segunda-feira, setembro 17, 2012

Da política

Voltámos aos dias obsessivos da política. Não se consegue falar de outra coisa. Telefonar para Portugal tem como consequência, cinco segundos depois de iniciada a chamada, ouvir comentários sobre a situação que se vive no país. Encontrar alguém que de lá chega é sinónimo garantido de, inevitavelmente, iniciar um diálogo sobre a crise e as crises que nela se estão a gerar. Os nossos funcionários, crentes em que "bebemos do fino", perguntam-nos o que vai acontecer. Os estrangeiros que cruzamos, dependendo da sua sensibilidade, colocam-nos questões brutais ou optam por um registo piedoso. 

Se os atores da peça andam eles próprios à procura de um argumento, não serão os espetadores quem pode adivinhar o sentido do que a história vai acabar por escrever. Nestes tempos, se os nossos medos tornarem isso possível, é muito importante que tentemos manter a cabeça fria e perceber que, se acaso a perdermos, isso em nada nos ajudará. Nos dias que correm, todos temos legítimas dúvidas, todos alimentamos angústias ainda sem respostas. No que me toca, tenho uma firme vontade e uma convicção: quero ver tudo resolvido na mais estrita observância das regras da democracia, que deu muito trabalho a construir, e tenho por seguro que, se isto correr mal, correrá mal para todos e não só para alguns.

domingo, setembro 16, 2012

Encontros

São duas curtas cenas que se ligam.

A primeira passou-se em Arusha, na Tanzânia, durante uma reunião da então SADCC, em 1988. A delegação portuguesa não tinha conseguido arranjar quartos individuais para toda a gente, pelo que eu partilhava um deles com o meu colega João Salgueiro. A certa altura da madrugada, o João acordou-me, chamando a atenção para uma gritaria no corredor do hotel. Era a voz de um homem que insultava uma mulher, a qual lhe respondia num nível idêntico de linguagem. A curiosidade é que a "conversa" era... em português! Abri a porta do quarto e vi passar uma mulher negra, lindíssima, completamente nua, com umas peças de roupa na mão, saída do presumível dissídio num quarto vizinho. Perguntei-lhe: "Precisa de ajuda?" Ela olhou-me com uma cara angustiada, respondeu com um "não" quase impercetível e desapareceu, a correr, na esquina do corredor. Era, com toda a certeza, da delegação de um país de expressão portuguesa. No dia seguinte, porém, não a descortinei em nenhuma dessas delegações.

Decorreram alguns meses. Uma outra deslocação, desta vez para uma reunião da Convenção de Lomé, agora na ilha Maurícia. Num corredor de acesso à sala da sessão, encontro jubiloso com a delegação de um país de língua portuguesa, com troca amigável de abraços entre os dois membros do governo e cumprimentos entre os restantes delegados. Numa dessas saudações, deparo com o sorriso tímido de uma delegada, que me disse, baixo: "Olá, como vai?". A cena foi rápida, mas o tempo suficiente para eu perceber que se tratava a minha "conhecida" de Arusha. Os nossos colegas lusófonos afastaram-se mas o Duarte de Jusus, que estava ao meu lado e ouvira a saudação da delegada, comentou: "Era muito bonita! Você conhecia-a?". O António Dias e o José Manuel Correia Pinto costumam citar a minha exclamação, que provocou gargalhadas em toda a nossa delegação, mas de que hoje, confesso, me arrependo: "Eu já vi esta mulher nua!". E na passada contei, também um tanto impudentemente, a cena de Arusha. Na altura, o Duarte de Jesus, que é um homem sempre sereno, manifestou apenas a sua surpresa por eu me recordar de uma pessoa que vira só durante alguns segundos. Gostaria de ter tido o génio de lhe responder: "Eu nunca esqueço uma cara..." 

quinta-feira, setembro 13, 2012

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Telemóvel

Ontem à noite, foi anunciado ao mundo o surgimento do iPhone 5. Seguramente por despeito, nessa mesma noite, o meu iPhone 4 desapareceu.

Porque sou um descuidado e não tenho qualquer "backup", fiquei sem os números de todos os meus amigos (além de algumas centenas de fotografias, imensas notas e outras coisas, mas é a vida!), a quem peço, se acaso me lerem por aqui, que, por mail, me recordem os vossos.

Desde já, como diria o nosso saudoso Raul Solnado: "muit'agradecido".

"E agora cheira a setembro"

O João Paulo Guerra lembrou, há pouco, no seu blogue, o clássico "agora cheira a setembro", de José Carlos Ary dos Santos. É verdade, sinto-o bem aqui, nesta noite em Vichy, na França profunda, no meu derradeiro dia de férias.

A chuva ronda, já se hesita em ficar nas esplanadas, agradece-se, pelo entrar da noite, "une petite laine". A bem dizer, confessemos ou não, já chegava de verão, de calor, de sol, de suor, de ar condicionado. Setembro rima bem com o estimulante (e saudável?) regresso ao trabalho, com "paletes" de coisas atrasadas para fazer, com as chamadas telefónicas em dívida, com a necessidade de resposta aos e-mails que foram "caindo" pelas páginas abaixo, com os convites para almoço aos amigos com quem estamos em falta, com muitos jantares "sociais" para retribuir. E com alguns textos para rever, com algumas palestras para preparar. E com algumas atitudes a tomar...

Este é o tempo do conhecido "agora é que é", das clássicas manias de uma qualquer "rentrée", da feitura de intermináveis listas (mais ou menos "moleskinizadas") que padecem sempre de erros de prioridade que as acabam por tornar inúteis, da promessa de não falhar as exposições que por aí vêm (quando, ao final daquela tarde, só vamos pedir sopas e descanso), da vontade de não perder alguns concertos e peças (que nos esqueceremos de reservar), de acabar dezenas de livros que jazem (e jazerão, para a eternidade) na estante, sem deixar de estar atento aos muitos que vão saindo, sempre cada vez mais caros (ou seremos nós que, afinal, ganhamos pouco e cada vez menos?).

No meu caso, este é um mês de setembro muito especial, talvez porque a vida que agora vivo se assemelha também, ela própria, um pouco a um setembro. É um tempo para fechar dossiês, para tentar arrumar assuntos em escassos meses, para fazer os "check-up" antes que nos "gaspem" a ADSE de cena, de planear uma nova vida, a aguentar com as reformas dos tempos da "troika" a que temos dever (já não temos direito..), de fazer (muito bem) as contas para (tentar) sustentar o futuro. E também para preparar, com real vontade e (talvez pateta) otimismo, um 2013 já sem horários e compromissos rígidos, com concertos na Gulbenkian, com idas ao CCB e aos teatros, com passeios e comezainas pelo país, com o jardim para tratar, talvez mesmo com alguma escrita para encadernar. E, principalmente, com amigos para rever, conversar e a quem dizer alto o que penso.  

Relembro sempre o mês de setembro, em toda a minha vida, como um mês peculiar. Eram finais de tarde chuvosos, na adolescência, em Vila Real, quando apressávamos a saída dos bilhares do Excelsior, depois das "explicações". Poucos anos mais tarde, eram as luzes de Cedofeita a acenderem-se, ao sair de um "martini" no Bissau, comigo ainda convencido de que tinha jeito para vir a ser engenheiro eletrotécnico. Eram também as sete e meia da tarde por um Montecarlo quase deserto, no anoitecer lisboeta, à procura do 21 para os Olivais, com o "Lisboa" debaixo do braço. E lembro muito bem os setembros gelados e escuros, mas muito estimulantes, de Oslo ou de Viena, os setembros que o não eram, em Luanda ou em Brasília, ou a insuperável beleza londrina dos fins de tarde, já bem iluminados, em Knightsbridge, as cores e os sons inconfundíveis da 2nd avenue, no regresso a casa, em Nova Iorque.

Os setembros, na minha memória, assemelham-se muito à recorrente ilusão dos janeiros, quando, passadas as festas, sempre arregaçamos psicologicamente as mangas, apenas por alguns dias, na miragem fátua de que basta querermos para podermos recomeçar tudo de novo, porque "hoje é o primeiro dia do resto da tua vida", como cantava o Godinho. Podia ser assim, para toda a gente, se acaso nós não fôssemos exatamente os mesmos que éramos na véspera, quaisquer que sejam as datas colocadas à nossa frente. As quais, aliás, se vão reduzindo, dia após dia. O que, não sendo uma tragédia, é, valha a verdade, uma boa chatice. 

terça-feira, setembro 11, 2012

"Libération"

A liberdade tem limites. A liberdade de um embaixador em posto ainda mais, como é natural.

Serve isto para dizer que bem gostava de poder comentar aqui, em pormenor, os deliciosos títulos de primeira página do jornal "Libération", nas edições de anteontem e de ontem, onde é feita a "releitura" de duas frases que, nos últimos anos, ficaram famosas na "petite histoire" francesa. Mas não posso fazê-lo, pelo menos de uma forma clara.

E tenho muita pena, porque o engenho e a arte com que o jornal se refere, através desses títulos, à decisão do empresário Bernard Arnaud de pedir a nacionalidade belga são verdadeiramente de antologia. A fantástica criatividade do "Libé", em matéria de capas e de títulos, é já legendária. As capas de ontem e de anteontem vão ficar nesse património. Como o ficou o velho "lettering" do título do primeiro número do jornal, que deixo aqui, "for the record".

segunda-feira, setembro 10, 2012

... encore un effort!

Não era bem uma livraria, era uma daquelas lojas de terra pequena, onde se vende tudo, desde lotaria a jornais, de tabaco a coisas de papelaria. E até livros. Foi ontem à tarde, em Tarascon (exatamente!, a terra do Tartarin que Daudet colocou a caçar leões no Norte de África). O título do livro de Sade (não, não é a cantora, é o marquês) chamou a minha atenção. Sinal dos tempos?

Num impulso súbito, embora soubesse que, em qualquer estante, em qualquer sítio, tenho um exemplar, tive a tentação de comprar o "Français, encore un effort...". Mas logo cheguei a uma conclusão: se achamos quase natural que alguns pareçam ter elegido Sade como seu clássico, então, definitivamente, só merecemos Sacher-Masoch.

domingo, setembro 09, 2012

Férias

Em 1971, quando entrei para a função pública, não existia subsídio de férias. Ele seria instituído no ano seguinte, em 1972.

O ano de 2012, o último em que usufruo de férias enquanto ao serviço ativo do Estado, deixei de ter direito a subsídio de férias.

Precisamente quatro décadas depois, o ciclo fecha-se. Não tem graça nenhuma, mas não deixa de ser curioso.

(Na imagem: as primeiras férias dos trabalhadores franceses, em 1936, decididas pelo "Front Populaire")

Próximo Oriente

Havia um velho aforismo que se costumava utilizar a propósito do Médio Oriente (mas cada vez gosto mais da precisão com que os franceses distinguem o conceito de Próximo Oriente do de Médio Oriente) segundo a qual, por aquela área geopolítica, "não há guerra sem o Egito nem paz sem a Síria". Lembrei-me de como esse tipo de afirmação está já datado quando ouvi o novo presidente da República egípcia denunciar abertamente o regime de Damasco, favorecendo uma alternativa democrática para o país.

Quem haveria de dizer que iríamos, um dia, assistir a uma coisa assim! Nunca, no passado, uma liderança egípcia se havia contraposto de forma tão aberta à família Assad, apesar das tensões entre o Cairo e Damasco não serem raras, antes pelo contrário. A verdade, porém, é que este é um novo Egito (seja lá o que isso venha a significar), chefiado por uma figura com um perfil legitimado democraticamente, com fragilidades económicas que, não obstante as suas renovadas tentações de protagonismo regional, o obrigam a continuar a respeitar uma dependência da Arábia Saudita sunita, que hoje tem o regime sírio, mais do que nunca, como inimigo jurado. E o herdeiro de Assad conseguiu perder, por efeito externo ou culpa própria, todos os "trunfos" com que o seu pai, de forma magistral, desenhara, por décadas, a estratégia nacional da Síria. Todos, não! Ainda lhe restam o apoio do Irão e a embaraçada proteção russa, para além da capacidade de destestabilização no Líbano.

As relações entre os países árabes sempre foram um labirinto de ambiguidades. No passado, eram "federadas" equivocamente por um apoio à causa palestina, que levava a uma oposição de princípio a Israel . Escrevo "de princípio" porque não houve nenhum país árabe com proximidade geográfica com Tel-Aviv que, num momento ou noutro, não tivesse enveredado por uma realpolitik de interesses, sempre disfarçada por uma forte retórica.

As diferentes "primaveras árabes" baralharam, contudo, todo este cenário e ninguém parece estar mais "baralhado" que Israel, que já se havia habituado a lidar com as ditaduras circundantes, as quais, na sua equação de segurança, funcionavam como constantes que conseguia ir gerindo. A suprema ironia é que Tel-Aviv, que sempre fez passar a ideia (real) de ser a única democracia da região, está agora em palpos de aranha com o facto das ideias democráticas, cuja ausência denunciava na sua periferia, estarem a atingir esses Estados da sua vizinhança. E, quem sabe?, levando ao poder governos, agora legitimados pelo voto, que, a prazo, lhe podem vir a tornar-se bem mais detrimentais que as "velhas" ditaduras. Qual é a "solução" para Israel? Aparentemente, tudo indica que pode ser tentado a fazer uma fuga em frente, desencadeando um ataque às supostas instalações nucleares do Irão. Desta forma, ao dispor-se a fazer um "dirty work" que espera que o Ocidente (no fundo) lhe agradeça, o Estado judaico compra tempo e complacência. Mas, uma vez mais, não ganha a paz. 

sexta-feira, setembro 07, 2012

A chave-mestra

A delegação portuguesa àquela reunião internacional, num país africano, ficara reduzida a dois elementos - eu e uma colega. Não obstante os trabalhos prosseguirem por mais dois dias, os restantes quatro elementos tinham partido, de regresso a Lisboa, porque havia eleições no dia seguinte. Pensando bem, tenho a sensação de que, se tivessem ficado, o equilíbrio eleitoral ter-se-ia mantido. E eu desisti de ir, por sabia que a minha opção nesse sufrágio ia sair derrotada, com ou sem o meu voto. Uma demissão cívica pouco defensável, confesso.

Fomos ambos jantar onde era possível, naquela cidade algo inóspita, num país que o não era menos. Depois de darmos uma olhada à discoteca do hotel, cheia de delegados à conferência, regressámos aos quartos, um ao lado do outro. Despedimo-nos. Quando entrei no meu quarto, verifiquei que havia um nele um envelope, da organização da conferência, que era destinado à minha colega. Bati à porta do seu quarto e entreguei-lho. Nesse instante, a porta do meu quarto fechou-se. Comigo fora, com a chave lá dentro.

Do quarto da minha colega, liguei à portaria do hotel, para alguém trazer a chave-mestra, que abre todos os quartos. Notei uma incomodidade do outro lado da linha. O "responsável", única pessoa com essa chave, saíra, não se sabia por quanto tempo. "E levou a chave-mestra consigo?", indaguei. Assim era.

A situação não era muito confortável. Eu estava "despejado" do meu quarto e não tinha onde dormir, se acaso a chave-mestra não aparecesse. Mas não nos passava pela cabeça que não aparecesse, claro. Fomos conversando, eu ia ligando à portaria, por duas ou três vezes passei por lá. Mas nada. O homem nunca mais regressava. Já passava bastante para além da meia-noite. Eu já não tinha "cara" para olhar para a minha colega, que via a televisão local, a fazer horas. E eu por ali ia estando, sem graça...

Até que, lá para as duas da manhã, bateram à porta. Era a chave-mestra! E lá fomos dormir, cada um no seu quarto. A minha colega, nos dias de hoje, confessa que chegou a pensar "fazer-me" a cama na banheira ou no chão do largo armário...

Há vários anos que, divertidos, ambos costumamos contar este episódio - que passou a chamar-se a "história da chave-mestra" - às respetivas famílias e amigos, com alguns a mostrarem-se menos crédulos com a precisão deste relato dos factos, às vezes com comentários mais provocatórios, sugerindo que eu, no fundo, estava, nem mais nem menos, que a "fazer a folha" a essa minha colega...

Ora bem: as coisas passaram-se como se passaram. Porquê? Porque se não se tivessem passado assim, seguramente que nunca tínhamos contado a história. Não é? 

quarta-feira, setembro 05, 2012

LusoJornal

O "LusoJornal" fez oito anos de vida. Acompanhei quase metade desse período e posso testemunhar que, com todas as limitações de um órgão de informação que subsiste com recursos escassos, o "LusoJornal" se transformou num instrumento de grande valia para a Comunidade portuguesa em França. Sem sectarismos nem posições radicais, o "LusoJornal" fornece uma informação equilibrada e atenta às grandes questões que atravessam a vida dos portugueses que por aqui vivem.

Quero daqui deixar uma palavra de homenagem e de estímulo ao Carlos Pereira e à pequena equipa em quem a feitura do "LusoJornal" se apoia. E porque a intervenção da Câmara de Comércio e Indústria Franco-Portuguesa se revelou essencial para assegurar a subsistência do jornal, desejo também saudar a CCIFP, na pessoa do seu presidente, Carlos Vinhas Pereira, por mais este serviço prestado à Comunidade.  

terça-feira, setembro 04, 2012

Moral

Ontem, foi o primeiro dia do ano letivo francês. O novo ministro da Educação nacional (sim, em França é "nacional") indicou pretender introduzir, futuramente, no ensino que é ministrado nas escolas, algumas normas de "moral republicana".

(Antes que entrem na praça os próceres monárquicos, convém que, pela enésima vez, fique claro que, em França, o termo "republicano" nada tem de oponível a "monárquico" ou "royaliste", sendo apenas um simples significado para ética de cidadania. Mas não tenho demasiadas esperanças de que esta explicação trave, em absoluto, a saída à liça da nossa rapaziada das coroas).

A esquerda não é muito useira neste tipo de iniciativas, temerosa, como sempre está, de que elas possam ser confundidas com algum tipo de moralismo autoritário e até fascizante. Por essa razão, logo se viram setores dessa mesma esquerda, mesmo alguns que apoiam o governo, a achar a ideia puramente reacionária. E, mesmo da direita, que, em princípio, deveria ser mais aberta a este tipo de iniciativas, vieram muitas objeções, quando a lógica apontaria para que essa fosse parte da sua agenda natural. Porquê?  Porque ambos os campos críticos consideram ser difícil consensualizar princípios que possam ser assumidos como incontestáveis - como se as decisões governamentais tivessem de passar por uma espécie de referendo unanimista, antes de serem postas em prática. E temem que a classe docente não esteja disponível para implementar uma tal iniciativa E, porque não é possível todos estarem de acordo, então, para alguns, o melhor é persistir no status quo, belo nome latino para nada fazer. É sempre assim...

É muito triste que, nos dias de hoje, a relativização dos princípios não permita que a sociedade acorde num conjunto de regras básicas de comportamento, desde a civilidade à ética social mais elementar, que seja possível manter alheias às lutas político-ideológicas. Mas talvez as coisas tenham de ser mesmo desta forma. Talvez, de facto, seja pouco consensual ensinar aos jovens que a competição não significa a prevalência lei do mais forte, que a igualdade de oportunidades é o contrário da legitimação da "cunha", que não "vale tudo" na vida do dia-a-dia, que é natural que não façamos aos outros aquilo que não gostamos que nos façam a nós. Mas será que os "paizinhos" recomendam isto? E se eles o não fazem e casa, poderão ser os professores  fazê-lo? 

Nesta "guerra", só me resta desejar muito boa sorte ao novo ministro francês. O qual dá mostras de querer seguir os princípios do  saudável igualitarismo laico de Jules Ferry*, mas que, nas últimas horas, já foi acusado de repetir o marechal Pétain - não o herói da 1ª grande guerra, mas o colaboracionista-mor durante a 2ª grande guerra. Não deve ser nada fácil ser ministro da Educação.

* É claro que era Jules Ferry e não Luc Ferry. Lapsos de quem se distrai muito com a atualidade. A propósito: Luc Ferry mostrou-se de acordo com estas ideias do ministro da Educação, de quem foi antecessor.  

segunda-feira, setembro 03, 2012

O intruso

As reuniões semanais de secretários de Estado são exercícios de análise dos projetos legislativos, antes deles serem submetidos ao Conselho de ministros. Podem ser reuniões muito aborrecidas, quando as temáticas são extremamente técnicas e desinteressantes. Mas é um trabalho importante de "desbaste" da produção legislativa, onde o representante de cada Ministério procura avaliar da compatibilidade do projecto com os interesses sectoriais da sua área. Grande parte dessa legislação, desde que mereça acordo a nível dos secretários de Estado, só "sobe" aos ministros para simples "luz verde", sem debate nem leitura. Quando, os secretários de Estado não conseguem chegar a um acordo, e se o Ministério proponente não retirar o dilploma, os ministros, em Conselho, são chamados a "trancher".

Recordo-me bem que, logo nos primeiros meses de governo, tive uma "pega" homérica com um colega de um determinado ministério, por via das competências a que aquele departamento se arrogava, em matéria das instruções diretas a dar à nossa representação junto da União Europeia, em Bruxelas, as quais, na minha opinião, colocavam em causa a natural preeminência do MNE nesse domínio. O assunto não mereceu consenso ao nosso nível, pelo que teve de subir a Conselho de ministros, onde, com alguma dificuldade, o chefe do governo conseguiu arbitrar uma solução. Satisfatória para a posição que eu tinha sustentado, diga-se.

Esse era, e continua a ser, um tempo a que cada governo sempre se dedica com zeloso fervor inicial - o período de produção das "Leis orgânicas" dos ministérios. Através delas, alguns departamentos procuram ganhar faixas de competências que, no passado, pertenciam a outros. No que importava ao MNE, isso era feito através da inclusão de hábeis, e às vezes ambíguas, alíneas nas lista das tarefas que que cada ministério atribuía aos seus "gabinetes de relações internacionais" ou dos "assuntos europeus". Por essa razão, cabia-me passar "a pente fino" todas as propostas de Leis orgânicas de todos os departamentos do governo. Aqui está uma matéria em que a história é sempre a mesma, qualquer que seja a coloração política dos executivos...

Naquelas infindáveis reuniões dos secretários de Estado, numa sala austera da rua Gomes Teixeira, havia por vezes alguns momentos divertidos. A grande figura desses instantes era o secretário de Estado da Justiça, José Matos Fernandes, que era conhecido por fazer um minucioso escrutínio à produção legislativa, quer do ponto de vista substantivo, quer no tocante à correção linguística, uma tarefa a que eu e o Guilherme de Oliveira Martins muitas vezes nos associávamos, com sádico prazer, para desespero de alguns colegas. É que, de certos departamentos técnicos, chegavam, por vezes, projetos de legislação num português abaixo de qualquer classificação. Matos Fernandes, que era um pouco mais velho que todos nós, fazia então observações com uma imensa graça, dando verdadeiras lições de Direito, às vezes ilustradas com histórias divertidas. Confesso que essas suas intervenções fazem parte do pouco de que tenho memória positiva dessas longas horas, nos dias em que "ia a conselho", com as pastas a chegarem às nossas casas, muitas vezes, bem tarde na noite da véspera, obrigando a leitura de diplomas até de madrugada. Não sei se as coisas ainda hoje assim se passam.

Um dia, a poucos meses da minha programa saída do governo, para regressar à "carreira", já quase no termo dos quase cinco anos e meio em que exerci aquelas funções, olhei para o outro lado da mesa e deparei com alguém que não conhecia. Os governos têm umas escassas dezenas de pessoas e, naturalmente, todos se conhecem uns aos outros, melhor ou pior. Aquela cara, porém, não me dizia rigorosamente nada. É claro que tinha havido uma recente remodelação e era natural que fosse um novo secretário de Estado. Mas - c'os diabos! -, embora eu não tivesse estado na posse, tinha visto a fotografia dos novos secretários de Estado e eu ia jurar que aquela pessoa não entrara no governo. 

O homem estava silencioso e olhava em volta, como se observasse um ambiente que lhe era estranho. Tomava algumas notas, mas não pedia a palavra. Ao meu lado esquerdo, estava o Luis Parreirão, a quem perguntei se sabia de quem se tratava. Disse que não fazia a mínima ideia e que também achara estranha a personagem. Ele também não tinha estado presente na tomada de posse. E o mesmo acontecia com o colega que estava à esquerda do Luis Parreirão. Todos nos tínhamos "baldado" da cerimónia em Belém. Pela posição na mesa, tentámos perceber a que ministério pertenceria. Mas, por uma qualquer razão, não chegámos a nenhuma conclusão.

"Será um jornalista?", lancei, baixo, para o Luís Parreirão, que arregalou os olhos com a ideia. "Às tantas!..." Sabíamos que já tinha havido falsos "deputados" do "Tal & Qual" no plenário da Assembleia da República e podia dar-se o caso de se tratar de um "golpe" similiar, desta vez na reunião de secretários de Estado. Seria preciso ter muita lata, mas tudo é possível.

Eu estava cada vez mais intrigado. À minha direita sentava-se o Guilherme de Oliveira Martins, que dirigia a reunião, como ministro da Presidência. Discretamente, perguntei-lhe se tinha alguma ideia de quem seria o fabiano sentado do outro lado da mesa, que nenhum de nós identificava. O Guilherme sabe sempre tudo! E, com a maior das calmas, disse-me o nome do homem, explicando tratar-se de um novo recruta, num determinado ministério. E, com um sorriso, acrescentou, já crítico: "se você tivesse ido à tomada de posse dos novos membros do governo, tinha-o conhecido..." É que o Guilherme tinha também tomado posse, como ministro da Presidência. E não nos tinha visto por lá...

domingo, setembro 02, 2012

Rochefort

Passaram 45 anos. As ruas de Rochefort parecem-se pouco às do filme de Jacques Démy, onde é difícil encontrar uma loja de "frites", como a que madame Ivone por ali mantinha. Estou certo que as "demoiselles de Rochefort" com que nos cruzámos só por um grande acaso conhecerão essa tentativa francesa de emular os musicais americanos, para o que não faltaram mesmo George Chakiris e Gene Kelly. O filme, que há uns meses revi, faz parte de quantos não resistiram ao tempo: é chatote, primário e de uma simplicidade quase amadora, embora pretencioso. Salvam-se as caras larocas, claro.

Já devia ter aprendido, de uma vez por todas, a abandonar este meu perigoso gosto de rever filmes (e alguns livros) que me marcaram a memória longínqua. Saio muitas vezes desiludido do exercício. 

Emmanuel Nunes (1941-2012)

Desde há vários dias que estávamos alertados. Hoje, surgiu a notícia da morte, num hospital onde estava internado, em Paris, cidade onde vivia, do compositor português Emmanuel Nunes, aos 71 anos de idade.

Emmanuel Nunes foi a maior figura da música de vanguarda em Portugal, tendo uma carreira académica de grande relevo, durante a qual esteve associado a grandes figuras da música contemporânea universal. Galardoado pelos governos português e francês, foi-lhe também atribuído o "prémio Pessoa" e o prémio de composição da UNESCO.

É reconhecido como a mais importante personalidade musical portuguesa nas últimas décadas, com expressão no âmbito internacional.

sábado, setembro 01, 2012

"Le serment des cinq lords"

A grande vantagem de se andar por "outra" França é ter a oportunidade de ler uma imprensa regional de boa qualidade, que compense a grande desilusão que hoje é, com exceção do "le Monde", a imprensa nacional francesa, basicamente reduzida às duas caricaturas políticas, respetivamente de direita e esquerda, que nos oferecem o "Le Figaro" e o "Libération". Depois do fim do "La Tribune", resta-nos seriedade conservadora do "Les Échos" que, em matéria de revistas semanais, se prolonga na revista "Challenges". Nestas, o "Le Point" e o "L'Express" são hoje, na direita, uma sombra daquilo que já foram e da importância que já tiveram. À esquerda, o "Nouvel Observateur" tem ainda algum rigor, com o "Marianne" a surgir quase como um panfleto, agora algo "déboussolé" com a vitória da esquerda.

A imprensa regional francesa, com mais de meia centena de títulos, consegue, em alguns casos, compatibilizar sínteses nacionais e internacionais interessantes com uma cobertura local mobilizadora, sem cair no sensacionalismo do "crime & cia". A minha experiência da sua leitura é escassa, pontual e pouco representativa, mas devo dizer que, vindo de um país onde essa realidade quase não existe ao nível de jornais diários, aprecio bastante o "Sud ouest", as "Dernières nouvelles d'Alsace", a "Voix du Nord" ou o clássico "Dauphiné liberé" (que, contariamente ao "Le Parisien", soube manter a orgulhosa menção de "liberé", atribuído depois do fim da ocupação alemã).

Mas tudo isto, que é "como as cerejas", vem a propósito do facto de eu andar a ler, nos últimos três dias, o também excelente "Ouest France", que cobre a Bretanha e zonas um pouco mais a sul. E o que é que fui descobrir no jornal? A publicação diária de uma nova "aventura" de Blake e Mortimer, "Le serment des cinq lords", na versão de Yves Sente e André Julliard. Pode não ter a grandeza do "traço" de Edgar P. Jacobs, mas não deixa de ser uma aproximação bem interessante. Em novembro, sai o álbum a público. Desde ontem, a Amazon já tem a minha inscrição. Que saudades eu tenho de Olrik! Bandidos deste quilate já não há mais!  

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...