quinta-feira, outubro 20, 2011

O barman

É bom termos a sorte de nos lembrarem cenas em que participámos, mas que já havíamos esquecido! Há dias, um estimado colega (cujo nome não refiro, porque não cuidei em lhe perguntar se o podia fazer) recordou-me uma história passada numa reunião da Conferência Intergovernamental para a negociação daquilo que viria a ser o Tratado de Nice, ao tempo em que eu era o representante do governo português nessa tarefa.

A presidência rotativa semestral da União Europeia pertencia então aos Países Baixos. Discutia-se a eventual alteração do modelo de voto nas decisões comunitárias, que teria de passar por uma "reponderação" da força relativa de cada Estado no processo decisório. O tema era muito atual, mas muito polémico. Mudar a relação de forças entre os países foi sempre uma questão delicada e divisiva no seio da União Europeia.

Um dia, a presidência holandesa decidiu, sob a sua responsabilidade, colocar sobre a mesa uma proposta algo ousada que, em especial, alterava a relação interna de poder entre os três países do Benelux (Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo), que tinha sido mantida intocada desde a criação das Comunidades Europeias. Para os negociadores holandeses, chefiados pelo embaixador Ben Bot, que anos depois haveria de ser chefe da diplomacia do seu país, haveria que retificar essa relação, por forma a dar uma maior consideração ao fator demográfico. Nessa perspetiva, os Países Baixos eram beneficiados, porque tinham uma população substancialmente maior que a dos seus dois outros parceiros do Benelux. Nesta lógica, as coisas tinham uma certa racionalidade, só que a lógica em que as coisas se apoiavam estava muito longe de ser consensual.

Assumir uma presidência implica respeitar uma certa neutralidade naquilo que se propõe. Não se espera que o país que a detem apresente, de uma forma ostensiva e despudorada, ideias que diretamente a possam beneficiar. Foi isso, contudo, que, nesse dia, os holandeses fizeram.

Acabada a intervenção de Ben Bot, o delegado belga, uma grande e experiente figura da diplomacia europeia, o embaixador Philippe de Schoutheete, pediu a palavra e, com a inteligência, franqueza e humor que todos lhe conhecíamos, disse, muito simplesmente: "Senhor presidente. Tomámos boa nota da proposta que acaba de nos apresentar em nome dos Países Baixos. O meu único comentário sobre essa sua proposta é o seguinte: o senhor portou-se como uma barman que se serviu a si próprio antes de servir os clientes".

E a proposta holandesa morreu aí.

terça-feira, outubro 18, 2011

Olá, Raul!

Um jornal lembra-me que você faria hoje 82 anos. Parabéns! Não teremos velas para assoprar porque, vai para uns tempos, deu-lhe na veneta voltar-nos as costas e partir para outra. Não lhe vou contar o que sem passado por cá, desde a sua saída. Nem eu posso, nem você acreditava. A sério! ("Lá está ele a reinar", diria). No nosso comum Procópio, onde vertemos tantas lágrimas escocesas de riso, a noite do pessoal da "Dois" está cada vez mais curta. O Nuno foi à faca (dizem-me que, no hospital, tinha uma fisioterapeuta que era o máximo!), mas já esta aí para as curvas e vai ganhar "a Guerra", porque, como dizia o Lubitsch, "heaven can wait" (no caso, traduz-se por "a Céu pode esperar"). Há mesmo quem diga que os nossos amigos que ainda param lá pelo bar perderam muito da piada que tinham (há dias, a Diana Andringa, cruel, interrogava-se: "seria porque eu bebia que antes lhes achava mais graça ou eles tinham mais graça porque nessa altura bebiam?"). Até a Alice, armada em Merkel das Amoreiras, tem vindo a alargar os "spreads" (termo que agora se usa cá muito) face aos preços do Papagaio, a tasca que fica ao fundo da escadaria. É que anda por aí uma coisa nova chamada "troika" (lembra-se de uma Teresa Ter-Minassian, que em tempos vinha pelo FMI, cujo nariz arrebitado era muito fotografado a sair do Altis? Pois agora é mais ou menos isso, mas são mais e vêm de calças...). Nem lhe digo que o texto de cabeceira que agora está na moda - não quando temos insónias, mas quando temos sonhos - se chama "MoU", porque imagino que você fazia logo um trocadilho... É assim, Raul, é assim que andam as coisas, ou melhor, não é bem assim mas, como diria o Chico Buarque, "o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta". Bem que tentamos seguir o seu conselho - "façam o favor de ser felizes! - mas não está fácil, sabe? Mas nós somos como o seu Belenenses: andamos ora para cima ora para baixo. Agora? Agora... não estamos em cima! Receba um abraço saudoso do Francisco

O meu mais longo discurso

Ontem à noite, na inauguração do novo Centro cultural da Fundação Calouste Gulbenkian, encontrei a professora Cleonice Berardinelli, uma distinta académica brasileira a que já me referi aqui e aqui. E recordei, com ela, uma das mais complicadas cenas protocolares que tive de enfrentar, ocorrida no Brasil, em 2006.

Um ano antes, por feliz sugestão do diretor internacional da Gulbenkian, João Pedro Garcia, eu havia proposto que fosse concedida à professora Berardinelli a grã-cruz da ordem de Santiago de Espada, como forma de manifestarmos o nosso reconhecimento por uma vida académica dedicada ao estudo e promoção da literatura e da cultura portuguesas no Brasil. A minha sugestão foi aceite por Lisboa e, aproveitando uma passagem pelo Rio de Janeiro do então primeiro-ministro, engº José Sócrates, foi decidido organizar a cerimónia da entrega da distinção na grande sala do Real Gabinete Português de Leitura. Creio que mais de duas centenas de pessoas enchiam aquele magnífico espaço, testemunhando o elevado apreço que a professora Cleonice Berardinelli - que entretanto foi eleita para a Academia Brasileira de Letras - a tantos merece.

O programa de trabalho do chefe do governo português no Rio de Janeiro, nesse dia 11 de agosto de 2006, estava já bastante atrasado. O trânsito no Rio é muito complicado, a fixação dos tempos para os vários pontos da agenda fora feita de forma um tanto otimista, pelo que a chegada da comitiva ao Real Gabinete se processou quase uma hora depois do previsto, com outros eventos já à espera. Essa é a sina de muitas deslocações oficiais, especialmente quando se pretende atender a diversas solicitações: as conversas prolongam-se, surgem factos inesperados, as visitas demoram mais do que o previsto. Nada que seja muito grave, mas que sempre induz algumas tensões.

À chegada do primeiro-ministro, conduzi-o, de imediato, para uma sala onde estavam a professora Berardinelli e outros convidados importantes. Nesse preciso momento fui alertado para uma questão "trágica": por uma qualquer confusão, as insígnias da condecoração tinham ficado no hotel, bem longe, na Avenida Atlântica. Um estafeta fora entretanto buscá-las mas, uma vez mais atentas as dificuldades do trânsito, era difícil prever os minutos que demoraria a sua chegada.

Esgotados, com alguma rapidez, as amabilidades e os cumprimentos protocolares entre os presentes na sala, ciente do calendário apertado em que se movimentava, que se cumulava ao atraso anterior, o primeiro-ministro deu, a certo passo, instruções para que a cerimónia se iniciasse, sem demora. Eu era a única pessoa que sabia que, se bem que as formalidades e os discursos pudessem arrancar, elas não se poderiam concluir sem a chegada das insígnias. Mas, confesso, em face dos constrangimentos de horários que se viviam, decidi correr o grande risco de deixar iniciar o ato solene. 

Sobre o momento, surgiu-me então, uma única solução: embora só estivessem previstos três discursos - o do presidente do Real Gabinete, Dr. Gomes da Costa, o do primeiro-ministro português e o de agradecimento, da professora Cleonice Berardinelli - eu iria improvisar uma intervenção, imediatamente após a do Dr. Gomes da Costa... que duraria todo o tempo que fosse necessário, até à chegada física das insígnias.

Instalados na tribuna, segredei ao Dr. Gomes da Costa que deveria procurar ser tão longo quanto possível. Ele, porém, disse-me que o seu texto estava escrito e que só dava para cerca de dez minutos. Notei que o primeiro-ministro ficou surpreendido quando lhe passei uma mensagem dizendo que eu também falaria na cerimónia: protocolarmente, estando prevista uma intervenção do chefe do governo, não tinha qualquer sentido o embaixador falar. Ainda perguntei ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Luis Amado, e ao presidente da Fundação Gulbenkian, Emílio Rui Vilar, que tinha a meu lado na mesa, se não queriam dizer "umas palavras". Com naturalidade, nenhum deles se mostrou disponível.

Estava traçado o meu destino para os próximos minutos. Senti-me como aqueles deputados a quem, segundo a história, são pedidas longas intervenções para dar tempo à chegada de "reforços" para constituir uma qualquer maioria de voto. Com rapidez, alinhei num papel meia-dúzia de "tirets" que iriam servir de esqueleto ao meu discurso: desde notas pessoais sobre a professora Berardinelli, algumas referências aos estudos de literatura portuguesa no Brasil, umas palavras sobre a cooperação entre as universidades e sei lá mais o quê, tudo o que na altura me veio à cabeça como "buchas" possíveis. Naquele espaço sem ar condicionado, o meu crescente suor dava-me a impressão que a temperatura estava a subir em flecha. 

Com esperança de ganhar tempo, ouvia em fundo o Dr. Gomes da Costa que, no microfone, prosseguia, de forma que me parecia incomodamente rápida, no seu discurso. Até que, a certo ponto, o ouço dizer: "... e, para terminar, permitam-me que...". Pronto! Era a minha "deixa". E comecei a ajeitar a cadeira para sair da tribuna, para iniciar a arenga que o destino me obrigava a fazer. Logo se veria como saía...

E foi então, nesse instante, que vi surgir ao fundo, caminhando em passo apressado desde a porta de entrada do Real Gabinete em direção a nós, a figura diligente do Luís Ferreira dos Santos, o imprescindível colaborador do nosso serviço do protocolo, trazendo nas mãos a caixa vermelho "bordeaux" com a grã-cruz de Santiago de Espada. Estava consumado o milagre, logo a mim, que nunca tinha ansiado por uma benfazeja aparição de um santo... E estava salva a honra do convento!

Aqui fica a historieta do mais longo discurso que nunca pronunciei.

domingo, outubro 16, 2011

Os adoradores do sol

Há muitos anos, quando vivi na Noruega, li um livro de Fernando Namora com o nome de "Os adoradores do sol". Falava desse fascínio que os nórdicos sentem pelos dias luminosos, que aproveitam à saciedade, quando os deuses decidem, não tão raramente quanto se possa pensar, retirar-lhes de cima o "céu cinzento sob o astro mudo", como reza uma canção que deveria, particularmente nos dias que correm, ser de aprendizagem obrigatória nas nossas escolas.

Nesta sedução pelo sol, os parisienses são uma espécie de nórdicos: espojam-se pela esplanadas, à frente de uma bica ou de uma água. Ontem, dia em que Paris foi bafejado pelo verão de S. Martinho, foi um fartote. E (vá lá!) uma chatice: não havia lugar para pôr a cara ao sol (sem conotações franquistas...). 

Deixo-os com esta magnífica e clássica fotografia das cabeleireiras parisienses de Doisneau.

Negar a mentira

Há muitos anos que leio, publicadas em jornais, "cartas ao diretor", destinadas a retificar escritos. Tanto quanto me lembro, só por duas vezes me senti motivado a utilizar essa figura: uma primeira vez em 2002 e outra hoje. O que não deixa de ser curioso. Em ambos os casos, para denunciar coisas flagrantemente falsas, sem o menor apoio em factos. Nada de particularmente grave ou preocupante, atenta a notória falta de credibilidade daquilo que foi publicado. Mas apenas porque achei importante "to set the record straight". Para desmentir. Etimologicamente: para negar a mentira.

Dar música

Nestes tempos de crise, a Embaixada persiste em "dar música", no quadro da série de concertos "Entre Pautas / Entre Partitions". Desta vez, será um concerto de piano e flauta.

Utilizando os belos salões da rue de Noisiel, em Paris, podem ouvir-se, no próximo dia 28 de outubro, pelas 18.30 horas, obras de Fernando Lopes Graça e de Luis Costa, em "diálogo" com alguns autores românticos europeus. Ao piano estará Bruno Belthoise e, na flauta, Yves Charpentier.

Como assistir? Veja aqui

As 24 horas de Vila Real

No aeroporto: relato a um amigo espanhol as palavras certeiras do presidente Cavaco Silva, num discurso em Florença, onde denunciou as derivas institucionais da União Europeia e a "mainmise" intergovernamental. Resposta dele: "Pena é que o teu compatriota Barroso, em lugar de fazer um comício tardio no Parlamento europeu, a tentar absolver-se da clandestinidade da Comissão, não tivesse dito isso mesmo há muito mais tempo". Por mais que tente, não me recordo da expressão exata, em castelhano, com que ele acabou a frase. Mas soou a "É o dizes!".

No jornal: o doentio catastrofismo nacional de António Barreto é objeto de um comentário irónico de Vasco Pulido Valente, a quem, como é sabido, nunca ninguém apanhou uma palavra de dúvida sobre o futuro de Portugal.

Nas ruas: nascem como cogumelos os locais de compra de ouro. E que grande época aguarda as lojas chinesas!

Na universidade: ou foi impressão minha ou o efeito da crise soltou-nos o discurso a todos. Falo por mim. Nunca dirigi um reunião de forma tão caótica. Mas pode ter valido a pena. Toda a gente começa a perceber que já não há tempo para perder tempo.

No quiosque: "Leva quatro jornais e duas revistas?! Caramba! Muito obrigado!"

No restaurante: "O senhor vem lá dos frios de Paris e acha que está calor?! Olhe que por cá tudo sobe: a temperatura, os preços, os impostos... Ah! e também a raiva..."

Um familiar: fez ontem 99 anos! Fui dar-lhe um abraço. Disse-me: "acho que vou chegar aos 100!". Vai, claro! E Portugal está quase a chegar aos 900! Estamos aqui para durar!

Por todo o lado: é impressionante a unanimidade angustiada nas expetativas das pessoas com quem nos cruzamos. Quanto mais não seja por espírito de contradição, vou apostar em como isto ainda vai dar a volta. Não é impunemente que se faz uma vida como sportinguista. 

No avião de regresso: conversa longa e proveitosa, entre o Porto e Paris, com Artur Santos Silva. É bom escutar os que ganharam uma sabedoria serena e tolerante.

Um amigo, triste, a comentar, ao telefone, as manifestações: "Começo a estar menos preocupado com a taxa de desemprego e muito mais com a taxa de desespero".

sábado, outubro 15, 2011

Pedro Rosa Mendes

Pedro Rosa Mendes é um dos grandes escritores da nova geração da literatura portuguesa. Esta semana, foi-lhe atribuído o prémio narrativa do Pen Club, pelo seu livro "Peregrinação de Enmanuel Jhesus".

Pedro Rosa Mendes era também o correspondente da agência noticiosa Lusa em Paris. Porque acompanho, de há muito, a atividade dos jornalistas que a Lusa tem (cada vez menos) pelo mundo, posso testemunhar que, do trabalho de Pedro Rosa Mendes em França, resultaram algumas das melhores e mais equilibradas "peças" que alguma vez vi escritas em trabalho de agência.

A Lusa, com certeza, não quis ficar atrás do Pen Club e decidiu também "premiar" Pedro Rosa Mendes, cancelando o seu contrato. Não terá sido a "troika" a sugerir, mas já agora...

quinta-feira, outubro 13, 2011

A mão visível

Tem imensa graça ouvir o canto dos reconvertidos próceres do novo federalismo. Depois de nos terem bombardeado, por décadas, com o paraíso da “mão invisível”, de terem entoado loas embevecidas às maravilhas do mercado, ei-los que chegam, novos e já velhos, a uma cada vez mais alargada comunhão na ideia de que se torna imperativo um salto federal europeu para a sustentação do euro. 

Que grande ironia! Quem havia de dizer que seria a Europa financeira a "puxar" pela Europa política! Ora sejam muito bem-vindos ao Estado!

Três dias

Dia 1. É preciso aproveitar melhor as oportunidades na área da construção civil que se abrem às empresas portuguesas neste país. Por isso, a embaixada acolheu, no dia 11, as largas dezenas de convidados que a Câmara de Comércio Franco-Portuguesa juntou, para um exercício de várias horas, entre promotores imobiliários franceses do setor da habitação social e um conjunto muito importante de industriais nacionais da nossa construção civil.

Dia 2. As portas da embaixada voltaram a encher-se, do dia 12, com quase uma centena de pessoas para aplaudir as dezenas de alunos portugueses premiados com bolsas de estudo para a frequência do ensino superior francês no corrente ano letivo. Trata-se de uma iniciativa lançada pela embaixada de Portugal que merece o apoio do Banque BCP, do banco BES, da Caixa Geral de Depósitos, da companhia de seguros Fidelidade, da empresa INAPA e da secretaria de Estado das Comunidades portuguesas.

Dia 3. O conselheiro das Comunidades portuguesas, Carlos Reis, foi o responsável pelo simpático convite que me foi dirigido pela Faculté de Droit, Économie e Gestion, de Orléans, para aí proferir hoje uma conferência subordinada ao tema "Le Portugal en Europe - les nouveaux défis". Seguiu-se um animado e informado debate, dentre a centena e meia de presentes, onde se contavam muitos estudantes e alguns "maires" da região. Portugal continua a ser um tema que interessa muitos franceses. Agora que as coisas não estão fáceis para nós, acho que vale ainda mais a pena praticar uma ativa "diplomacia pública" para explicar, com clareza e com todas as "cartas sobre a mesa", como estamos a trabalhar para vir a sair da crise e, de caminho, o modo como olhamos as estruturas em discussão nesta Europa. Uma jornada que valeu bem a pena.

quarta-feira, outubro 12, 2011

Tranquilidade

Ontem, gostei de ouvir Paulo Bento dizer, com "toda a tranquilidade", que a Dinamarca mereceu ganhar a Portugal. Porque era verdade. É bom que não sejamos cegos e que tenhamos a coragem de assumir quando falhamos, embora devamos dar provas de que estamos a trabalhar, com rigor, para garantir o nosso lugar no "Euro".

Terá isto alguma coisa a ver com outras realidades europeias, nomeadamente com as notícias, também menos boas, que nos chegam da Eslováquia, no tocante à aprovação do FEEF? Talvez. 

(Como muitas pessoas da minha geração continuo a ter muito boas recordações da capital eslovaca, Bratislava. Foi por lá, num 25 de abril (também) de muito boa memória, mas em 1965, que Portugal, com um golo magnífico de Eusébio, garantiu o seu apuramento para a sua primeira e inesquecível presença numa fase final do campeonato do mundo. Como ponto negativo, foi também por lá, nessa mesma tarde, que o sportinguista Fernando Mendes lesionou definitivamente o seu joelho. E eu, cá por coisas, tenho uma apurada memória seletiva para esse tipo de lesões.)

"Com toda a tranquilidade", quer na seleção, quer no restante país que não foi selecionado, devemos continuar a trabalhar. Se possível, melhor. Citando um clássico cada vez mais representativo do que hoje somos, lembraria que "os portugueses já provaram muitas vezes saber ser uns bons fregueses das grandes ocasiões"*.

*in José, Herman, "Bámos lá cambada!", Lisboa, 1986

terça-feira, outubro 11, 2011

Postos

Viviam-se os tempos do PREC, naquela grande embaixada portuguesa na Europa. O ministro-conselheiro, o nº 2 da casa, alimentava uma legítima expectativa de poder vir a obter uma chefia de missão, na onda de novas representações diplomáticas que Portugal estava a criar pelo mundo. Essa ânsia não passou desapercebida aos colegas. Assim, um certo dia, estes resolveram elaborar um falso "telegrama", como se se tratasse de uma comunicação chegada de Lisboa, através do qual era perguntado se o ministro-conselheiro estaria disponível para assumir funções como chefe da missão em Budapeste.

O método de consulta era um tanto bizarro. Por regra, este tipo de sondagens não se faz por escrito para... que nada fique escrito. Para os postos mais importantes e apetecíveis, é vulgar ser o ministro a convidar os embaixadores, por haver a quase certeza de que eles não recusarão. Para os restantes postos, encarrega-se dessa tarefa, por via telefónica, o secretário-geral do Ministério, muitas vezes condenado a frustrar expectativas e a receber reações menos simpáticas. Mas nesses tempos, de governos mais do que provisórios, tudo era plausível, mesmo um "telegrama" a formalizar uma sondagem.

Ao ler o "telegrama", que tomou por verdadeiro, o ministro-conselheiro ficou muito hesitante. E desapontado. Embora conhecedor do lema clássico de que "uma embaixada é sempre uma embaixada", que seria, no seu caso, a primeira, a Hungria não era o seu mais desejado destino de vida para os próximos três ou quatro anos. Algumas capitais à época bem mais simpáticas e mais a ocidente, na geografia e na qualidade de vida, estariam em vias de ser preenchidas e ele ambicionava poder obter uma dentre elas. Durante algumas horas, cheio de dúvidas, partilhou o seu desencanto com os colegas, que, com alguma perfídia, alimentaram a graça até aos limites da crueldade. Ao fim do dia, porém, revelaram-lhe, para seu grande sossego, que tudo não tinha passado de uma grande "partida".

Decorreram uns dias e um novo "telegrama", muito similar ao anterior, emergiu nos corredores da embaixada e foi, de novo, pousar na secretário do ministro-conselheiro. Agora, em vez de Budapeste, o destino era Bissau. O ministro-conselheiro entendeu que a coisa começava já a não ter graça e, com alguma secura, disse-o aos colegas que já tinham criado a "invenção" de Budapeste. Mas estes juraram, a pés juntos, que nada tinham a ver com a segunda comunicação. Foi então que o nosso homem irrompeu pelo gabinete do embaixador, para tentar perceber o que é que aquilo realmente significava. O embaixador, com serenidade, disse-lhe a verdade: o Ministério queria saber se ele aceitava ser o primeiro embaixador português em Bissau.

O diplomata estava aturdido. Bissau? Era uma cidade que se sabia difícil para viver, as relações de Portugal com uma antiga colónia com a qual tinha disputado uma década de guerra eram ainda tensas, estávamos muito longe do ambiente de fraterno entendimento que hoje se vive entre os países que falam português pelo mundo. Claro que abrir a primeira embaixada portuguesa na Guiné-Bissau era um forte desafio profissional, em especial para um primeiro posto como embaixador, mas o ministro-conselheiro mantinha-se ainda um pouco hesitante.

Saiu do gabinete do embaixador e foi falar com os seus colegas, partilhando com eles a proposta, sublinhando as dúvidas que o assaltavam e, de certo modo, lamentando não ter hipóteses de escolha. Foi então que um deles, irónico, lhe lançou:

- Que queres? A culpa é tua. Não quiseste ir para Budapeste...

O embaixador João de Sá Coutinho, uma das grandes figuras da carreira diplomática portuguesa, foi o primeiro embaixador na Guiné-Bissau, onde veio a fazer um excelente posto. A história foi-me contada por um dos "conspiradores de Budapeste".

África

Pedro Pires, que até há pouco foi presidente de Cabo Verde, acaba de ganhar o prémio Bo Ibrahim para a Boa Governação em África. No passado, também Joaquim Chissano, que foi chefe de Estado de Moçambique, recebeu o mesmo galardão.

Não sei se os franceses, os britânicos ou os belgas sentem um orgulho especial quando é feita uma distinção destas a um dirigente de alguma das suas ex-colónias. Eu, como português, sinto.

segunda-feira, outubro 10, 2011

Quadros

Devo confessar que senti ontem à noite alguma tristeza ao estar presente no lançamento da venda da coleção de pintura (e outros objetos) de Jorge de Brito, aqui em Paris. Fantásticos quadros de Vieira da Silva, de Júlio Pomar e de Amadeu Souza Cardoso foram postos à venda e dispersar-se-ão, a partir de agora, por coleções particulares e públicas, seguramente fora de Portugal. Será inevitável? Talvez seja.

Tentei perceber (mas não lhe perguntei) o que pensava Júlio Pomar ao olhar para alguns dos seus grandes trabalhos, a maioria saídos das suas mãos para as do seu amigo Jorge de Brito, há já algumas dezenas de anos, agora quase a caminho de anónimos destinos. Apenas lhe disse que, por uma vez na vida, lamentava não ter dinheiro suficiente para adquirir o seu "Mai 68 (CRS-SS) II" (na imagem), de onde transpira parte da história da geração em que, com muito orgulho e sem qualquer remorso, me revejo. Depois, pensei melhor: se tivesse dinheiro suficiente para me poder dar ao luxo de comprar aquele quadro (que custa centenas de milhares de euros), seria talvez um mau sinal... 

Espetáculo

Com uma excitante irregularidade, todos (mas todos) os funcionários do Ministério dos Negócios Estrangeiros recebem, de tempos a tempos, num "block-mail" (que não discrimina quem está em Sidney de quem trabalha em Lisboa), notas sobre as mais variadas temáticas, desde o anúncio da (temporária, claro!) falta de água nas Necessidades (utilíssima informação, como se imagina, para funcionários em Harare ou em Tóquio), até à abertura de cursos de francês em Lisboa (bem úteis, especialmente para quem está colocado em Paris, apenas com a dificuldade dos horários dos aviões, para ir e vir no mesmo dia). Aparentemente, alguém cedeu, sem critério, o acesso indiscriminado à lista de e-mail oficiais dos funcionários e, agora, é "um fartar vilanagem". Se pensarmos que cada funcionário que recebe estes mails tem de "abrir" a respetiva pasta, ler o texto e, só depois, constatar a eventual irrelevância da informação, pode imaginar-se a quantidade de minutos tirada ao trabalho do Ministério. Mas, como já constatei há muito, não há nada a fazer! É assim, pronto!

Algumas destas mensagens são verdadeiros ícones recorrentes. E a sua falta ou atraso induz angústias, porque faz presumir que alguma coisa de grave se está a passar. Foi, por isso, que respirei de alívio ao receber há dias a que respeita à disponibilização de bilhetes para o circo de Natal 2011. 

Uhf! Pensava que nunca mais chegava! 

Eça, o Brasil e nós

No âmbito dos chamados "jantares queirosianos", dedicados a aspetos da vida e obra de Eça de Queiroz, a Fundação Eça de Queirós, o Círculo Eça de Queirós e o Grémio Literário promovem, no próximo dia 25 de outubro, em Lisboa, um debate, seguido de jantar, sobre o tema "O Brasil e os brasileiros".

Moderados por Miguel Sousa Tavares, o embaixador brasileiro Mário Vilalva, o advogado Pedro Rebelo de Sousa e eu próprio, juntar-nos-emos no Grémio Literário, numa charla que pretendemos bem animada.

domingo, outubro 09, 2011

De ouvido

Aqui fica uma historieta bem antiga da "casa".

Era a segunda ou terceira vez que o secretário-geral do MNE levava, ao despacho com o ministro, a proposta de atribuir a um determinado funcionário a chefia de uma embaixada. Por uma qualquer razão, que nunca ficava evidente, o político fazia-se deliberadamente desentendido, considerando o assunto não prioritário, pelo que transitava para a agenda da reunião seguinte. 

O secretário-geral, cuja qualidade de chefe da carreira o obrigava a ter de respeitar equilíbrios mínimos de justiça entre os funcionários, em função da sua antiguidade, experiência passada e avaliação de qualidade profissional, começava já a mostrar-se um pouco desagradado com a relutância do ministro, tanto mais que ela não era apoiada em qualquer argumento, mas apenas naquela misteriosa e persistente determinação em não tomar qualquer decisão.

Um dia, numa nova ocasião de despacho, o secretário-geral decidiu ser um pouco mais insistente:

- O senhor ministro vai-me desculpar, mas já não sei o que hei-de dizer ao homem. Ele aceita um posto modesto, está já muito atrasado em relação a colegas do seu tempo e, com toda a franqueza, parece-me que conseguiria gerir uma missão com a necessária dignidade. O senhor ministro conhece-o bem?

O político olhou o chefe da carreira e respondeu:

- Tenho uma ideia dele. Não é um que é surdo de um ouvido? 

O secretário-geral anuiu, animado com o reconhecimento feito pelo ministro: era esse mesmo.

- Pois é, só é pena que não entenda nada do outro.

E o homem acabou por nunca ser embaixador.

sábado, outubro 08, 2011

Sermão de domingo

As pessoas acreditam naquilo que querem acreditar. Em particular, acreditam no que lhes prolonga as ideias feitas, no que entendem como sendo "lógico" e no que lhes aparece como podendo desenhar-se como "óbvio". E se o que lhes é servido como verdade tem o condão de adubar sentimentos pré-existentes, então o processo de convicção pode dar-se como adquirido. Essa é a glória do criador da crença, para quem o supremo objetivo era construí-la, dá-la como evidência e vê-la partilhada, difundida e aceite como "a verdade". 

Ingenuamente, pode argumentar-se que, para além da crença, há que ter em conta esse pormenor, quiçá marginal, que são os factos. E que, às vezes, os factos apontam, de forma cristalina, no sentido de infirmar, em absoluto, a crença entretanto estabelecida. Neste caso, "tant pis" para os factos. Se acaso eles não acompanham o rumo da crença, esta dispensa-os, por irrelevantes e incómodos. É dos livros. Pirandello dizia que "a cada um a sua verdade". É verdade, cada um fica na sua. Apesar da verdade, na verdade, ser só uma. E, às vezes, a crença nada ter a ver com ela. Mas que importa? As pessoas acreditam naquilo que querem acreditar.    

Sábado comunitário

1. Começámos de manhã cedo. A reunião da CCPF (Coordenação das Comunidades Portuguesas em França) abriu com um interessante debate sobre problemas que interessam à nossa comunidade. O secretário de Estado das Comunidades portuguesas, José Cesário, os deputados Carlos Gonçalves e Paulo Pisco, bem como o autor deste blogue discutiram, durante quase duas horas, com um interessado auditório, temáticas tão variadas como o ensino português no estrangeiro, o trabalho associativo e a forma de o apoiar e promover, a imagem das comunidades migrantes em Portugal e no estrangeiro, as dificuldades dos residentes no estrangeiro com a nossa burocracia, os novos fluxos migratórios portugueses para França, a necessidade da preservação e valorização da memória da emigração, os contributos da "diplomacia autárquica", o papel do empresariado da diáspora, a promoção cultural no exterior, a mobilização cívica e política das nossas comunidades, a situação dos presos de nacionalidade portuguesa em França, o perfil dos mais jovens setores das comunidades.

2. À tarde, a associação de portugueses e luso-descendentes Cap Magellan, dinamizada pelo autarca parisiense Hermano Sanches Ruivo, instituição que agora faz 20 anos, organizou uma gala no "Hotel de Ville" de Paris, antecedida por palavras do "maire" Bertrand Delanoe e do SECP, José Cesário. Nela foram distribuídos prémios e apresentado um espetáculo com figuras como Kátia Guerreiro, Miguel Ângelo, Pedro Abrunhosa, Rui Reininho, lado a lado com artistas oriundos da nossa comunidade. Com pena, deixei a sessão a meio, por que tive de partir para...

3. ...uma noite limiana em Saint-Cyr, perto de Versailles, onde, com a presença de milhares de pessoas, teve lugar uma espécie de reedição das "Feiras Novas" de Ponte de Lima, com muita música e a gastronomia da "Encanada", o excelente restaurante da vila (porque Ponte de Lima é e quer permanecer vila!). Claro que acabámos com uma pratada de rojões e sarrabulho, regado a "vinhão" (sabem o que é?). Já prometi a mim mesmo entrar de dieta. Talvez comece 2ª feira...

sexta-feira, outubro 07, 2011

João Crisóstomo

Conheci-o há cerca de uma década, em Nova Iorque.

João Crisóstomo é uma personalidade que tem dedicado grande parte da sua vida a dar a conhecer a figura de Aristides Sousa Mendes, o cônsul em Bordéus que, durante a segunda guerra mundial, emitiu, contra a vontade do governo salazarista, vistos de entrada em Portugal que permitiram salvar a vida a milhares de judeus e pessoas que fugiam à invasão nazi da França.

Sousa Mendes, por esse ato de desobediência cívica, foi perseguido pelo regime ditatorial, demitido da função pública, tendo acabado a sua vida em muito precárias condições financeiras. Ironicamente, em certos documentos internacionais, o regime salazarista chegou a ser elogiado por ter "permitido" esse acolhimento de refugiados, pelo qual puniu um seu servidor. E, para cúmulo, por esse mesmo motivo, Salazar chegou mesmo a ser proposto para a dignidade de "justo entre os justos"...

Há dias, tive o gosto de receber João Crisóstomo em Paris. Com o entusiasmo de sempre, falou-me dos seus projetos. Perguntei-lhe por que razão a casa de Aristides Sousa Mendes em Cabanas de Viriato, que Jaime Gama tanto se empenhou em colocar à disposição da respetiva Fundação, permanece em ruínas. Muitos estrangeiros que aí rumam, numa peregrinação de homenagem a essa figura ética, vão-me dando conta da sua desagradável surpresa em verem o edifício cada vez mais degradado, fruto de um incompreensível desleixo. E não deixam, de forma muitas vezes inquisitiva, de apontar o dedo às autoridades portuguesas - que não têm, na metéria, a menor responsabilidade.

O modo discreto como João Crisóstomo se referiu ao assunto, procurando não acicatar feridas mas sem resposta concreta para a questão colocada, suscitou-me alguma inquietação. Neste tempo em que as fundações são sujeitas a um escrutínio mais apertado, talvez não viesse mal ao mundo, bem pelo contrário!, se se pudesse "pôr em pratos" limpos o que se passa com a Fundação Aristides Sousa Mendes.

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...