quinta-feira, novembro 22, 2012

Bons tempos!

Há minutos, participei na votação que decidiu a atribuição a Astana, capital do Casaquistão, da responsabilidade de organizar a Exposição internacional em 2017. Foram muitos meses de disputa cerrada entre aquela cidade e Liège, com uma imensidão de eventos, desde há mais de um ano, para promoção de ambas as candidaturas.

Ao entrar na cabine para a votação secreta - vi que três ou quatro países levaram para dentro da cabine dois delegados, "just in case"... -, na minha qualidade de representante português no Bureau International des Expositions (outro interessante "chapéu" que também tenho, aqui em Paris), não pude deixar de recordar, desta vez com alguma assumida nostalgia, a nossa "Expo 98".

Foi uma bela aventura, imaginada por António Mega Ferreira e Vasco Graça Moura, lançada nos governos Cavaco Silva e realizada nos governos António Guterres, que permitiu mudar a face da zona oriental de Lisboa e cuja concretização constituiu então um fator de grande prestígio para Portugal e, o que não é despiciendo, funcionou como um elemento de grande orgulho para todos os portugueses.

"Venham mais cinco!"

Nesta grande aldeia portuguesa que é Paris, no Théâtre de la Ville, na noite de ontem, foi homenageado José Afonso, neste ano em que se assinalam os 25 anos da sua morte.

Com uma sala entusiástica e a abarrotar, a música do "Zeca" foi interpretada por diversas vozes, femininas e masculinas, que lhe deram ritmos e entoações novas, assumidas como "herdeiras" de uma expressão musical e poética que diz muito a várias gerações - e já não apenas àquela que testemunhou o 25 de abril, como se evidenciava pela plateia, onde também me cruzei com a emoção de muitos franceses. 

Durante o espetáculo, dei comigo a tentar perceber como, de tributário da canção coimbrã, José Afonso partiu para a recuperação criativa de temas populares portugueses e, a certo passo, assumiu modulações africanas que hoje ressoam a uma imensa modernidade. Neste terreno, torna-se interessante verificar, nos seus poemas, um profundo sentimento anti-colonial, numa época em que poucos ainda enveredavam musicalmente por esses caminhos.

Um abraço de gratidão e parabéns ao Emmanuel Démarcy-Mota, diretor do Théâtre de la Ville, por esta sua magnífica iniciativa. 

quarta-feira, novembro 21, 2012

Saudades de Olrik

Blake & Mortimer voltam à ação, no "Serment des cinq lords", uma trepidante aventura onde os conhecidos personagens de Edgar P. Jacobs renascem, uma vez mais, pela mão de Yves Sente e André Juillard.

Para os muitos adeptos desta sempre infinda série de banda desenhada, que, como eu, a acompanham há décadas, pode dizer-se que este álbum se situa a um nível bastante razoável. A história é interessante e tem um ritmo vivo. Por vezes, o recorte estético de algumas personagens está abaixo do desejável. Devo dizer que o desenho de André Jouillard, nos cinco álbuns que elaborou, continua longe de me convencer.

Uma ausência irá desiludir alguns "habitués": o não aparecimento na ação do coronel Olrik, essa figura "do mal" que, qual Fénix, renasce sempre das cinzas das piores situações, mantendo como seus "queridos inimigos" o cientista Philip Mortimer e o seu inseparável comparsa sir Francis Blake, um aviador reconvertido ao MI5, onde, por misteriosas razões, nunca passou do "ranking" de capitão. Olrik - que curiosamente é coronel, nunca se soube bem onde - é um contraponto que dá graça à ação e que, espero bem!, deverá regressar um dia.

O trabalho de Edgar P. Jacobs iniciou-se em 1945. Ele foi responsável por 13 álbuns, alguns dos quais - como o "Mistério da Grande Pirâmide" ou "A marca amarela" - fazem parte do melhor que a consagrada escola belga da banda desenhada alguma vez produziu. Jacobs morreu em 1987 e, a partir de então, surgiram já nove novos álbuns, de desigual qualidade, assinados por diferentes autores.

Três notas ainda: Blake continua fiel ao vinho do Porto, Mortimer ao whisky e ambos ao cachimbo, fugindo saudavelmente ao antitabagismo "politicamente correto" que está a poluir por aí muita banda desenhada. Digo isto com a autoridade de quem nunca fumou... 

terça-feira, novembro 20, 2012

Agricultura potencial

A França, sem surpresas, é um dos países que mais defende a Política Agrícola Comum (PAC) da União Europeia, pretendendo que isso se reflita no seu próximo quadro financeiro plurianual, cujas difíceis negociações estão em curso.

Hoje, o "Le Figaro" traz, num artigo do seu suplemento económico, a seguinte avaliação: "A França conta numerosos aliados, na primeira linha dos quais figuram grandes potências agrícolas como a Polónia, a Espanha, a Irlanda, Portugal ou a Roménia".

Há dias em que o ego de um diplomata incha com o exagero da imprensa. São raros esses dias, diga-se, mas sabem bem.

segunda-feira, novembro 19, 2012

Condecorações

Não faço parte de quantos desprezam as condecorações, assunto de que já aqui falei. Nunca pedi nenhuma e tenho apenas as que, ao longo da minha carreira, entenderam atribuír-me, pelo que, naturalmente, sou grato a quem mas concedeu. Embora, com uma única e honrosa exceção, que está na imagem, tenha a consciência de que quase sempre acabei por recebê-las por razões ex officio

Ontem à noite, numa cerimónia oficial no Mónaco, a que tive de assistir por motivos oficiais, hesitei no uso das condecorações, tendo-me, aliás, divertido nesse exercício, à luz de critérios de afetividade internacional que cada um de nós intimamente segue.

Por regra, não gosto de me exibir muito "medalhado", ao contrário de outros colegas que, com toda a legitimidade, seguem critérios distintos, talvez por considerarem que é seu dever dar público testemunho da simpatia com que outros Estados os distinguiram. Mas, por uma ou duas vezes, fiz uma exceção à minha parcimoniosa regra e "engalanei-me" a preceito.

Numa dessas vezes, há mais de uma década, num baile de gala em Viena, encontrei o comissário europeu para a agricultura, Franz Fischler, creio que no "foyer" do Musikverein. Ambos reluzíamos de placas (aquelas "chapolas" metálicas que, até ao limite de quatro, se usam nas "casacas"), cada um de nós com uma vistosa faixa da nossa melhor "grã-cruz" a atravessar o peito e, no meu caso, com uma bem recheada "barrette" com miniaturas de muitas outras condecorações atribuídas. Olhámos um para o outro, sorrimos da "nossa figura" e ele saiu-se com este belo comentário: "Você já reparou que parecemos dois ditadores em traje de gala, como aqueles que o Hergé desenhava nas aventuras do Tim Tim?". E rimo-nos, porque estas coisas são mais para nos divertirmos e, sempre, muito menos, para levar a sério.

Ontem, antes de colocar qualquer condecoração, lembrei-me da frase que o duque de Edimburgo uma noite disse, num jantar no palácio da Ajuda, ao nosso antigo chefe do protocolo do Estado, embaixador Helder de Mendonça e Cunha, que nesse dia ia ajoujado de placas: "I was afraid you had some in your back too!" 

domingo, novembro 18, 2012

Demasiada memória

Há dias, um amigo dizia-me, levemente crítico, que eu tinha "demasiada memória". Para logo esclarecer: "é que tu lembras-te, às vezes, de certas coisas que mais valia a pena teres esquecido...". Talvez seja verdade. Com frequência, tenho esse tropismo de me recordar de assuntos que outros arquivaram em dossiês de conveniência, que não querem voltar a consultar. Como os leitores deste blogue já se devem ter apercebido, não o faço para visar especificamente ninguém, mas apenas como testemunho de quem acha que, sobre o que conhece, deve tentar "to set the record straight".

Vem isto a propósito de um recente editorial do "Jornal de Angola" que provocou algumas ondas de choque em Portugal, felizmente tratadas já com bom senso e sentido de equilíbrio.

O tema, contudo, fez-me "regressar" a Luanda, aos mais de três anos que por lá passei, entre 1982 e 1986, quando servi na nossa embaixada local. As relações oficiais entre Portugal e Angola eram então muito tensas, fruto da terrível guerra civil que marcava ao quotidiano angolano e da circunstância de certos setores da oposição ao governo de Luanda terem Lisboa como palco privilegiado para a sua afirmação pública. 

A argumentação de que muitos dos titulares das posições do partido do "galo negro", da UNITA, tinham nacionalidade portuguesa e de que, por essa razão, nada os impedia de se reunirem politicamente em Lisboa e daí atacarem, nos nossos media, o governo angolano, não era aceite, porque as autoridades angolanas entendiam que os sucessivos executivos lisboetas tinham o dever político de não permitir a expressão dessas vozes, que davam cobertura a um movimento que combatia, de forma violenta, o poder instalado em Luanda.

Debalde nós tentávamos explicar aos nossos interlocutores locais que a liberdade de imprensa era uma conquista daquele mesmo 25 de abril que abrira caminho à independência angolana e que, no nosso país, nenhuma ideologia, nem nenhum político, estava isento de ácidas críticas, a começar pelos próprios membros dos nossos governos. Mas essa uma "guerra" perdida, nos tempos em que uma certa elite lusitana mantinha um persistente fascínio por Jonas Savimbi, que então organizava os seus "Jamba tours", de onde esses convidados saíam deliciados com tudo o que por lá os deixavam ver, desde logo a começar pelo patético "sinaleiro" (que nos dava um jeitaço, agora, no Marquês!). E ai de quem os tentasse então convencer de que, por detrás da sua suposta bonomia africana, Savimbi era um promotor de atrocidades, hoje bem documentadas e incontroversas. 

À época, os editoriais do "Jornal de Angola" contra Portugal sucediam-se. A embaixada portuguesa em Luanda optara por não reagir, deixando que essa catarse mediática não fosse estimulada por um contraditório que se via como de escassa eficácia. Por isso, líamos matinalmente essas colunas agressivas e, através delas, apenas íamos medindo a febre de acrimónia contra Lisboa, esperando que o tempo a atenuasse, como fe facto acabou por suceder. 

Um dia, vi publicado um texto de rara violência, já não sei bem a propósito de quê. Nele se referia que Portugal, crismado como o "miserável país das caravelas decrépitas" (nunca esqueci esta flor de retórica lusofóbica), era um colonizador frustrado, porque, contrariamente a outros, não deixara em Angola nenhuma herança positiva.

Sem consultar o meu embaixador, tomei a iniciativa de telefonar ao autor do texto, uma pessoa que eu tinha tido ocasião de conhecer pessoalmente, através de amigos angolanos. Era um jornalista e escritor de bastante mérito, nascido em Portugal, creio que em Loures, que vulgarmente usava um pseudónimo que substituía o seu nome português, como então era vulgar em Angola. Disse-lhe que tinha lido o seu texto com interesse e que queria "felicitá-lo" pelo mesmo.

Do lado de lá da linha, a resposta foi a esperada: "Você está a gozar comigo?". Respondi-lhe que não estava e que o texto, cuja liberdade de apreciação sobre Portugal eu não contestava, comportava, contudo, uma evidente contradição, de que ele talvez não se tivesse dado conta, mas que era a única razão do meu telefonema. O meu interlocutor estava cada vez mais perplexo, até pela deliberada cordialidade que atravessava o meu discurso.

Pelo que decidi explicar: "O seu texto, independentemente do conteúdo agressivo contra o meu país - o mesmo, aliás, onde você nasceu -, está extremamente bem escrito e exprime, de forma brilhante, uma leitura crítica face ao comportamento do meu governo. Embora eu não concorde, rigorosamente em nada, com aquilo que escreveu, quero dizer-lhe que entendo que você está no pleníssimo direito de exprimir o que pensa, embora eu imagine o que "por aí iria" se, lá em Lisboa, o "Diário de Notícias", que nem sequer é um jornal oficioso como o seu, se abalançasse a escrever um coisa de natureza similar sobre o governo angolano. Mas não é essa, hoje, a minha questão. O que eu queria sublinhar é que o texto está redigido num português exemplar, numa escrita de grande elegância estilística. Ora você diz, nesse mesmo texto, que nada ficou em Angola de herança lusitana! E essa língua em que você escreve tão bem? É uma herança de quem? Ou será que você é capaz de escrever um editorial em quimbundo, em umbundo ou em chocué, que qualquer angolano que saiba ler possa perceber? E em que língua se publica o "Jornal de Angola"? Que outra língua une hoje Angola? Essa é ou não é uma herança do tempo colonial?".

Já não me recordo da resposta do meu interlocutor, que terá sido, com toda a certeza, inteligente e informada, porque era alguém com uma grande qualidade intelectual e política. Uma figura infelizmente já desaparecida.

Esses tensos tempos na relação entre Luanda e Lisboa já passaram, há muito. O bom senso, o fim dos traumas da era das armas, a afetividade natural entre as gentes dos dois lados, a diluição da crispação que a queda dos muros ideológicos proporcionou e, acima de tudo, a emergência de importantes interesses mútuos, tudo isso conduziu ambos os países a patamares novos de entendimento, assentes num diálogo político construtivo e maduro. Portugal está hoje em Angola com gentes e capitais, tal como Angola participa, com toda a naturalidade, na vida económica portuguesa. Ainda bem que as coisas assim são. Tudo isso tem como corolário inescapável a necessidade do respeito mútuo pelas respetivas instituições nacionais e, em ambos os lados, pela plena liberdade de expressão e de crítica. A mesma liberdade que, a mim, me permite de citar hoje aqui esta historieta, que dedico aos bons amigos que deixei por Angola, alguns que até fazem parte do seu atual governo e que recordo com esta minha "demasiada memória". 

sábado, novembro 17, 2012

As novas fronteiras

Na passada sexta-feira, almocei com o "maire" de Hendaye, que foi o amável anfitrião do encontro de que já aqui falei, dedicado à imigração portuguesa em França. Referi-lhe a minha surpresa pelo facto de, nos últimos anos, de cada vez que visitava a sua região, notar uma presença crescente dos sinais da cultura basca. Perguntei-lhe quando é que essa tendência se impusera, porque conhecia aquela zona desde os anos 60 do século passado e nunca me tinha apercebido de algo que fosse nesse sentido.

A sua resposta foi esclarecedora e trouxe-me novos dados. Disse-me que essa evolução datava apenas dos anos 90, mas que tivera uma adesão e um crescimento tal que, por exemplo - e esta foi, confesso, a minha grande surpresa - a primeira língua em que são educadas as crianças da região é hoje a língua basca e, só depois, a língua francesa. Televisão, rádios, editoras e jornais em basco estão hoje em franca expansão, havendo uma crescente coordenação transfronteiriça entre municípios, franceses e espanhóis, com rotatividade de chefia, que abrange cada vez mais áreas de uma administração comum. 

Se olharmos para o que se passa na Catalunha, se pensarmos no referendo que irá ter lugar na Escócia, associando tudo isto a casos como esta área transnacional de cultura basca - e outros exemplos existem por essa Europa fora -, não estaremos a caminho de um novo paradigma de poderes na Europa? E como vai ser possível compatibilizar as representações dos Estados com a emergência, precisamente porque têm muito diferente natureza e capacidade de afirmação, de novos e criativos poderes regionais europeus? Qual irá ser a evolução e a importância, face às instituições existentes, do Comité das Regiões, no seio da União Europeia do futuro?

Gaza na Europa

A União Europeia, a espaços, "faz peito" e, da sua trincheira verbal bruxelense, lança avisos graves ao mundo, aquando de conflitos que sabe que são mais ou menos remotos para os interesses e compromissos relevantes dos seus Estados membros.

Nos outros casos, como hoje ocorre a propósito dos acontecimentos em Gaza, quando têm a antecipada certeza de que cada um joga para o seu lado, os esforçados redatores do Justus Lipsius, ancorados na sólida cultura de ambiguidade estilística que, com mérito indiscutível, lhes vai construindo a profissão, elaboram habilidosos textos que disfarçam as divergências, feitos de palavras como "inquietação", "contenção", "proteção das populações civis", "apelo ao diálogo" e outras platitudes que mais não são do que um retrato da eterna impotência europeia no mercado político do Médio Oriente.

Há pouco mais de um ano, por ocasião da votação da adesão da Palestina à UNESCO, cinco Estados membros da União Europeia (onde se destaca a Alemanha) opuseram-se a essa entrada. Onze países da União (entre os quais a França e a Espanha) foram a favor dessa adesão. Na ocasião, nove outros (com relevo para o Reino Unido, a Itália e a Polónia, com Portugal no grupo) decidiram abster-se.

Perante este significativo panorama, alguém, de bom-senso, pode levar a sério uma qualquer tomada de posição em nome da União Europeia sobre o que hoje se passa em Gaza, a qual, nem pelo facto de poder ser coletiva, deixa tudo a desejar em termos do que significa poder ter uma natureza comum? Será que passa pela cabeça de alguém, em Bruxelas, que esse texto será lido em Tel-Aviv?   

sexta-feira, novembro 16, 2012

Hendaye

Meio século de imigração portuguesa em França esteve ontem em análise num colóquio realizado em Hendaye, graças ao entusiasmo dessa "força da natureza" que é Manuel Dias - a principal figura que, aqui em França, tem pugnado pela preservação da memória de Aristides de Sousa Mendes. A cidade de Hendaye foi, e bem, o local escolhido para esta evocação, porque foi a porta da França para as imensas vagas de trabalhadores portugueses desses primeiros tempos.

O dia foi preenchido com diversos painéis temáticos, todos com uma qualidade de exposição muito rara. Historiadores, jornalistas, sociólogos e outros especialistas trouxeram dados e interpretações com imenso interesse, que espero seja possível coligir rapidamente em livro. Numa ou outra intervenção, como não podia deixar de ser, aflorou a memória emocionada de quantos fizeram parte dessa imensa aventura. Alguém lembrou, a certa altura, a história de um português que, como única referência identificativa do local para onde pretendia ir, exibia uma folha de papel onde tinha escrito "São Pinhi" - transcrição fonética que identificava o "bidonville" de Champigny, nos arredores de Paris, onde eventualmente o esperava algum conterrâneo.

Uma bela exposição do fotógrafo Gabriel Martinez, sob o título "Sala de espera", mostrou-nos, paralelamente, muitas imagens do ambiente vivido nesses anos 60, na estação ferroviária de Hendaye, um local por onde passou muita da esperança e da tragédia de um Portugal obrigado a emigrar.

Sei que muitos cidadãos de origem portuguesa, hoje residentes em França, convivem menos bem com a reiteração sistemática das evocações desses tempos a-preto-e-branco, que já não acham muita "graça" a este tipo de exposições, porque temem que, eventualmente, isso possa prolongar no imaginário francês um certo esteriótipo dos portugueses, desses tempos menos áureos da dificuldade e de miséria. Mas também devo compreender o sentimento de quantos teimam em preservar e mostrar esses documentos, testemunhos desses olhares rurais lusitanos, perdidos na incerteza, à chegada a uma terra estranha, uma geração a quem o país negava o futuro.

Amanhã, que cores ilustrarão os tempos de hoje?

Em tempo: a este propósito, a Lusa reproduz hoje algo que eu disse sobre este tema.

Ainda a greve

No dia da greve, acompanhado apenas pelo conjunto de diplomatas que comigo trabalham, dei comigo a pensar que, em toda a minha vida profissional - e serão 41 anos completos no próximo domingo - nunca fiz um dia de greve. E, não obstante, fui, durante algum tempo, dirigente sindical no Ministério dos negócios estrangeiros.

Confesso que frequentemente tive vontade de faltar ao trabalho, para acompanhar justos protestos coletivos a que, intimamente, muitas vezes me associei. Mas sempre pensei a vida de um diplomata como um "full-time job", um serviço público que funciona como uma espécie de "urgência" hospitalar, que não pode fechar, 24 horas por dia, 365 dias por ano.

Nos diversos locais do mundo onde trabalhei, não recordo alguma vez ter hesitado em atender uma situação de emergência, a qualquer hora do dia ou da noite, nunca recusei ir trabalhar a um sábado, domingo ou feriado, nunca me passou pela cabeça pedir horas extraordinárias ou compensações por isso. 

Serei um caso único? Longe disso! Conheço muitos colegas - melhor: trabalho aqui em Paris, hoje em dia, com alguns, bem mais jovens do que eu - que têm exatamente esta mesma perspetiva do serviço público, esse orgulho raro de servirem um "patrão" que consideram diferente dos outros. 

Só espero que, no futuro, esses colegas não venham a ter razões para virem a pensar de forma diferente.

quinta-feira, novembro 15, 2012

Vária

1. Ontem, olhava distraído para a televisão, "zappando" entre canais. Como, por deliberada opção pessoal, não tenho acesso à nossa televisão (excepto as inenarráveis RTP internacional e SIC internacional, que vêm com o cabo francês), fixei-me num determinado canal, ao ouvir um filme falado em português. A representação era patética, teatral no mau sentido, com uma implausibilidade de cenas que raiava o absurdo, não obstante uma excelente imagem e alguns planos criativos. Fiquei a ver até ao fim, meia hora depois. Vim a constatar que era o "Singularidades de uma rapariga loira", que julgo ser uma adaptação do conto homónimo de Eça de Queiroz, que, recordo, tinha referências bem simpáticas às mulheres de Vila Real (não faço ideia se o filme as recupera). O realizador do filme era, como vim a constatar, Manoel de Oliveira. Embora talvez seja politicamente incorreto um embaixador de Portugal estar a escrever isto, face a um autor nacional tão celebrado por todo o mundo como é Oliveira, a honestidade leva-me a ter de confessar que achei o (que vi do) filme bem medíocre. Mas o defeito deve ser meu.

2. Desde há meses que, nas conversas que tenho com colegas e interlocutores franceses, tenho vindo a procurar sublinhar o caráter pacífico das manifestações que, em Portugal, têm tido lugar, por virtude da crise económica, subliminarmente tentando passar o contraste com o que vai ocorrendo noutras capitais, onde algumas reações assumiram, desde há muito, expressões bem mais violentas. A minha "inocência" acabou ontem, com as televisões europeias - e, no que me importa, as francesas - a mostrarem os desagradáveis incidentes em frente à Assembleia da República, com cargas de polícia, após as persistentes agressões e as inaceitáveis provocações de que os agentes foram objeto. Ou muito me engano ou, depois desta pouco salutar evidência de que, entre nós, os brandos costumes já foram arquivados, devo voltar a ser chamado a depor em algumas televisões francesas, agora que, de novo, aqui se "acordou" para o que se passa em Portugal. Ficaria muito satisfeito se assim não acontecesse, como se imaginará.

3. Luis Castro Mendes e Paulo Castilho, figuras prestigiadas da nossa diplomacia, recebem agora (e mais uma vez) prémios literários por obras suas, respetivamente nas áreas da poesia e do romance. Com Marcello Mathias, aqueles dois colegas fazem parte da "troika" de glórias da escrita de que muito nos orgulhamos, no seio da diplomacia portuguesa. Alguém me pode lembrar alguma outra carreira do serviço público português de onde, nos tempos que correm, tenham saído escritores premiados? Eu não conheço...     

quarta-feira, novembro 14, 2012

O chato

- Ó diabo! Vem ali o Castanheira!

O comentário feito pelo chefe de repartição, dirigido ao diretor-geral, quando ambos saíam para o almoço, alertava para um perfil rotundo, algo bamboleante, que, ao fundo, se aprestava para circundar o jardim central do pátio das Necessidades.

O Castanheira era um daqueles funcionários, entre o caricato e o patético, que o ministério, para não ter de enfrentar a sua óbvia inadequação para ocupar lugares de responsabilidade na sede, optava por expatriar em serviço, esquecendo-o em consulados longínquos, na ilusão de que isso os tornaria inóquos para a imagem de uma carreira que, por incompetência e irresponsabilidade, os havia deixado entrar no quadro e, por cobardia e descuidada gestão de recursos humanos, não era capaz de isolar numa prateleira interna, para evitar piores males.

Os "Castanheiras" existem em todos os tempos do MNE, ganham lugares no quadro externo num qualquer "movimento diplomático" que deles acaba por ter piedade ("coitado! Tem tantos filhos..." ou "o homem já anda por aí há tanto tempo...") e, não raramente, fazem passar às comunidades portuguesas no exterior algumas vergonhas, além de transmitirem uma medíocre imagem do país que lhes caberia saber representar. Não são muitos, felizmente, mas, por muitos poucos se sejam, são em número demasiado para quem, como é o meu caso, nunca teve a menor complacência para contemporizar com tais situações. Quem conhece bem a carreira sabe do que e de quem estou a falar.

Vindo de férias a Lisboa, do lugar distante para onde o "conselho" o tinha mandado já há anos, o Castanheira avançava então, nesse dia de verão do final dos anos 70, com um fato claro de mau corte, que denunciava os tristes trópicos por onde agora pairava, em direção às duas figuras da hierarquia que saíam do palácio. Era um homem conhecido pelo verbo balofo, pelo caráter prolixo dos seus comentários, enfim, para sintetizar, por ser um inenarrável chato, uma lapa oral, daqueles que nos agarram a manga do casaco e colocam a mão sapuda no ombro, que aproximam a cara para reforçar a cumplicidade, fazendo-nos partilhar a riqueza odorífera do seu bafo.

Ora o diretor-geral, um embaixador da velha escola, era um exemplo conhecido de quantos, na sua consabida snobeira e pesporrência, não tinham a menor paciência para conviver com esse estilo de figuras, algo untuosas e fátuas. Tinha apenas uma vaguíssima ideia do tal Castanheira, fruto de anedotas que dele ouvira, na tradição oral de escárnio em que o MNE é useiro, vezeiro e cruel. Nunca tinha falado com ele e, francamente, não era agora que isso iria acontecer, como desde logo avisou o amigo com quem ia almoçar. Ora este, por infeliz coincidência, tinha entrado para a carreira no concurso do Castanheira, o que o não dispensava de uma saudação mínima ao colega expatriado e que há muito não via.

- É pá! Vê lá se nos libertas logo do homem! Dizem-me que é um cretino de altíssimo coturno... - sussurrou o embaixador, com o Castanheira já quase à distância de um cumprimento.

O encontro deu-se à saída do pórtico de acesso ao palácio, sob o olhar atento, venerador e obrigado do Matos, o digno porteiro que, à época, por aí oficiava, no lugar onde, nos dias de hoje, pairam umas fardas anónimas da Securitas, essa espécie de genérico funcional, em tempos de seca orçamental.

Ao abraço entre o Castanheira e o chefe de repartição, seguiu-se o inevitável:

- ... não sei se se conhecem: o Castanheira, que anda agora pela América Latina, e o senhor embaixador...

O Castanheira nem deixou o amigo terminar a frase:

- O senhor embaixador?! Essa agora! Quem o não conhece?! Tenho imenso prazer em encontrar vossa excelência. O senhor embaixador é uma figura referencial da carreira, é - permita-me que lho diga!- uma das personalidades que mais honra a nossa diplomacia. Tenho por vossa excelência uma incontida admiração e andava, há anos, por ter o ensejo de lho expressar em pessoa. É para mim um imenso privilégio poder conhecê-lo e cumprimentá-lo. E diria mesmo, agradecer-lhe o que tem feito por nós, pela nossa carreira, pelo prestígio da nossa profissão. Vossa excelência é um exemplo que todos procuramos seguir.

E o Castanheira, sempre ditirâmbico, continuou numa elegia gongórica sobre a figura do diretor-geral, lembrando os seus postos anteriores e os alegados feitos profissionais relevantes que bem ilustravam esse percurso. O amigo chefe de repartição só a custo conseguiu pôr cobro, ao final de uns minutos, a essa inesgotável verborreia.

Finalmente, lá se descolaram do Castanheira, que anunciou que ia ver umas "senhoras" ao "quarto andar", para tratar do telhado do consulado. "O senhor embaixador sabe, melhor do que ninguém, o que são essas coisas", deixou no ar, profissionalmente cúmplice, afastando-se, não sem uma respeitosa vénia ao superior hierárquico.

O chefe de repartição, aliviado, olhou para o diretor-geral e comentou: 

- Ó pá! Desculpa lá teres tido que aturar este tipo. É um chato, nunca mais nos desamparava a loja...

- Essa agora! Até te digo mais: fiquei bem impressionado com o rapaz! Este Castanheira pareceu-me simpático e articulado. Mudei a ideia que me tinham criado dele. Como é que ele está na lista de antiguidade? Não lhe podemos dar uma mão, na reunião do "conselho" para as promoções, para a semana?

(esta historieta foi-me contada há muitos anos, de boa fonte. Será que hoje as coisas seriam muito diferentes?)

Luís Amado

Foi ontem lançado o livro "Conversas sobre a crise", um diálogo entre Luis Amado e Teresa de Sousa. Na minha passagem pela livraria do aeroporto de Pedras Rubras ainda procurei o livro, mas era cedo demais para o adquirir.

Fui colega de governo de Luis Amado e, mais tarde, tive-o como meu ministro durante alguns anos. É, além disso, desde que nos conhecemos, um amigo pessoal. Devo dizer que Luis Amado foi, para mim, uma das muito positivas surpresas como pensador das coisas internacionais. Constatei que foi capaz de estruturar, em especial ao longo destes anos de crise, um pensamento maduro, realista e frequentemente original, não apenas sobre o papel de Portugal no mundo, mas, igualmente, quanto às resposta a dar às grandes questões que afetam os equilíbrios globais. Fá-lo sempre com elegância, sentido da medida e com um esforço de aproximação à verdade possível que lhe conferiram um lugar internacional de imenso respeito - como constato, com frequência, nos contactos que tenho com interlocutores estrangeiros, onde conta imensos admiradores.

O seu diálogo com Teresa de Sousa promete, assim, ser um trabalho com imenso interesse. Trata-se da mais bem preparada jornalista portuguesa em temáticas internacionais, sendo, além do mais, uma pessoa de fundadas convicções europeístas. E de quem tenho também o privilégio de ser amigo.

Mas não é a amizade pelos autores que me leva a sublinhar a importância de um livro que ainda não li. É a certeza antecipada de que todos teremos muito a ganhar com a sua consulta. 

Ida pela volta

1. Decididamente, o "Le Monde" já não é o que era. O meu parceiro do lado, no avião em que anteontem à noite seguia para o Porto, deve ter achado que eu estava a ler alguma anedota, pela súbita gargalhada que dei, a certo passo do folhear do jornal: num artigo sobre Portugal, falava-se da "ditadura do general Salazar". Se o José Rebelo, que durante anos foi o correspondente do jornal em Lisboa, leu esta referência, deve ter ficado chocado e talvez mais triste que divertido.

2. O hotel em que fiquei em Braga faz parte daqueles que necessitam de um MBA para se perceber como se acendem as luzes, para descortinar o modo de regular a água nas torneiras, o misterioso funcionamento das cortinas e o segredo para se evitar acordar a meio da noite com uma louca e inopinada programação do aquecimento. No resto, o hotel era excelente, muito confortável e com gente amável. Mas por que diabo os arquitetos de interiores não se dedicam a desenhar coisas simples, práticas e imediatamente percetíveis, que não nos obriguem a perder tempo?

3. Antes de adormecer, observei a Senhora Merkel em doses maciças, por tudo quanto era noticiário. Sem capacidade mínima para gerarem substância (confundindo "renegociação" com "reestruturação", desta vez dispensando a "refundação"), todos os canais colocaram as suas "Sónias Cristinas" e correspondentes colegas masculinos (é minha impressão ou há caras novas todos os dias? Ainda dizem que há desemprego no jornalismo...), de cornetos na mão, em cenários tendo em fundo polícias e carros a passar, a encher o tempo com platitudes, na cata obsessiva dos "fait-divers" possíveis, desde os cortes de trânsito ao custo e "exageros" da segurança. Se tivesse havido algum incidente, podemos estar seguros: seriam as "falhas" da segurança responsabilizadas. E o "jeito" que teria dado às "reportagens" um acidentezinho com uma das viaturas do cortejo, logo acusadas de velocidade excessiva...

4. A Universidade do Minho, em Braga, onde ontem falei, é uma das grandes realizações académicas do Portugal contemporâneo. Há muito que tenho uma grande admiração pelo que está a ser feito naquele espaço académico, com gente muito qualificada e uma motivação muito forte, bastante empenhada em "dar a volta" a uma região que foi altamente abalada pelas disfunções sofridas pela política industrial portuguesa, com fortes impactos sociais, nas últimas décadas. Já havia sentido isso na sua relação, muito eficaz, com Guimarães - capital europeia da cultura. Onde voltei a receber dados nesse sentido.

5. Tenho a impressão que, em Portugal, não se valoriza devidamente o magnífico trabalho que tem vindo a ser feito pelo nosso Instituto de Defesa Nacional. Ontem, como já me aconteceu várias vezes no passado, falei sobre questões europeias e internacionais para algumas dezenas dos respetivos "auditores", saídos da sociedade civil para estes exercícios de aculturação sobre temáticas de interesse nacional. Há escassos meses, tive o ensejo de trabalhar, no quadro da comissão que elaborou o novo Conceito Estratégico de Defesa, precisamente com base num excelente documento produzido pelo IDN. Devo dizer que o debate em que ontem participei, durante mais de duas horas, foi dos mais ricos em que tenho estado envolvido, desde há vários meses - e ando muito por esses meios.

6. De há uns anos para cá, cada vez tenho mais dificuldade de achar graça à comida que é servida nos aviões. Mesmo não a achando má de todo, muitas vezes evito-a, em especial nos percursos curtos. No regresso a Paris, ao fim da noite de ontem, "saltei" a refeição e só acordei com a aterragem em Orly. "Nem um copo de água bebeu!", surpreendeu-se a hospedeira de bordo, que teve a gentileza e o bom-senso de não me acordar, com aquele tabuleiro cheio de coisas previsíveis, onde não falha o famigerado triângulo de "Président", um medíocre "camembert" que anda pelo menu da TAP quase desde a era dos "Caravelle". No início da viagem, nem jornais portugueses pedi, porque já presumia o que iriam dizer, tanto mais que, com a visita da chanceler alemã, o ansiado regresso de Vale de Azevedo acabou por perder o espaço mediático que legitimamente seria o seu. Há dias aziagos para certas águias fugidias, que finalmente regressam à gloriosa luz da sua pátria.

terça-feira, novembro 13, 2012

Francisco Louçã

Francisco Louçã deixou a liderança do Bloco de Esquerda. Ao longo de cerca de 13 anos, ele foi a cara do Bloco, formação que ganhou muito com o seu brilho intelectual e que, igualmente, acabou por ter uma avaliação pública, nomeadamente em termos de sufrágios, que ficou muito tributária do modo como o país o foi apreciando como figura política.

Acompanho, desde há muito, o percurso político de Francisco Louçã, pessoa por quem tenho estima e consideração pessoal. Com ele troquei por diversas vezes ideias sobre a Europa, cuja evolução, há vários anos, a ambos nos preocupa. Já na política doméstica saudavelmente divergimos no desenho das soluções de futuro. Isso não me impede, contudo, de considerar que, em termos objetivos, com a sua saída da cena parlamentar, a nossa Assembleia da República perdeu um dos mais bem preparados tribunos.

segunda-feira, novembro 12, 2012

Europa

Leio que hoje, dia 13, pelas 15 horas, vou falar sobre "Portugal: soluções para a nova Europa", no salão nobre da reitoria da universidade do Minho, em Braga, abrindo o ciclo de conferências "O futuro da Europa", organizado pelo Instituto de Defesa Nacional e pela universidade do Minho.

Se foi anunciado, é porque deve ser verdade...

domingo, novembro 11, 2012

Nós e a senhora Merkel

A curta visita que a chanceler alemã, Angela Merkel, hoje fará a Portugal desencadeou um conjunto de reações, a maioria das quais corporizam na chefe do governo de Berlim os malefícios da cura de austeridade que Portugal está a atravessar. Pode entender-se a genuinidade da atitude de quantos são levados a interpretar as dificuldades da sua vida atual como o resultado direto das políticas seguidas pela Alemanha no plano europeu, pelo que até se compreende que, por exemplo, haja quem considere menos adequado o "timing" desta visita. Mas acho que convém haver alguma serenidade no juízo português sobre a dirigente alemã que hoje passa por Lisboa. 

A senhora Angela Merkel é lider político de um grande país democrático, responsabilizada nessas funções por um eleitorado que hoje alimenta um maioritário sentimento de desconfiança sobre o comportamento de certos países do Sul da Europa, onde se inclui Portugal, que considera que seguiram políticas laxistas que tiveram como resultado a situação que hoje atravessam. No entendimento de que os processos de rápido ajustamento macroeconómico são a solução certa para superar o atual estado de coisas, a liderança alemã limita-se a reproduzir o sentido da vontade desse seu eleitorado, o qual talvez não tenha sido motivado para valorizar, na devida dimensão, os esforços que o nosso país tem feito, mostrando-se adversa à adoção de outras políticas que eventualmente poderiam tornar o processo português menos gravoso. Com toda a certeza, falta quem explique melhor aos alemães que o seu país é o principal beneficiário do mercado interno europeu e que, num passado não muito longínquo, toda a Europa comunitária foi solidária, e pagou por isso, com a concretização do seu projeto de reunificação.

É perfeitamente legítimo que, tal como acontece noutros países, exista em Portugal, por parte dos muitos perdedores dos dias que passam, um sentimento de revolta contra as políticas de austeridade que são obrigados a sofrer. Muitos entendem, muito simplesmente, que elas decorrem de orientações que a Alemanha impõe à Europa do euro. Mas talvez devamos parar para pensar um pouco sobre qual o verdadeiro papel da Alemanha em tudo isto.

O pacote de austeridade que hoje é aplicado a Portugal é produto de uma receita económico-financeira, que comporta algumas dolorosas reformas do Estado, que foi desenhada por três instituições internacionais - uma das quais, aliás, é presidida por um português (Comissão Europeia), outra tem outro português como vice-presidente (BCE) e a terceira tinha um académico lusitano como seu diretor para a Europa (FMI). Foram essas instituições quem negociou, com um governo português já então fragilizado pela perda de confiança política interna que o tinha afastado do poder, um programa de "assistência" que, à época, acabou por ser politicamente ratificado por outras forças partidárias portuguesas. O voto maioritário de muitos de quantos hoje entre nós protestam veio, aliás, a atribuir a essas outras forças políticas, que haviam sido determinantes no afastamento do anterior executivo, o encargo de passar a governar o país, nele incluída a responsabilidade de aplicar o programa acordado e, nessa tarefa, de decidir as escolhas específicas a fazer, dentre as medidas concretas que apontem no sentido das metas genéricas da condicionalidade que são determinadas pelo contrato subscrito. 

Repito: pode acusar-se a Alemanha, cujo peso se sabe ser determinante no processo decisório europeu, de não ser sensível à necessidade de se associar a algumas medidas tendentes a aligeirar os efeitos desta cura financeira, quer em Portugal quer em outros Estados que atravessam circunstâncias similares. Mas faz parte do dever de pedagogia, em especial de quem tem obrigação de olhar para além da "espuma dos dias", explicar e fazer entender aos portugueses que a senhora Angela Merkel apenas exprime e objetiva, na sua prática política, aquilo que entende serem os interesses que a Alemanha, certa ou errada, entende dever defender. É que convém não esquecer que os governos dos países, de todos os países, são eleitos para promoverem os seus interesses, não os dos outros. E também lembrar que é para isso que, para além da Alemanha, também foram eleitos governos nos outros países. 

Grande guerra

Ontem, na "Mairie" de Lillers, no norte da França, tive o gosto de inaugurar uma placa que assinala a memória dos muitos portugueses que perderam a vida na 1ª guerra mundial. Fi-lo a convite do "maire" da localidade e de Félicia Assunção, a orgulhosa filha de um combatente português que, depois do conflito, por lá ficou e cuja larga família hoje cultiva, com grande empenhamento, essa memória.

Hoje, na fria manhã de Paris, assisti à cerimónia em que o presidente François Hollande prestou homenagem aos mortos franceses em combate, nesta que é a data que celebra o armistício que pôs termo a primeira guerra mundial. 

Dentro de pouco mais de um ano, iniciar-se-ão, em vários países, as celebrações da guerra de 1914-1918. Só posso esperar que, em Portugal, haja vontade e capacidade de organização para participar com dignidade, ao lado dos nossos aliados de então, no sublinhar dessa nossa valorosa participação para a liberdade do continente. Por nossa exclusiva culpa, Portugal fica muitas vezes fora do "retrato" dos vencedores do primeiro grande conflito mundial. É necessário aproveitar as comemorações que aí vêm para retificar essa persistente falha e a França é o lugar certo para isso se fazer.

sexta-feira, novembro 09, 2012

Novembro

Saiu há dias. É o romance de uma geração política que perdeu o império em que acreditava, que pretendia que se mantivesse "do Minho a Timor" (então já sem "escala" na Índia), que tentou que o mundo ficasse à espera dum Portugal ditatorial parado no tempo, teimosa e orgulhosamente só com a sua falsa e forçada verdade - como a história do alentejano que achava que eram todos os outros que iam em sentido contrário na autoestrada. 

Em "Novembro", Jaime Nogueira Pinto relata a luta inglória dos "nossos" nacionalistas revolucionários, os fascistas a que tínhamos direito, ironicamente aliados e a usufruirem do capitalismo que ideologicamente antes abominavam. Em 1974, viram surgir abril como uma ameaça à sobrevivência do país com que haviam sonhado e que queriam impor aos todos quantos pensavam de forma diferente - sem nunca considerarem que outros, por esse mundo onde se fala português, também tinham direito a afirmarem as suas próprias pátrias e o seu destino.

Conheci o Jaime Nogueira Pinto em 1973, ao lado de quem iniciei o meu serviço militar, servindo ambos na operosa especialidade de "Ação Psicológica". Tal como ele estava a par do que eu pensava, também eu sabia das suas ideias, até porque o lera com atenção no "Agora" e na "Política" - até hoje, tenho o imparável "vício" de acompanhar o pensamento de quem tem ideias diferentes das minhas. Por isso, foi agora muito curioso ler este retrato de um país pintado a preto-e-branco, entre 1973 e 1975, um Portugal em tudo bem diferente do meu.

Por ele ficamos a conhecer, entre bem desenhados amores e desencontros - de Lisboa a Luanda, de Madrid a Londres, da África do Sul aos Estados Unidos - o trauma e as ressacas de abril, a desilusão com Spínola, a "golpada" frustrada do 28 de setembro, a "esparrela" em que caíram no 11 de março e, depois, no desespero, a conspiração violenta urdida em terras de Espanha. O livro levou-me à outra trincheira, na barricada ideológica que então me separava do Jaime. Por ele fiquei a saber como pensavam e se organizavam, muitos deles circulando entre bons hotéis e belos restaurantes madrilenos, quantos andaram pelo ELP e pelo MDLP, aliados a alguma igreja que os benzia, a uma certa banca que os financiava e a muito "lumpen" que os servia (que é pena não ser posto no livro com a evidência que "merece"), que se dedicavam a pôr bombas e a caçar "comunistas" - conceito abrangente que o radicalismo direitista alargava ao absurdo.

Esta é uma inédita história do "PREC" vista do outro lado, uma revolta revanchista titulada por quantos, se acaso tivessem ganho na noite de 25 de novembro de 1975 (obrigado, sempre, Ernesto de Melo Antunes), talvez tivessem usado as chaves do Campo Pequeno. Que a esquerda, mesmo quando gabarola e no poder, nunca usou, registe-se.

Em minha opinião, este romance, 640 páginas que se leem de um fôlego e que francamente recomendo, acaba por ser um não deliberado elogio à tolerância de quantos souberam conduzir o processo aberto em abril de 1974, e terminado em novembro de 1975, até desembocar pelos caminhos da democracia que hoje é matriz da nossa vida cívica. Embora, como seria expectável, saia algo mal de um livro onde praticamente não é mencionado, Francisco da Costa Gomes acaba, a meu ver, por ser o herói escondido desta obra. 

Estou mais do que certo de que o Jaime estará muito longe de concordar comigo, em toda a avaliação do seu livro que acabo de fazer, como terei oportunidade de testar na conversa que teremos, aqui em Paris, no jantar de hoje. É que, desde há quadro décadas, nós habituámo-nos a celebrar, sempre com muito humor e de há muito com uma leitura irónica do nosso extremado e contrastante radicalismo de então, uma amizade que o facto de termos estado em polos bem opostos da trincheira política nunca beliscou, talvez porque ambos, cada um à sua maneira, pensou sempre no interesse de Portugal. Para a conversa e a alegria da noite ficarem completas, faltar-nos-á, contudo, a Zezinha.  

Empresas

Muitas vezes, Portugal, visto de fora, anima-nos bastante.

Ontem, tive essa sensação ao falar com as 57 PME's portuguesas, presentes no MIDEST, uma feira nos arredores de Paris onde estão representados setores industriais portugueses, maioritariamente na área da metalomecânica.

À entrada, o diretor da feira referia-me o facto de, de ano para ano, haver cada vez mais empresas nacionais neste importante certame de subcontratação. Nas conversas com os empresários, não obstante algumas notas negativas quanto às dificuldades no acesso ao crédito, nos custos energéticos e dos transportes, observei um ambiente de generalizado otimismo e de anúncio de bons negócios. Não encontrei uma única em que a exportação não representasse mais de 50% da faturação e, em grande parte delas, esse valor oscilava entre 75 e 95%.

Há um novo Portugal no nosso mundo empresarial.

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...