sábado, dezembro 24, 2011

Coreia do Norte

O ambiente de obsessivo secretismo - e, por essa via, de incessante especulação - que se cria em torno da maioria dos regimes ditatoriais teve o seu auge, desde sempre, no caso limite da Coreia do Norte. Quer ao tempo do fundador da "dinastia", Kim Il-Sung, quer no do seu filho, Kim Jong-Il, as historietas sobre alguns, nunca absolutamente confirmados, aspetos da sua vida privada, desde os excessos materiais às aventuras afetivas, fizeram, por décadas, a delícia de uma certa imprensa. Como nada é possível provar, tudo é possível dizer.

A chegada de um novo líder ao poder, em Pyongyang, aguça agora a curiosidade dos media. Não deixa de ser interessante ver o "Le Figaro" dedicar hoje quase meia página à exegese da fotografia que acima reproduzo, retirada de um filme com dois dias. Para quê? Para especular sobre a "misteriosa criatura" da jovem que aparece atrás de Kim Jong-Un. Dando por adquirido o princípio de que "na cultura tradicional coreana, um homem ainda celibatário na casa dos 30 anos é mal visto", o correspondente em Seul do jornal conservador francês detém-se em detalhe sobre a imagem da jovem, adiantando que "a sua silhueta é tão fina que voga no seu fato tradicional ligeiramente decotado", perguntando-se se "esta mulher tão jovem e de atitude tão elegante será a nova primeira-dama da Coreia do Norte". O jornal nota ainda "o rosto oval delicado, a pele de porcelana, de uma jovem que parece uma pena". Caramba! Que perspicácia! Eu não consigo "ler" tanto na fotografia.

O jornal vai ao ponto de qualificar este intrigante momento como "o mistério da mulher no mausoléu de Kum Su-San". Para o jornalista, confortavelmente instalado a sul do paralelo 38º, apoiado nas investigações do "especialistas" locais e num "rumor transmitido por uma fonte clandestina no local, mas impossível de verificar", "a feliz eleita seria diplomada da prestigiada universidade Kim Il-Sung e seria dois anos mais nova que o 'grande sucessor'", sendo originária de Chongjin, na costa nordeste da península. Cuidando o "safe side" dos desmentidos da História, o jornalista não exclui a hipótese de se tratar, muito simplesmente, de uma filha do falecido Kim Jong-Il, logo, apenas de uma irmã de Kim Jong-Un. Mas essa é uma possibilidade que, por pouco romântica, apenas merece o prudente registo.

Nos tempos em que o comunismo prevalecia em Moscovo, o ocidente criou a "kremlinologia", uma especialidade que lia sinais das posições relativas de dirigentes nos palanques e nos encontros internacionais, bem como no "body-language" das grande figuras, daí extraindo conclusões para as futuras sucessões de poder. À nossa modesta escala, lembro-me de ouvir comentar, em fotos dos "dias da raça", o menor gesto de simpatia de Salazar para qualquer vizinho de fraque, daí deduzindo cumplicidades e hipotética gestação de herdeiros, descontados os imponderáveis da lei da gravidade. 

Esses mistérios constituem a eterna "graça" das ditaduras, coisa que a simplicidade do voto democrático logo destrói. É pena ver jornais com o antigo prestígio do "Le Figaro", onde preponderaram as penas de François Mauriac ou Raymond Aron, a encherem hoje as suas páginas com este tipo de especulações. Talvez isto se faça só até ao dia em que o brilho de melhores fotografias, oriundas de Pyongyang, permita um tratamento mais "profissional" nas colunas "especializadas". É que, verdade seja dita, os verdadeiros dias felizes para a democracia só estarão adquiridos quando o "Paris Match" cobrir um casamento presidencial na Coreia do Norte. Nesse dia, porém, a notícia passará para o "Figaro Magazine".       

sexta-feira, dezembro 23, 2011

Bom Natal para todos

A História e a justiça

A Assembleia Nacional francesa aprovou ontem a criminalização do "negacionismo" de todos os genocídios, isto é, o seu não reconhecimento ou desvalorização no discurso público e mediático. O que estava imediatamente em causa era o reconhecimento do alegado genocídio da população arménia pelos turcos, entre 1915 e 1917, tema altamente sensível em Ancara, que reagiu com esperado desagrado.

Sobre o tema do "negacionismo", há duas posições opostas.

Há quem considere, à luz dos trágicos extermínios nazis, que não se pode deixar morrer a memória às mãos de uma dolosa contestação de factos incontroversos, que representam crimes contra a humanidade, para os quais é imperioso manter alerta a consciência das gerações seguintes.

Outros entendem que não é pelo direito que se corrige a perceção da História e que a negação pública de uma evidência se combate pelo esclarecimento e pela demonstração de uma verdade que, sendo-o, deve ser suficientemente sólida para enfrentar o seu contraditório público.

Anos 60

O "Nouvel Observateur" desta semana traz um dossiê sobre os anos 60. Nele aparece esta bela fotografia de Cartier-Bresson, tirada na Brasserie Lipp, no boulevard Saint-Germain.

A imagem é auto-explicativa: uma França, clássica e perplexa, lê o "Le Figaro", uma mais moderna lê o "Le Monde".

Talvez uma foto mais atualizada colocasse a jovem com o "Libération" à frente. Ah! e naquelas mesas da Lipp já não se pode pedir apenas uma bebida, tem de se almoçar ou jantar.

quinta-feira, dezembro 22, 2011

Passagem de poder

Bela prática aquela a que ontem se assistiu em Espanha: os ministros cessantes e aqueles que os vão substituir encontram-se numa cerimónia pública, na presença dos altos funcionários do ministério, num gesto que tem o simbolismo da continuidade das funções de Estado. Em França, embora creio que sem discursos formais, tem lugar um ritual idêntico.

É pena que, em Portugal, não se tenha consagrado este costume, digno de uma grande democracia, que reflete e projeta publicamente a naturalidade da alternância. No nosso caso, à saída da cerimónia da Ajuda, onde os novos e ex-ministros se saúdam, os futuros titulares apenas encontram, à saída, um automóvel para os transportar, sendo que os antigos governantes têm geralmente de contar com um amigo que os leve de volta a casa. 

Com a vida, aprendi que alguns formalismos têm um valor que vai para além do simbólico e que ajudam a sedimentar o respeito democrático.

Artur Santos Silva

A Fundação Calouste Gulbenkian acaba de escolher Artur Santos Silva para seu futuro presidente.

A Gulbenkian é uma instituição que, desde sempre, tem prestigiado fortemente o nosso país. Artur Santos Silva, como aqui referi há alguns tempos, é uma das raras personalidades portuguesas que reúne uma quase unanimidade, pelo que dá totais garantias de poder vir a preservar, com o seu dinamismo e abertura, o fantástico legado de Calouste Gulbenkian. A sua escolha é a prova de que o bom-senso ainda prevalece neste país.

Um forte abraço de parabéns, Artur!

Força, Eusébio!

Eusébio da Silva Ferreira, a velha glória de todos nós, está doente.

Eusébio faz parte do património de um país que não pode dar-se ao luxo de dispensar aqueles que lhe deram grandes alegrias, particularmente nestes tempos em elas já são tão poucas. 

Força, Eusébio. E esperança, embora verde...

quarta-feira, dezembro 21, 2011

Coreias

Em 2003, quando representava Portugal na OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa), em Viena, fui convidado pelo governo coreano para pronunciar, em Seul, uma conferência sobre um tema que pode parecer algo etéreo para os leitores deste blogue: "OSCE's confidence and security bulding measures". 

Essa era uma especialidade que eu entretanto desenvolvera na minha involuntária "osceosidade" vienense, que levara aquela organização, sem o menor encargo para o Estado português, a "oferecer-me" como palestrante especializado por vários seminários internacionais sobre questões de defesa e segurança, da Polónia ao Casaquistão, do Egito ao Japão, da Itália à Jordânia. 

Tratava-se de transmitir a experiência ganha pela OSCE no seu quadro de cooperação euroasiática, em matéria de diálogos políticos "geradores de confiança", em situações pós-conflito (ou, mais raramente, de mera prevenção de conflitos), com vista a operações de "learning lessons", neste caso para tentar aplicar essa experiência no quadro da tensão "sul-norte", que prevalece nas Coreias desde o confito dos anos 50. Estava-se então no tempo de alguma esperança nos esforços feitos no âmbito dos "six-party talks" (conversações entre as duas Coreias, com inclusão da China, da Rússia, do Japão e dos EUA), para tratar o sensível problema nuclear norte-coreano.

O debate em Seul foi extremamente interessante e instrutivo, em especial para melhor perceber a peculiar atitude chinesa (e também russa) no processo, bem como para definir as distâncias estratégicas, muitas vezes pouco percebidas mas bem presentes, entre a Coreia do Sul e os Estados Unidos, assunto de que já falei aqui.

À parte o seminário, houve a possibilidade de uma deslocação, entre o turístico e o político, ao histórico "paralelo 38", a linha divisória do trágico conflito entre as duas Coreias. Sendo a fronteira mais tensa do mundo, há em seu torno uma espécie de grande "teatro", alimentado pelos sul-coreanos e pelas tropas norte-americanas presentes no local, com óbvia cumplicidade dos coreanos do norte. Visitaram-se túneis e postos de observação, de onde se podia ver uma gigantesca bandeira norte-coreana e, através de binóculos, se detetavam, como figuras raras, militares das tropas do outro lado. Foi-se até à sala das históricas conversações norte-sul, bem como ao limite de uma linha de comboio interrompida há muitos anos, pela Coreia do Norte, sendo-nos mostrada uma moderna e completamente deserta estação de onde, como nos foi dito, se um dia houver paz e tiver acabado o bloqueio da fronteira, um comboio poderá partir numa longa viagem euro-asiática que irá acabar em... Paris, tido num grande mapa como o extremo ferroviário ocidental da Europa. A uma simples observação minha, sobre a razão pela qual essa linha mirífica não prosseguiria até Lisboa, desencadeei nos meus interlocutores sul-coreanos um imediato e preocupado nervosismo, com imediata promessa (!) de irem rever o mapa. A extrema lógica asiática tem destas coisas...

Mas, no local, há outras "lógicas", tão ou mais complexas do que esta. Um dos pontos da agenda incluía um "briefing", feito pelas tropas americanas aí estacionadas, sobre a situação na linha de fronteira. Convém que se diga que, para a Coreia do Norte, a situação de guerra com os EUA mantém-se, formalmente. O oficial americano parecia uma caricatura cinematográfica, com um típico corte de cabelo paralelipipédico, que lhe dava um ar involuntariamente divertido. O seu discurso estava recheado de "clichés" da vulgata da "guerra fria" revisitada (ao tempo da minha visita preponderava em Washington o senhor George W. Bush), que divertiram imenso o pequeno auditório, recheado de especialistas internacionais que tinham das coisas do mundo alguma sofisticação mais. Recordo-me de nos ter sido explicado, com detalhes biográficos e curiosidades pormenorizadas, muito orientadas para um auditório turístico, quem era o lider norte-coreano Kim Jong-Il (que há dias morreu). As restantes informações relevavam de uma espécie de versão para atrasados mentais da série editorial "The complete Idiot's guide", ideologicamente revista pelas Seleções do Reader's Digest nos anos 50.

A certa altura da palestra, o militar contou que, todas as manhãs, grandes altifalantes emitiam, em direção ao sul, hinos e canções patrióticas norte-coreanas, que faziam já parte da rotina dos dias no local. Porque o "briefing" estava a ser uma maçada de que todos pareciam querer ver-se livres, quando, no fim da preleção, nos interrogou sobre "any questions?", registou-se um silêncio esmagador e de alívio. Foi então que decidi, para espairecer o ambiente, "quebrar a loiça" e, com uma falsa ingenuidade, perguntei: "Os hinos e as canções patrióticas são, como nos disse, a regra dessas emissões matinais. Gostava que me respondesse a uma questão: qual seria a sua reação se, numa dessas manhãs, em lugar desse tipo de músicas, os altifalantes norte-coreanos transmitissem uma canção de Britney Spears?". O homem bloqueou e olhou-me siderado. Acrescentei: "Que tipo de conclusões políticas retiraria desse facto?". O militar americano ficou muito sério, fixou-me de uma forma pouco simpática, pousou a varinha com que apontara o "power-point" e disse: "The briefing is over". Uma onda de gargalhadas, mas apenas dos visitantes estrangeiros, ecoou na sala.

Decididamente, o humor não é a atitude mais apreciada nas zonas tensas de conflito.

A democracia e o "The Economist"

A "Economist Intelligence Unit" (não sei se ainda anda por lá o meu amigo Mark Hudson) do "The Economist" faz este ano a sua tradicional "medição" do estado da democracia e das liberdades em 165 países independentes e dois territórios, atribundo-lhes quatro categorias: democracias plenas, democracias com falhas, regimes híbridos e regimes autoritários. Os critérios são os seguintes: processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política e liberdades cívicas.

Este ano, a "bíblia" do neoliberalismo baixou Portugal para 27º lugar (éramos 26º), colocando-nos no grupo das "democracias com falhas". A principal razão, explica o relatório, deveu-se a erosão da soberania e da responsabilidade democrática, associada aos efeitos e às respostas à crise da zona euro. O relatório destaca ainda que, em alguns países, já não são os governos eleitos que definem as políticas, mas sim os credores internacionais, como o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional. A severidade das medidas de austeridade contribuiu, no entender do estudo, para enfraquecer a coesão social e diminuir ainda mais a confiança nas instituições públicas.

aqui falei, há tempos, desta questão, que é, de facto preocupante. É que, para além de alguma arrogância "patronizing" que subjaz a este tipo de avaliações, o relatório não deixa de tocar nalgumas feridas que a atual situação abriu em várias democracias europeias. Mas também cria uma dúvida: afinal, esta alegada quebra de democraticidade da situação em países como Portugal não é derivada pela adoção de políticas de austeridade e de estrito controlo macroeconómico por parte de entidades internacionais, como aquelas que o "The Economist" sempre defendeu? Em que ficamos? 

terça-feira, dezembro 20, 2011

Carlos da Veiga Ferreira

Conheço e sou amigo do Carlos da Veiga Ferreira há muitos anos. Era ele então um pouco ortodoxo funcionário do Ministério da Indústria onde, num gabinete dirigido por essa saudosa figura que foi Aurora Murteira, estabelecia, lado a lado com o Frederico Alcântara de Melo, uma operativa ponte com as Necessidades, onde eu acabara de entrar. Lisboa é uma grande aldeia e, logo que nos conhecemos, percebemos que tínhamos amigos em comum, o menor dos quais não era esse federador de afetos que dá pelo nome de António José Massano.

Pouco tempo depois, vim a conhecer o outro lado do Carlos: o editor. Primeiro com o Carlos Araújo, depois tendo a seu cargo exclusivo a magnífica Teorema, uma editora culta e de bom gosto, onde brilhou a obra de Jorge Luis Borges, mas onde também publicou outros grandes autores, como Martin Amis ou Saul Bellow. Em noites de conversas com ele, pelo mundo, aprendi a apreciar o seu raro "feeling" para a descoberta de nomes que viriam a ser êxitos editoriais em Portugal. Apesar das minhas promessas, nunca o acompanhei numa visita à feira do Livro de Frankfurt, um dos meus (poucos) sonhos não concretizados de vida.

Há uns anos, num restaurante de Lisboa, vi o Carlos à distância, muito engravatado, numa conversa de onde me pareciam transparecer negócios. Eu estava a jantar com amigos, entre os quais o empresário e homem da imprensa João Amaral e recordo-me de ter comentado: "O Veiga Ferreira está com ar de quem está a vender a Teorema". O João Amaral não conhecia então o Carlos. Fui ter com o Carlos. Estava, de facto, a vender a Teorema, editora que, no entanto, continuou a dirigir.

O tempo passou e a vida deu algumas voltas. A Teorema, e o Carlos com ela, acabaram absorvidos no imenso conglomerado editorial da Leya, onde, curiosamente, o João Amaral é hoje uma figura proeminente. Mais tarde, soube que o Carlos Veiga Ferreira abandonou a Teorema e a Leya, que hoje a tutela. Por acasos da vida, ainda não falámos, desde então.

Há dias, num noticiário cultural, vi que o Carlos criou, há meses, uma nova editora: a Teodolito. Perguntado, por alguém, sobre a razão do nome, o Carlos respondeu, desconcertante como sempre: "Havia um poeta meritório, que já morreu há muito tempo chamado António de Sousa e mostrou vários poemas ao Herberto Helder. A determinada altura, havia um verso que dizia qualquer coisa ‘noite inconsútil’ e o Herberto perguntou-lhe: O poema é giro mas António você sabe o que é ‘inconsútil’ ? E o António respondeu: ‘Não sei nem me interessa mas é uma palavra muito bonita.’ Eu sei o que é um teodolito e foi por causa disso e também remete para um texto brilhante do Luiz Pacheco que se chamava ‘O Teodolito’ ".

Da Teorema à Teodolito, vê-se que o "bichinho" editorial do Carlos  da Veiga Ferreira não desarma. E o seu humor também.

"Contingency planning"

Devo dizer que, no que me toca, fiquei completamente indiferente à notícia de que o Foreign Office tinha um "contingency plan" para os seus cidadãos, para o caso de poder haver uma situação extrema de crise em Portugal e em Espanha. 

Os países e as diplomacias mais organizadas - e o serviço diplomático britânico é "apenas" o melhor do mundo - fazem exercícios constantes de planeamento para situações extremas, em todos os cenários geopolíticos, o que lhes permite terem uma noção quantificada e qualificada dos meios que têm de mobilizar em situações de emergência. Isso é válido para uma crise financeira, como o é para uma convulsão social, para um terramoto ou um acidente nuclear.

Esta "obsessão" com a organização retira, a esses países, a "graça" de testarem a capacidade de improviso das suas gentes e estruturas - faculdade em que países como Portugal são mestres. Verdade seja que, no caso português, existe, desde há alguns anos, uma unidade de "emergência consular" no MNE que já criou uma certa massa crítica, que lhe permite orientar-se por rotinas já seguidas, com êxito, no passado.

Interessante foi ver o nosso paupérrimo "jornalismo" televisivo, que tem de inventar o inimaginável para encher de "chouriços" (a expressão é do jornalismo, não é minha) a mais de hora e meia dos seus lamentáveis telejornais, a entrevistar cidadãos ingleses ao sol algarvio, perguntando-lhe, patrioticamente, se não temiam um colapso do sistema bancário português. Esses britânicos, serenos e educados, pouparam-nos à humilhação de revelar que, com toda a certeza e naturalidade, utilizavam as suas instituições financeiras além-Mancha e, com probabilidade, não tinham confiado as suas poupanças ao BPN ou ao BPP...

Tratado

Para quem tiver paciência e gosto por estas coisas, aqui fica o link para o (uma discutível tradução do) projeto de novo tratado intergovernamental europeu, desde agora em negociação.

Comentários ao correr da tecla que o texto me sugere:
  • o texto é curto, o que é muito bom.
  • ressalta do projeto um tom "inclusivo", por forma a abranger os países da zona euro e aqueles que só são parte da UEM. Tudo o que aponte para a inclusividade é bom para a Europa. E para nós nela.
  • é dada uma razoável latitude quanto à sede jurídica da inclusão da "regra de ouro" sobre o défice, o que pode facilitar a sua aprovação em muitos países.
  • continua a não resultar claro como será possível um tratado intergovernamental vir utilizar as instituições comunitárias (Conselho europeu, comissão e tribunal de Justiça), sem um consentimento unânime. De facto, sem uma aquiscência do Reino Unido, isso será impossível. Mas a predisposição de Londres a ser "observador" do processo é uma boa notícia para os restantes subscritores. Resta saber a que "preço", nomeadamente nas próximas "perspetivas financeiras" (quadro orçamental plurianual)...
  • é dúbia, e juridicamente pouco consistente, embora por isso aparentemente inóqua, a referência ao pacto "euro plus", que se pretendia um reforço do pacto de Estabilidade e Crescimento, através do "método aberto de coordenação" (que, diga-se, tanto se criticou à "agenda de Lisboa" de 2000). Será apenas para não deixar cair, por completo, uma "construção" que tanto agrada a um Estado membro cujo nome, como Cervantes dizia de um certo lugar da Mancha, no "Dom Quixote", não me quero lembrar?
  • as "cimeiras do euro" afinal já não reunem mensalmente, como fora anunciado no dia 9. É de elementar bom senso... Às vezes, penso que quem vive aqui no centro da Europa não tem a noção do que representa, em termos de esforço, uma deslocação a Bruxelas, quando se está num país geograficamente periférico. As vídeo conferências para alguma coisa existem, embora tenham a "desvantagem" de não garantirem conferências de imprensa de exploração dos "sucessos".
  • a entrada em vigor do tratado, após o nono subscritor, parece uma medida com sentido, forçando de forma razoável os restantes. 
Algumas dúvidas que o texto (e a filosofia do mesmo) me suscita não podem ser abordadas neste âmbito.
    Devo dizer que continua a não ser, para mim, muito clara a razão técnica por que não se optou pelo modelo de uma "cooperação reforçada", que, nos termos do atual tratado, se poderia fazer (a partir de oito Estados membros) sem a presença do Reino Unido e teria a importante vantagem de não confrontar o quadro institucional. Mas devo ser eu quem está a ver mal, por ter já "perdido a mão" destas coisas europeias...

    Treaty

    Começou hoje a negociação do texto fundador da nova "União Orçamental", o tratado intergovernamental lançado em 9 de dezembro e que os mais otimistas entendem poder ficar concluído até março.  

    Como é sabido, o Reino Unido colocou-se inicialmente fora do processo, embora posteriormente tenha vindo a juntar-se a ele, mas apenas como observador. O mais irónico de tudo isto, que também dá nota do possível destino futuro das línguas oficiais no quadro europeu, é que a discussão se fará exclusivamente sobre uma única versão de projeto do tratado, redigida em... inglês.

    segunda-feira, dezembro 19, 2011

    Jogo eletrizante

    O jogo era péssimo. O futebol daquele país estava longe de proporcionar grandes espetáculos e a transmissão televisiva, a preto e branco, com escassos meios e uma ainda mais escassa técnica, era de uma imensa pobreza. Mas, com a chuva que caía, pouco mais havia para fazer na residência portuguesa, naquela cidade de um país em guerra, onde eu fora visitar um colega em posto e já tínhamos colocado a conversa em dia. Com uma cerveja a acompanhar, a emissão ajudava a passar as horas, até porque o meu avião de regresso era só na tarde do dia seguinte.

    A certo ponto, a imagem televisiva estragou-se, por segundos, regressando depois à sua qualidade habitual. Mas por pouco tempo. A partir daí, sem regularidade temporal, o incidente repetia-se. Ver o jogo tornava-se um exercício difícil. Ah! e, naquele país, só havia um canal televisivo, claro. 

    - É sempre isto! Com estas variações de luz, estragam-se os aparelhos todos. Uma arca já foi à vida e o frigorífico está com problemas. Já coloquei estabilizadores de corrente, mas não adianta. E, sabes?, ainda eu tenho a sorte deste ser um acesso elétrico que me foi dado pela polícia. É um fio que liga à esquadra, que fica ali atrás. O comandante é meu amigo e foi ele mesmo quem sugeriu podermos fazer uma ligação direta, para poder beneficiar do gerador deles, quando há falhas gerais de energia. E o "quarto andar"* nem sabe o que poupa! Imagina agora o que sofre o resto da gente desta cidade!

    Eu continuava a tentar olhar o errático écran e perguntava-me se Lisboa alguma vez tinha consciência das dificuldades com que se defrontavam diplomatas e outro pessoal destacado, despachados para  postos recônditos, perdidos pelo mundo, sujeitos a privações constantes, à  insegurança e às doenças típicas dessas terras, que muitas vezes os obrigavam a separar-se das famílias. Tendo essa gente, como gozo supremo, numa tarde de chuva, jornais atrasados chegados pela "mala", ou um livro e um disco como os que eu lhe levara. E, claro, transmissões de futebol medíocre e outros programas de nível congénere, acompanhados de uma, duas, três, mil cervejas, para almofadar o quotidiano. 

    Um velho empregado entrou na sala, para perguntar se queríamos (claro!) mais uma cerveja. Ao passar pela televisão, com as sucessivas interrupções de imagem, deixou cair:

    - Eles hoje devem ter muitos trabalhos, patrão.

    O meu colega terá notado o meu olhar perplexo, face ao comentário, e esclareceu, vi que um pouco embarçado:

    - Aí o meu pessoal, que sabe das entradas e as saídas na esquadra da polícia, acha que algumas destas quebras na luz são devidas aos choques elétricos durante os interrogatórios aos "do inimigo". Se calhar têm razão, sei lá! Não posso perguntar-lhes, não é?

    Concentrou-se na televisão, irritado:

    - C'os diabos, ao menos os polícias podiam gostar de futebol...

    * Nome pelo qual os diplomatas designam a administração do MNE

    Mario Draghi

    É muito interessante observar a diferença de atitude, em termos de apresentação pública das coisas, entre o atual presidente do Banco Central Europeu, o italiano Mario Draghi, e o seu antecessor, o francês Jean-Claude Trichet. 

    Há cerca de dois meses ouvi ambos falar em Paris, num seminário fechado à imprensa, e fiquei com a impressão (errada, pelos vistos) de que ambos seguiam um firme guião, que já pudera detetar numa conferência do vice-presidente do BCE, Vitor Constâncio. Hoje, ao ler a entrevista que Draghi dá ao "Financial Times", mudei essa ideia.

    Draghi começa a afirmar uma linha pública que, não se afastando da proverbial prudência da instituição, analisa cenários que Trichet recusava, como é o caso da possibilidade do fim do euro. Mais do que na esfera política, eu habituei-me a ter em conta muito particular estas "nuances" de discurso deste tipo de banqueiros que, como é sabido, acarretam muitas vezes consigo (e eles sabem isso melhor que ninguém) consequências no comportamento dos mercados. Um governador de um banco central (e o BCE não é um qualquer banco central) nunca diz nada por acaso e Mario Draghi tem revelado ser um homem altamente qualificado e preparado. Só que - e o defeito é meu, com certeza -, eu ainda não entendi até onde Mario Graghi quer chegar com a adoção deste diferente discurso. Mas vou continuar a tentar perceber, até porque isto não é indiferente para um país como o nosso.

    domingo, dezembro 18, 2011

    O secretário-geral

    Na grande maioria dos ministérios que, por todo o mundo, se ocupam das relações externas existe a figura do secretário-geral. O leque de funções dos secretários-gerais varia bastante de país para país, podendo a figura surgir no cume da formulação substantiva das políticas até a um modelo que assenta na sua preeminência na organização e na gestão superior da "casa". (Mas é sempre, convém deixar claro, uma entidade muito diferente daquelas que, com a mesma designação, existem noutros ministérios.)

    Em Portugal, o embaixador que exerce as funções de secretário-geral tem um papel muito importante como "chefe da carreira" e como ligação desta ao poder político que o nomeou. A sua atividade acarreta consigo uma imensa dose de responsabilidade, que se objetiva nas propostas das pessoas que vão ocupar cargos no exterior ou de chefia interna, nos processos de promoção e na muito difícil preservação de uma cultura diplomática, para compensar a transitoriedade dos ciclos políticos. Pelo secretário-geral passa muito daquilo são as carreiras dos funcionários, a alocação de principais meios financeiros, materiais e de recursos humanos. Isso faz com que, com frequência, ele seja como que uma espécie de "muro das lamentações", perante a disponibilidade limitada dos meios existentes. E, por essa mesma via, o secretário-geral é, também muitas vezes, o bode expiatório do mal-estar de algumas decisões, gerando frustrações e desânimos num corpo profissional cuja distribuição pelo mundo tem especificidades que não são comuns a outras carreiras assentes em Portugal..

    A experiência mostra que o lugar de secretário-geral é muito "feito" pelas personalidades que o ocupam, porque há uma margem da função que é desenhada através da autoridade que cada um consegue criar e pelo modo como os embaixadores que ocupam o cargo se estabilizam no quadro interno de poder. Conheci secretários-gerais muito diversos, com estilos quase opostos e que, como é óbvio, deixaram marcas muito diferentes na memória da carreira.

    Até meados dos anos 80, o gabinete do secretário-geral do MNE situava-se no "terceiro andar" do palácio das Necessidades, o andar do poder, onde está o gabinete do ministro e, com variações, os de alguns secretários de Estado. Era uma sala muito ampla, com um quase idêntico espaço destinado ao seu chefe de gabinete e secretariado, naquilo que foi uma antecâmara que tinha sido testemunha de muito da história da casa.

    Nesses anos 80, um novo ministro chegou ao MNE e o secretário-geral da época fez-lhe o "tour" das principais instalações. A certo passo, mostrou ao ministro o gabinete que ele próprio ocupava, suscitando no novo chefe da diplomacia comentários de admiração sobre a grande dignidade do espaço, com um tom que se anunciava vagamente cobiçoso. Gentil mas naif, o secretário-geral terá dito qualquer coisa como "o meu gabinete está naturalmente à sua disposição, senhor ministro". Algumas horas passaram e, ao final da tarde, o ministro terá decidido levar à letra a delicada disponibilidade manifestada pelo secretário-geral e deu-lhe instruções para procurar novas instalações para se alojar, porque pretendia dar um destino diferente ao gabinete que, por muitas décadas, fora ocupado pelo "chefe da carreira".

    Nos tempos que correm, o secretário-geral do MNE está já instalado com toda a dignidade, embora fora do tal "terceiro andar". Na data de hoje, o seu gabinete vai receber um novo titular, um embaixador que nos vai representar a todos nós e a quem desejo, com a sinceridade da muita amizade, a maior sorte. É que o novo secretário-geral vai exercer funções num contexto restritivo muito particular, num tempo de grande exigência. A sua sorte será a nossa sorte.

    sábado, dezembro 17, 2011

    José Fernandes Fafe

    Os diplomatas que investem a sua vida numa longa e exigente carreira que, apenas para alguns, culmina na ascensão à chefia de uma missão, com a categoria de embaixador, não veem com muito bons olhos, e julgo que compreensivelmente, a nomeação de embaixadores "políticos". Estes foram em algum significativo número no passado, em especial após a Revolução de abril, sendo que, nos tempos mais recentes, a frequência desse tipo de nomeações caiu muito e ficou centrada em lugares de perfil mais especializado. Mas, para sermos honestos, há que dizer que algumas dessas personalidades exteriores que passaram pela carreira - na minha pessoal opinião, apenas uma pequena minoria - constituiram-se como um real valor acrescentado para o serviço diplomático.

    Há um nome que passou pela carreira diplomática, como embaixador "político", que sempre mereceu o meu maior respeito, uma figura moral e um grande homem de cultura, cuja ação diplomática trouxe um evidente contributo para a defesa e promoção dos interesses de Portugal, nos quatro postos onde desempenhou funções. O nome é José Fernandes Fafe. Tenciono, daqui a algum tempo, falar aqui sobre um importante livro que escreveu sobre as relações com o Brasil, mas hoje vou apenas contar uma história leve, com ele ocorrida em Angola.

    Estávamos na primeira metade dos anos 80. Chefiava a nossa missão em Luanda José Stichini Vilela, como encarregado de negócios, no intervalo entre dois embaixadores. Fernandes Fafe deslocara-se a Angola, vindo de S. Tomé, na qualidade de embaixador itinerante para os países lusófonos, acompanhado do professor Luís Filipe Lindley Cintra, outra magnífica figura da cultura portuguesa, para contactos no âmbito universitário. Stichini Vilela convidou, naturalmente, Fafe e Cintra para jantar, na véspera do seu regresso a Lisboa. Foi para todos os presentes uma conversa com imenso interesse, com dois interlocutores extraordinários, duas personalidades serenas e complementares, que muito nos enriqueceram, num tempo em que, em Luanda, se vivia algum isolamento. Despedimo-nos dos convidados, depois do jantar, desejando-lhes boa viagem para Portugal.

    No dia seguinte, fomos informados que o voo diário da TAP para Lisboa havia sido suspenso e que os visitantes teriam de ficar mais uma noite no hotel. O então cônsul-geral português, Fernando Andresen Guimarães, tomou a iniciativa de organizar um novo jantar em sua casa, incluindo os convivas da noite anterior. Nova noitada de "bom papo", como dizem os brasileiros, e nova despedida coletiva a Fernandes Fafe e Lindley Cintra.

    A surpresa viria na manhã subsequente. Afinal, também nesse dia, por uma qualquer razão, o voo da TAP não se realizaria. Eu era primeiro-secretário da Embaixada e, com gosto, propus-me fazer em minha casa um terceiro jantar aos nossos visitantes. Recordo-me que foi uma noite igualmente agradável, finda a qual brincámos com a possibilidade do voo também não ter lugar no dia seguinte. 

    À despedida, Fernandes Fafe voltou-se para aqueles que haviam sido os seus sucessivos anfitriões e perguntou: "Os meus amigos gostam de Raymond Chandler?". Julgo que todos dissemos que sim, no meu caso porque fui um fanático da literatura policial. "E estas três noites não lhes fazem lembrar Chandler?". Ficámos perplexos, sem resposta, não percebendo onde queria chegar com a questão. Com um sorriso, Fernandes Fafe acrescentou: "então não se lembram do livro dele, do "The long goodbye" ("O longo adeus?")?

    Deixo aqui um forte abraço para o meu amigo (e colega), embaixador José Fernandes Fafe, no termo de um ano que sei ter-lhe sido bastante difícil.

    Notícias do défice

    No "Telejornal", transmitido pela RTP internacional, à hora de almoço de hoje, um importante direto deu-nos o privilégio de ouvir parte do discurso de posse do novo presidente da Federação Portuguesa de Futebol.

    Imagino a inveja dos seguidores da BBC World por nunca terem tido - nem nunca irem ter, estou certo - a fantástica oportunidade de assistirem, num justificado direto, às palavras do presidente da britânica Football Association, em idêntica cerimónia.

    Felizmente que ainda há países felizes, onde o sentido de serviço público da comunicação social prevalece.

    sexta-feira, dezembro 16, 2011

    Eduardo Lourenço

    Foi ontem anunciado que o prémio Pessoa deste ano distinguiu Eduardo Lourenço. Já por aqui falei, por várias vezes, deste português exemplar, residente em França, que a todos nos tem ajudado a pensar o nosso lugar no mundo e. muito em especial, na Europa. Pode aliás dizer-se, sem grande receio que alguém nos desminta, que Lourenço é o único intelectual português com um discurso coerente e estruturado sobre Portugal e a sua inserção no continente europeu. O que, sendo para ele um elogio, não deixa de ser inquietante para o país.

    Por tudo isso, não vou, nesta data em que apenas envio um forte abraço ao professor Eduardo Lourenço, deter-me muito sobre a sua figura. O que penso dele e do muito que lhe devemos disse-lho numa simples homenagem que, há semanas, organizei em sua honra na embaixada.

    Mas vou contar uma história, passada com ele antes desse jantar, de que foram testemunhas Vasco Graça Moura e Guilherme Oliveira Martins. Espero que ele não leve a mal que a conte, porque ela apenas revela a juventude saudável de um homem sem idade.

    Lourenço chegou já sobre a hora do jantar, depois dos restantes convidados. Pediu-nos desculpa pelo atraso (que, na realidade, não existia) e explicou que acabava de chegar de Saint-Denis, nos arredores de Paris, onde fora encontrar Manoel de Oliveira, que aí filmava num estúdio onde se reproduzia uma rua do Porto (!). 

    Um de nós perguntou-lhe a razão da deslocação. Curiosidade de ver Oliveira a filmar? Eduardo Lourenço deu uma daquelas gargalhadas contidas que lhe são típicas e, com uma jovialidade que só se ganha com a idade, revelou: "A verdade é que me tinham dito que o Oliveira estava, hoje, a filmar com a Jeanne Moreau e a Claudia Cardinale. E eu tinha curiosidade de ver, ao vivo, as duas senhoras". E viu ?, perguntámos. "Não, já tinham ido embora e acabei por pagar uma conta calada de taxi..." 

    500

    São quinhentos, desde hoje, os amigos que se inscreveram para receberem notícias dos posts que vão sendo publicados neste blogue, como se pode ver na coluna ao lado. 

    É muito grato sentir que o que escrevemos pode merecer algum interesse, mesmo se este tipo de intervenção não tem pretensões a situar-se muito para além da espuma dos dias.

    O outro 25

    Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...