo criou para as gerações futuras, não se afigura tarefa impossível. Ah! E há o desemprego! De facto, depois de o ter feito disparar a cifras imemoriais, ele tem vindo a ser reduzido, ajudado pela emigração maciça. Ainda bem! Por este andar, um destes dias, vão mesmo conseguir aproximá-lo dos níveis herdados do governo Sócrates...

terça-feira, agosto 26, 2014

Socialistas - os franceses e os nossos

Como não vejo televisão há vários dias, desconheço se alguém perguntou já a António José Seguro ou a António Costa se acaso discordam, numa vírgula que seja, do discurso de Arnaud Montebourg sobre a necessidade do fim da austeridade e dos seus apelos a políticas europeias promotoras do crescimento e do emprego. É que, à parte as tradicionais tiradas de nacionalismo económico protecionista gaulês, e para além das críticas abertas a Angela Merkel, o que ouvi de Montebourg leva diretamente, quase linha por linha, àquilo que ambos os candidatos à liderança socialista, aliás como o PS português no seu todo, têm vindo a defender nos últimos anos.

Ora foi a persistência pública nesse discurso, com o apoio expresso de dois outros ministros, que levou ao respetivo afastamento do governo de Manuel Valls. Porque a lógica não deveria ser uma batata, seria legítimo concluir que a política que Valls procurará imprimir ao seu governo deveria contrariar as posições de Montebourg - caso contrário este não teria saído. Isto significa, para fechar o círculo, que os socialistas portugueses estariam hoje em contraciclo com os seus camaradas franceses.

Pois isso! A política é o que é: Hollande e Valls dirão que o que os separava de Montebourg eram apenas meras "nuances" no prosseguimento de uma mesma política e talvez discordâncias no modo de a explicitar. Por cá, Costa e Seguro dirão que não querem imiscuir-se na vida interna do partido-irmão francês e que continuam a contar (e aqui improviso) "com a já afirmada determinação dos socialistas franceses para se aliarem a quantos, como é o caso do PS português, se batem na Europa pelo fim das nefastas políticas de austeridade, que não só aumentaram exponencialmente as dívidas soberanas nacionais, mas igualmente agravaram as fraturas sociais, afetaram gravemento o tecido das políticas públicas, arruinando largos setores da economia e destruindo, a prazo, as hipóteses de um crescimento sustentado, ao mesmo tempo que potenciaram o desemprego e, no caso português, provocaram uma onda de emigração qualificada que descapitalizou fortemente os recursos humanos do país".

E não é que tudo isto - digam Montebourg ou Costa ou Hollande ou Seguro o que entretanto disserem - é pura verdade?! Mas então, se as diferenças não são assim tão grandes entre todos, por que diabo Montebourg foi obrigado a demitir-se? Pela mesma razão que, por cá e naquilo que os socialistas portugueses digam ou possam vir a dizer e que se ouça na Europa, o peso das palavras e da sua oportunidade tem de ser sempre muito bem medido. Seguro e Costa deviam olhar bem para esta crise governamental francesa e dela tirarem algumas lições para o cuidado a ter na formatação do seu discurso futuro "para fora". E nós não somos a França, não se esqueçam!

Um traumatismo ucraniano

Depois de vermos um verme político islamita a decapitar um pobre refém, ou um par de "valentes" do Hamas a liquidarem sumariamente informadores de Israel, a nossa capacidade para nos chocarmos começa a reduzir-se. Os Balcãs já nos tinham ensinado muito. Mesmo assim, devo dizer que não estava preparado para assistir à vileza dos pró-russos, ao paradearem e achincalharem os prisioneiros fiéis ao governo de Kiev, através das ruas de Donetsk. Confesso que aquilo foi, para mim, um trauma que não esperava ter.

Em muitas destas histórias da política intermacional quase nunca há inocentes e, no caso ucraniano, ainda menos. O que se passa em Kiev está muito longe de ser a "história da carochinha" que alguma imprensa ocidental quer fazer crer, com os "bons" em Kiev e os "maus" em Donetsk e em Moscovo. Entre os "libertadores" da praça Maiden, que escolheu de "mão no ar" o governo que substituiu o poder de um presidente livremente eleito, segundo uma constituição que tinha sido adotada em liberdade, estavam algumas figuras sinistras que, quase aposto, farão parte daquilo que prevejo venha a ser o triste futuro daquele pobre país. Do "outro lado", também não estão nenhuns "meninos do coro": o autoritarismo que começa a ser insuportável de Vladimir Putin, que "czareia" uma Rússia que volta à "teoria do cerco" e parece só saber viver com a sua vizinhança destabilizada, testou a comunidade internacional com um "golpe de mão" sobre a Crimeia, dando de barato que esta apenas o "bombardearia" com declarações sonantes e algumas sanções de efeito variado. E acertou.

No meio de tudo isto, os russos da Ucrânia oriental, animados com o sucesso da Crimeia, tentaram uma prova de força que só teria viabilidade se Moscovo os apoiasse militarmente (mas de forma aberta, porque é óbvio que a Rússia já o fez e faz de forma encapotada). Minoria clara num país apostado em esmagá-la (numa Europa em que se defendem tanto as minorias, foi sempre muito cínico por parte da UE o esquecimento da sorte dos russos da Ucrânia, como o tem sido, desde há anos, a das minorias, também "por coincidência" russas, nos Estados bálticos), esse grupo enveredou por uma estratégia de confrontação desesperada, quiçá à espera da ajuda externa que acharia natural. Ainda não se percebe até onde o que por lá se passa vai chegar, embora a sucessão dos factos quase nos tenha feito esquecer a barbaridade sobre o avião civil da Malásia. Mas agora vimos melhor o que a guerra pode fazer à "cabeça" daquela gente.

O que se passou em Donetsk é a prova provada de que a canalhice não é um defeito apenas individual. A incrível humilhação infligida aos soldados fiéis a Kiev prova que há também nacionalismos canalhas, mostra bem - como com os islamitas do ISIS ou os radicais do Hamas - como o fanatismo pode trazer ao de cima o pior que há nas pessoas. Mas o mundo civilizado - porque ainda há um mundo mais civilizado do que outros - só terá um dia autoridade moral para julgar tudo isto quando, de igual forma, souber condenar, sem viés ideológico ou "parti-pris" geopolítico, todas as canalhices. E não apenas as que derem jeito às suas guerras de interesses. 

segunda-feira, agosto 25, 2014

O erro de Ferreira Fernandes

Como os leitores deste blogue já terão notado, estou frequentemente de acordo com Ferreira Fernandes, nos comentários que faz na sua coluna na última página do DN. Mas, como é da vida, há exceções. Ontem foi uma delas.

Ferreira Fernandes, num exercício desafiador aos dois contendores pela liderança do PS, incita-os a porem cobro à prática lançada pelas estruturas distritais de Braga daquela estimável agremiação partidária no sentido de manter, quiçá mesmo de inscrever, alguns mortos nas suas listas. Insurge-se contra esta iniciativa, colando-se ao argumento de que isso pode distorcer a verdade do resultado eleitoral. O preciosismo é eticamente frágil e historicamente desrespeitador.

Sobre a ética, deixo a apreciação do mérito dos autos ao juízo de cada um quanto à moralidade das lideranças socialistas locais. Já quanto à História, alto aí! Um partido não nasce hoje, acarreta consigo uma memória, dele fazem parte os que cá estão, mas que não estariam onde estão se um passado não tivesse sido construído por quantos, entretanto, já se libertaram da chatice da lei da vida. Alguém que ajudou a construir um partido, apenas pelo conjuntural facto de ter deixado de ter participação ativa no quotidiano da existência, deixa de "existir"? Que leitura mais simplista!

Noutro registo, que seria da toponímia se nos esquecêssemos de quem fez as instituições? Acaso não recorda Ferreira Fernandes, ao subir diariamente o elevador da casa que já foi da Moagem e que hoje é cada vez mais do dinheiro vivo do senhor Mosquito, figuras venerandas de antigas direções do seu jornal, seja um dos meus antecessores na embaixada em Paris, Augusto de Castro, seja aquele que com ele próprio partilha as iniciais, Fernando Fragoso, cujos impagáveis editoriais me divertiam as manhãs da "primavera" pré-abril? O passado, caro Ferreira Fernandes, mesmo enterrado, está aí! Como dizia um filósofo de Santa Comba, "só havemos de chorar os mortos se os vivos os não merecerem". 

O PS de Braga, ao prolongar a presença de ilustres mortos nas suas listas - e são muitos! - revela uma apreciável devoção por um passado que, naquele partido e naquela cidade, não tem - não temos! - o direito de esquecer. Será que um Armando Bacelar, que nos idos da CEUD de 1969, por ali levantava com coragem a voz socialista contra os Santos da Cunha da época, e apenas pelo facto de ter desaparecido da lista dos vivos, merece ter uma palavra menos pesada nos destinos do PS local do que aqueles que, também em nome do partido, votaram a estátua de um cónego ou de quantos, ao longo dos anos, parquearam interesses ao lado de um empreendedor com o sugestivo nome de Névoa? Há mortos cuja voz dignifica mais um partido do que muitos que hoje por lá andam.

O PS de Braga só prova que não esquece Lopes Graça quando, no seu "Vozes ao alto!", proclamava: "E até mortos irão ao nosso lado". Deixe os mortos socialistas votar em paz, meu caro Ferreira Fernandes! Deixe-os participar na vida do partido, até porque por lá permanecem alguns vivos a fazer de mortos e outros que já o estão e ainda não se deram conta disso. E a única forma de não ter de descriminar entre toda essa fauna é deixá-los votar a todos. Até porque, como também dizia o outro, e no estado em que isto anda, "todos não somos demais"...

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...